Esperamos que essa encíclica confirme uma posição clara da Igreja ao lado das vítimas do assim chamado racismo ambiental. Desejamos que, ao denunciar os riscos da sobrevivência do planeta, o documento seja solidário com as comunidades mais pobres
Por Marcelo Barros*, em Fátima Missionária
Finalmente saiu a encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia. Poética e profética, começa por retomar o «Cântico das Criaturas», de São Francisco, para confirmar: «A nossa casa comum é como uma irmã, com quem partilhamos a existência e é como uma boa mãe que nos acolhe nos braços». A partir daí, convida todos para renovar o diálogo sobre o modo como estamos construindo o futuro do planeta.
A encíclica está organizada de acordo com o método latino-americano do «ver, julgar e agir». Mesmo se cada etapa se interliga com a outra, parte da realidade, confronta-a com a Palavra de Deus e depois tenta discernir o que propor de concreto. No capítulo um, descreve: «O que está a acontecer na nossa casa comum». Elenca a questão das mudanças climáticas que será tema de importante encontro da ONU, em Paris (dezembro deste ano). Trata da crise da água, do desflorestamento, da perda da biodiversidade e insiste: tudo isso está ligado à desigualdade social e às injustiças do sistema que dominam o mundo.
O capítulo dois é dedicado ao «Evangelho da Criação». A encíclica insiste que ao falar de criação, discernimos no universo o «projeto do amor de Deus». Desmistifica a natureza (não é divina), mas sem cair no antropocentrismo – nenhuma criatura é supérflua.
A novidade maior é que o Papa trata a ecologia a partir da realidade social do mundo, da injustiça do sistema económico excludente e da cultura da indiferença que infesta a humanidade. Parte de um documento dos bispos da Nova Zelândia que afirma: «20 por cento da população mundial consome recursos numa medida tal que roubam (e usa essa expressão) às nações pobres e às gerações futuras aquilo do qual essas precisam para sobreviver».
Assim, Francisco denuncia profeticamente «a raiz humana da crise ecológica» e elabora princípios e diretrizes para uma «ecologia integral». Propõe uma ética em defesa dos vulneráveis, tanto os pobres como a terra, a água e a biodiversidade. A partir daí, elabora «algumas linhas de orientação e ação». Pede uma «política e economia em diálogo para a plenitude humana, insiste na urgência de uma educação e espiritualidade ecológicas que aprofundem o diálogo e a colaboração entre as diversas religiões e suscite uma «conversão ecológica».
Leonardo Boff declarou que nem a ONU faria um documento tão aberto. A encíclica consagra a ecologia integral que une as questões ambientais do cuidado com a natureza à urgência de uma justiça internacional para os empobrecidos e excluídos. Ao iniciar e concluir essa reflexão com um hino de louvor a Deus e em forma de oração, a encíclica convoca-nos a construir um outro modo de organizar o mundo e gerir a nossa vida pessoal a partir do cuidado e da amorosidade como caminhos de intimidade com o Espírito que «abarca todo o universo, conhece toda a palavra e está presente em toda criatura».
Instrumento de estudo
Mas o que esperariam da encíclica Laudato Si, por exemplo, os índios Ka´apor, cansados que estão de exigir que o Estado brasileiro os defenda e garanta a proteção da floresta? Será preciso lê-la do ponto de vista deles e de muitas outras vítimas da violência ambiental.
Muitos estão esperando por essa encíclica. Sobretudo as comunidades e igrejas perseguidas pelo seu empenho na defesa da Criação e em conflito com os grandes projetos nas regiões amazónicas: mineração, monoculturas, hidroelétricas e barragens, infraestruturas para os chamados «projetos de desenvolvimento», que revelam rapidamente o interesse quase exclusivo de desenvolver os capitais de quem investe, provocando graves violações dos direitos socioambientais às populações locais e a criminalização dos líderes populares que a eles se opõem.
Um dos motivos da criação da rede latino-americana Iglesias y Minería, por exemplo, foi exatamente evitar o isolamento das comunidades mais empenhadas nessas frentes e demonstrar apoio moral, político e institucional da Igreja. Esse será, talvez, o efeito prático mais imediato e importante de Laudato Si.
Esperamos que essa encíclica confirme uma posição clara da Igreja ao lado das vítimas do assim chamado «racismo ambiental». Desejamos que, ao denunciar os riscos da sobrevivência do planeta, o documento seja solidário com as comunidades mais pobres. Essas são por um lado as vítimas maioritariamente atingidas por essa violência e, por outro, em muitos casos, indicam-nos caminhos de preservação da vida e de organização de economias com baixo impacto ambiental nos territórios.
Em muitos países está a ser implicitamente declarada uma guerra de baixa intensidade, disputando territórios e bens naturais. A história repete-se ao estilo das antigas colónias, como bem demonstra o saudoso Eduardo Galeano em «As veias abertas da América Latina», mas com ritmos e tecnologias bem mais impactantes, chegando assim a violar também os direitos das futuras gerações.
O espírito consumista e o sistema capitalista crescem a uma velocidade exponencial; outros modelos de vida que com dificuldade resistem à agressão deles observam-nos com angústia e incompreensão, definindo-os, lucidamente, «sistemas suicidas». Desse ponto de vista, a leitura de Laudato Si poderia ter profundas implicações político-económicas.
As comunidades que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho define como «indígenas e tribais» representam, a nosso ver, um «baluarte». Assim, como ao longo da história as fortalezas protegeram territórios inteiros das invasões e frearam o controle inimigo dos territórios, da mesma forma o direito à autodeterminação das populações locais pode ser uma estratégia, hoje, para evitar a entrega indiscriminada dos bens comuns às corporações mineiras ou às multinacionais da comunicação, da água ou das grandes cadeias de produtos alimentares.
Direitos indígenas
A Igreja deveria apoiar com força o direito à «consulta prévia, livre e informada» das comunidades locais, assim que seja garantido o autocontrole de seus territórios.
A Rede Eclesial Panamazónica comprometeu-se nesse sentido em diversos países da América Latina. Articula comunidades cristãs de base, grupos e instituições religiosas e as conferências episcopais da grande Amazónia, com especial atenção aos direitos dos povos indígenas e com uma interessante proposta de colaboração permanente com a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos.
A visita do Papa Francisco a Washington em setembro, poucos meses depois da publicação da encíclica, poderá tocar também esses temas delicados e urgentes.
Em termos de política internacional, a encíclica poderia ser oportunidade para relançar a proposta de criação de um Tribunal Penal de Justiça Ambiental. Hoje, de fato, não existem mecanismos adequados de responsabilização a nível internacional por crimes ambientais. Assim, mesmo em caso de graves violações desses direitos, as multinacionais e os governos locais, vinculados entre si por acordos e interesses económicos, acabam praticamente impunes.
Sobretudo, esperamos que o documento do Vaticano sobre ecologia ofereça uma releitura teológica das referências bíblicas que ao longo da história, por interpretações patriarcais e colonizadoras, separaram a Criação do homem, considerando esse último o dominador e controlador da vida.
Sabemos quanto o sistema capitalista, ecocida e suicida, herdou da cultura religiosa cristã. Por outro lado, temos a inspiração radicalmente evangélica de São Francisco e o testemunho vivo de muitos e muitas mártires que nos relançam em defesa da vida.
Precisamos igualmente de um profundo e humilde processo de conversão e purificação. Uma nova escuta da Revelação, a partir do encontro fecundo entre a Palavra bíblica, o livro da criação e a sabedoria dos povos e das religiões.
–
* Teólogo.
Destaque: Menino Ticuna no lixão. Foto: Dida Sampaio.