A constitucional e necessária autonomia da Defensoria, por Marcelo Semer

Por Marcelo Semer, em Sem Juízo

O parecer que segue é do jurista Daniel Sarmento e assenta a constitucionalidade da PEC que atribuiu autonomia à Defensoria Pública da União, hoje questionada por ADI ajuizada pelo governo federal.

O parecer não é inédito, mas atento à importância do tema, e a autonomia para o fortalecimento da Defensoria Pública, SemJuízo o reproduz. Atenção para o enfoque do parecerista no sentido de que jurisprudências invocadas na inicial da ADI são vinculadas a reformas das Constituições Estaduais (ligadas à violação da simetria) e que o constituinte não outorgou à chefia do Executivo o poder de veto sobre PECs e, no mesmo sentido, por consequência, a exclusividade de sua iniciativa.

  

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Autonomia da DPU e Limites ao Poder de Reforma da Constituição

SUMÁRIO. 1. A Consulta. 2. Igualdade, acesso à justiça e garantias institucionais da Defensoria Pública. 3. A inexistência de iniciativa privativa no processo legislativo das emendas à Constituição Federal. 4. Algumas distinções relevantes entre os limites ao poder constituinte decorrente dos Estados e ao poder de reforma da Constituição Federal. 5. A ausência de violação à cláusula pétrea da separação de poderes. 6. Conclusão.

  1. A Consulta

Consulta-me a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais – ANADEF, através do seu Presidente, Dr. Dinarte da Páscoa Freitas, a respeito da constitucionalidade do processo legislativo que resultou na promulgação da Emenda Constitucional nº 74/2013, que alterou o art. 134 da Constituição Federal, para estender à Defensoria Pública da União “a autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária”, que já eram asseguradas às defensorias públicas estaduais pelo texto constitucional[1].

A Consulta se deve ao ajuizamento, pela Presidente da República, da ADI nº 5.296 contra a referida EC nº 74/2013, fundada na alegação de que o referido ato normativo padeceria de inconstitucionalidade, em razão da suposta inobservância da reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo para a edição de normas sobre a matéria, que estaria, sob a sua ótica, consagrada no art. 61, § 1º, inciso II, alínea “c”, da Constituição.  Na petição inicial, a Requerente aduziu que, como a reserva de iniciativa se liga ao princípio da separação de poderes, o pretenso vício ofenderia, também, a cláusula pétrea correspondente (art. 60, § 4º, inciso III, CF).

Antes de passar ao exame da questão da validade do processo legislativo que resultou na EC nº 74/2013, é relevante salientar o pano de fundo fático-normativo da questão, o que se fará no próximo item.

  1. Igualdade, acesso à justiça e garantias institucionais da Defensoria Pública

Nosso país, infelizmente, se caracteriza pela dramática desigualdade social. Embora o Brasil não seja uma nação pobre, os recursos sociais existentes estão distribuídos de forma extremamente desigualitária.

A Constituição proclama a igualdade de todos (art. 5º, caput e inciso II), mas, na prática, o acesso real aos direitos continua profundamente assimétrico. Os excluídos estão muito mais expostos, por exemplo, ao arbítrio das autoridades públicas. São invariavelmente os pobres que ficam presos mais tempo do que deveriam nas nossas “masmorras medievais”, esquecidos pela Justiça e pelas autoridades prisionais. São quase sempre os excluídos que sofrem afrontas à sua inviolabilidade de domicílio, perpetradas pela polícia. São eles que padecem nas filas do SUS à espera de tratamentos e medicamentos; que são penalizados pela falta de vagas e de professores nas creches e escolas públicas; são eles as vítimas da tortura e do trabalho escravo.

Incrustrados nas malhas do nosso Estado Democrático de Direito, subsistem verdadeiros bolsões de estado de exceção, em que os direitos dificilmente penetram.[2]A população destes bolsões, esta “ralé”[3]que tem fome de justiça, é a clientela, por excelência, da Defensoria Pública.

A Constituição de 88 quis remediar este quadro, não se contentando em reconhecer simbolicamente os direitos fundamentais. Ao contrário, o constituinte de 87/88 preocupou-se em assegurá-los no mundo real, de forma a transpor o abismo que ainda separa as promessas generosas do texto magno da vida real das camadas excluídas da população. Para isso, apostou no acesso à justiça. Sem efetivo acesso à justiça, os direitos, proclamados com pompa e circunstância nos documentos jurídicos, tornam-se pouco mais do que floreios retóricos em folhas de papel, desprovidos de qualquer eficácia social.[4]Como consignaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth em obra clássica sobre o tema, “a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação”.[5]

Mais do que qualquer outra, a Defensoria Pública é a instituição vocacionada para assegurar o acesso à justiça, e, por seu intermédio, o gozo de todos os demais direitos fundamentais pelos excluídos.[6]O art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição estabelece que o “Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. E o art. 134 da Carta, por sua vez, dispõe que a Defensoria Pública é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”.

