A última “rebeldia” lhe custou a vida. Na manhã seguinte, mesmo ciente do risco que corria, Monsenhor Romero decidiu rezar uma missa. No altar, recebeu um tiro disparado por um atirador de elite do Exército salvadorenho
Por Marina Terra, de San Salvador, no Opera Mundi
Monsenhor Oscar Arnulfo Romero Galdámez agora é, segundo o Vaticano, um beato. Mas para aqueles presentes neste sábado (23/05) à Praça Salvador do Mundo — emblemático endereço da capital salvadorenha escolhido para abrigar a cerimônia de beatificação -— se trata de um ato protocolar e de um reconhecimento há tempos esperado. Onipresente no consciente coletivo do país, Monsenhor Romero sempre foi para os salvadorenhos uma figura sagrada, independente de fé ou crença.
Mais do que um beato — o passo anterior à santificação, nos processos da Igreja Católica —, um mártir, um revolucionário, a “voz dos sem voz”, que tentou ser silenciada a bala em um 24 de março de 1980, mas que se multiplicou e ainda reverbera com força, dentro e fora de El Salvador. Hoje, a beatificação de Romero, 35 anos depois de seu assassinato, refresca a lembrança de um tempo de sombras para a pequena nação centro-americana, que naquele ano estava prestes a entrar em uma das guerras civis mais sangrentas do século XX.
Mas, também, o momento de celebração e a distância histórica obrigam a analisar o quanto os sermões proferidos por Monsenhor Romero naquela época, carregados de críticas à violência e à opressão infringidas sobre os mais pobres, continuam atuais em El Salvador e na América Latina — ainda assombrados pelo fantasma da desigualdade e ameaçados por conhecidos inimigos.
Curiosamente, a nomeação de Romero como Arcebispo de São Salvador pelo Papa Paulo VI, em 1977, foi foi vista como um sinal de conservadorismo. Ele, supostamente, agiria para conter setores mais progressistas da Igreja e da sociedade em geral, que se manifestavam contra a crescente repressão da ditadura.
Porém, pouco menos de dois meses após assumir o posto, um trágico episódio de proporções pessoais determinou a conduta que seria assumida por ele nos três anos seguintes. O padre Rutilio Grande, um grande amigo, é assassinado em uma emboscada promovida pelos Esquadrões da Morte, grupos paramilitares que conduziam execuções extrajudiciais a mando do governo. A proximidade dele com as comunidades camponesas miseráveis decretou seu fim.
Dali em diante, Monsenhor Romero enfrentou os grupos de poder que aterrorizavam a população e que, conforme demonstravam atentados que continuaram acontecendo contra membros da Igreja, não poupavam ninguém. A temperatura subia vertiginosamente e a guerra se aproximava. Naquele período de selvageria, se incubava nas ruas e nas montanhas a eclosão de uma resistência organizada e armada, posteriormente representada no grupo guerrilheiro de esquerda FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional).
Por sua vez, Monsenhor Romero continuou fortalecendo uma espécie de aliança por justiça social com as organizações populares. Pregava a cordura e a reflexão daqueles que colecionavam corpos de civis indefesos. No entanto, assim como seu ativismo crescia, também aumentavam as ameaças.
Um dia antes de sua morte, na homilia do Domingo de Ramos, Monsenhor Romero fez um apelo aos corpos militares: “Eu queria fazer um chamado, de maneira especial, aos homens do Exército. E concretamente às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis… Irmãos, são do nosso mesmo povo. Matam seus irmãos camponeses. E frente a uma ordem de matar que seja dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus, que diz: ‘Não matarás’. Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a Lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém precisa cumpri-la”.
A última “rebeldia” lhe custou a vida. Na manhã seguinte, mesmo ciente do risco que corria, Monsenhor Romero decidiu rezar uma missa. No altar, recebeu um tiro disparado por um atirador de elite do Exército salvadorenho. Durante seu enterro, na catedral de São Salvador, homens armados dispararam contra a multidão — em sua maioria pessoas muito humildes —, instaurando o caos e matando dezenas de salvadorenhos. O episódio é apontado como o gatilho inicial da guerra que perduraria até 1992.
Seu sacrifício o alçou à figura de beato. De fato, a gênese do mito em torno da figura de Romero está justamente na valentia com a qual enfrentou a brutalidade da repressão institucional. Mesmo sabendo que poderia ser morto a qualquer momento, Romero não deixou de denunciar as numerosas violações de direitos humanos em El Salvador. Esteve do lado dos pobres até o fim.
Mas sua morte também foi símbolo de um momento de recrudescimento da direita não só salvadorenha, mas latino-americana, em sua ofensiva contra as lutas populares. Por meio da bala, governos fantoches continuavam no poder sob a tutela dos Estados Unidos, então preocupados em isolar as revoluções cubana e nicaraguense e em ampliar seu escopo de domínio. Eram tempos de Guerra Fria, que, para a América Latina, não foram nada frios.
Décadas depois, essas ditaduras já não existem. Em El Salvador, governa há seis anos a FMLN, convertida em partido após a assinatura dos Acordos de Paz de 1992. Governos progressistas no Brasil, Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia e outros países foram sequencialmente eleitos após a chegada ao poder de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, que inaugurou uma nova era na região.
No entanto, ao mesmo tempo em que acontece a beatificação de Monsenhor Romero, a América Latina se vê novamente de frente com os desafios e as consequências de se enfrentar não somente a herança colonial, mas também a dominação estadunidense.
A pobreza e a desigualdade social ainda são barreiras reais ao pleno desenvolvimento do continente. Além disso, há recentes exemplos de desestabilização de Washington, como as ameaças contra o governo de Nicolás Maduro, os golpes contra Manuel Zelaya em Honduras (2009) e Fernando Lugo no Paraguai (2012) e a falsa “Guerra às Drogas” refletida principalmente na ascensão do narcotráfico mexicano e que é usada para aumentar a presença militar na América Central com uma nova estratégia: a aliança do Triângulo do Norte.
“É preciso mudar desde a raiz todo o sistema”, disse uma vez Monsenhor Romero, em uma frase que poderia facilmente ser atribuída a tantos outros revolucionários. Personagens que, assim como o agora beato Romero, simplesmente tiveram a ousadia de querer um mundo melhor.
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Destaque: Foto reproduzida da internet, com autoria atribuída a fontes diferenciadas (TP)