É por isso que, sem uma Defensoria Pública forte, bem estruturada, com recursos materiais e humanos adequados para o desempenho da sua missão constitucional, fica comprometido o gozo de todos os direitos fundamentais dos indivíduos e grupos hipossuficientes e vulneráveis. Foi o que ressaltou o Ministro Celso de Mello, em memorável decisão:

“Cumpre, desse modo, ao Poder Público dotar-se de uma organização formal e material que lhe permita realizar, na expressão concreta de sua atuação, a obrigação constitucional mencionada, proporcionando, efetivamente, aos necessitados plena orientação jurídica e integral assistência judiciária, para que os direitos e as liberdades das pessoas atingidas pelo injusto estigma da exclusão social não se convertam em proclamações inúteis nem se transformem em expectativas vãs. A questão da Defensoria Pública, portanto, não pode (e não deve) ser tratada de maneira inconsequente, porque de sua adequada organização e efetiva institucionalização depende a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas – que sofrem inaceitável processo de exclusão que as coloca, injustamente, à margem das grandes conquistas jurídicas e sociais”.[7]

Assim, é fundamental dotar a Defensoria Pública de um arcabouço institucional adequado[8], para evitar que, nas palavras da Ministra Carmen Lúcia, a “inanição administrativa” faça “definhar não só a Defensoria Pública, mas o próprio quadro de desvalia social dos mais carentes”[9].  Esta conclusão não resulta da especulação teórica abstrata, mas da análise de dados concretos da realidade.

É que, apesar do seu inequívoco relevo constitucional, e de sua importância crucial para a edificação de uma sociedade democrática e inclusiva, a Defensoria vem sendo tratada, ao longo dos anos, como uma espécie de “prima pobre” das demais instituições do sistema brasileiro de justiça. Número insuficiente de defensores, falta de estrutura material e de condições adequadas de trabalho, remuneração dos seus membros inferior à das outras carreiras jurídicas são algumas das mazelas que historicamente vêm lhe afligindo. Este “desprestígio”, francamente incompatível com os valores da Constituição, se deve, basicamente, a duas causas: o descaso em relação à clientela da Defensoria, composta pelas camadas mais desprivilegiadas da população; e o fato de que a atuação eficiente da instituição tende a gerar despesa pública, e não receita.

Não há dúvida de que o fortalecimento da Defensoria corresponde a um relevantíssimo interesse público primário da sociedade. Nada obstante, há uma perversa tendência dos governantes – infelizmente, até daqueles que apregoam supostos compromissos com os direitos dos excluídos – de preterir a Defensoria, no momento de definição das suas prioridades administrativas e financeiras. Esta foi a razão que levou o poder constituinte reformador a outorgar autonomia funcional e administrativa, além de poder de iniciativa de proposta orçamentária, à Defensoria: a constatação de que, sem estas garantias, a instituição tende a ser sistematicamente negligenciada nas escolhas do Poder Executivo, o que compromete gravemente o desempenho eficiente da sua missão de proteção dos direitos dos hipossuficientes, perpetuando um triste cenário de exclusão e injustiça social.

Em um primeiro momento, tais garantias foram explicitamente conferidas apenas às defensorias públicas estaduais, por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, que inseriu no texto maior o § 2º do art. 134. Tão arbitrária e injustificada foi a exclusão da Defensoria Pública da União, que a Consulente ajuizou a ADI nº 4282, sob o patrocínio do hoje Ministro Luís Roberto Barroso, buscando obter interpretação conforme a Constituição do referido preceito, de molde a estender as garantias institucionais lá contempladas à Defensoria Pública da União.

Antes, porém, que a ação fosse julgada pelo STF, o poder constituinte reformador atuou no sentido de estender expressamente as garantias institucionais do art. 134, § 2º, da Constituição, à Defensoria Pública da União, por meio da EC nº 74/2013, que foi aprovada de modo praticamente unânime no Congresso Nacional,[10]com o apoio, inclusive, de toda a bancada do governo.

Lamentavelmente, o disposto na referida emenda constitucional já vem sendo descumprido pelo governo federal. Com efeito, a Presidente da República deixou de incorporar a proposta orçamentária da Defensoria Pública da União ao projeto de lei orçamentária de 2015, fato que motivou a impetração do Mandado de Segurança nº 33.193 perante o STF, contra o ato de S. Exa. Felizmente, a Suprema Corte não ficou inerte diante da ofensa clara à Constituição. A Ministra Rosa Weber, na qualidade de Relatora do feito, proferiu corajosa decisão liminar,[11]para assegurar a apreciação pelo Congresso Nacional da proposta orçamentária elaborada pela DPU, como parte integrante do projeto de lei orçamentária anual de 2015.

Não bastasse, a Presidente também se insurgiu contra a EC 74/2013, ajuizando a ADI 5.296, sob o frágil argumento de que a reforma constitucional seria inconstitucional, por suposto vício de iniciativa. Mais uma vez, o interesse público secundário na economia de recursos foi posto na frente da proteção dos direitos fundamentais dos hipossuficientes.

Os dados disponíveis sobre a Defensoria Pública da União revelam a urgência da efetiva implementação das garantias institucionais que o governo federal quer agora amputar. De acordo com informações oficiais,[12]em março de 2014 a instituição cobria apenas 64 seções judiciárias da Justiça Federal, o que correspondia a apenas 24% das existentes no país, que à época totalizavam 271. Portanto, em mais de 3/4 das nossas seções judiciárias, os jurisdicionados pobres simplesmente não podiam contar com a DPU.

Apesar da sua clara atribuição constitucional, a Defensoria Pública da União, por falta de pessoal e carência de recursos, simplesmente não atua na Justiça do Trabalho, afora em um “projeto piloto” no âmbito do Distrito Federal. Isto apesar da presença maciça de pessoas carentes nos conflitos laborais.

A instituição contava, em março de 2014, com apenas 555 defensores públicos federais em seus quadros, que deveriam atuar perante nada menos que 8.175 magistrados(!): 1714 juízes federais, 3.250 juízes do trabalho, 3.178 juízes eleitorais, 33 juízes militares federais togados e 82 ministros de tribunais superiores[13]. Implantada de forma “emergencial e provisória” pela Lei 9.020/95, a Defensoria Pública da União, 20 anos depois, continua atuando sem contar com carreiras administrativas próprias.

Estes dados revelam deficiências crônicas da DPU, e apontam a importância, sob o prisma dos valores constitucionais, de se dotar tal instituição com a autonomia necessária para se estruturar de modo adequado ao desempenho da sua missão constitucional. Sem isso, não bastará o trabalho abnegado e competente dos defensores. Nem o seu esforço hercúleo será suficiente para assegurar que as funções da DPU – tão essenciais à justiça e à inclusão – sejam prestadas de forma minimamente adequada. Os prejudicados não serão apenas os defensores. Muito mais do que eles, os perdedores serão os pobres, a “ralé”, as camadas mais vulneráveis da população brasileira.

  1. A inexistência de iniciativa privativa no processo legislativo das emendas à Constituição Federal

As regras sobre iniciativa privativa não se aplicam à reforma da Constituição Federal. Elas estão inseridas no art. 61 do texto magno, que trata do processo legislativo das leis ordinárias e complementares. A norma que disciplina o poder de iniciativa na reforma constitucional é o art. 60, caput, que estabeleceu hipótese de iniciativa comum, como se depreende claramente do seu texto:

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II – do Presidente da República;

III – de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.”

Não cabe ao intérprete estabelecer restrições onde não as quis o constituinte. Se desejasse estender as regras sobre iniciativa privativa de leis ordinárias e complementares às emendas à Constituição Federal, o constituinte tê-lo-ia feito expressamente. A hipótese não é de lacuna, a ser suprida pela via analógica, mas de silêncio eloquente. Por isso, em obra doutrinária já consignei: “Diferentemente do que ocorre com as leis ordinárias e complementares, não há casos de iniciativa privativa para a reforma constitucional”.[14]

Nesse mesmo sentido, a doutrina constitucional alude à titularidade do poder de iniciativa das emendas constitucionais – compartilhado pelas entidades acima listadas -, sem fazer qualquer alusão à aplicação, à hipótese, das regras sobre iniciativa privativa, previstas na Constituição apenas para as leis ordinárias e complementares.[15]

Por outro lado – e este ponto é fundamental – nenhum dos precedentes do STF invocados na petição inicial diz respeito a emendas à Constituição Federal. Como se verá no próximo item, todos eles foram relativos ao controle das mudanças das constituições estaduais, e se relacionam à aplicação do princípio da simetria, no plano do processo legislativo estadual, que não tem qualquer pertinência em relação à reforma da Constituição Federal. Assim, ao contrário do que afirmou a Requerente, a jurisprudência do STF nãotem precedentes no sentido de que as regras sobre iniciativa referentes ao processo legislativo ordinário também se estendem ao poder de reforma da Constituição Federal.[16]

A inexistência de iniciativa privativa do Poder Executivo no processo de emenda à Constituição também é decorrente da interpretação teleológica e sistemática da Carta. O poder constituinte originário não quis atribuir hegemonia à Presidência da República no processo de alteração da Constituição, em sintonia, neste ponto, com a tendência existente na matéria no Direito Constitucional Comparado.[17]Por isso, não conferiu ao Chefe do Executivo o poder de veto em relação às emendas. Estas, como se sabe, são promulgadas pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 60, § 3º), sem prévia submissão à fase de sanção e veto, presente no processo legislativo ordinário.

Ora, seria profundamente incongruente negar o direito de veto, e, ao mesmo tempo, atribuir a iniciativa privativa de matérias importantes ao Presidente da República no campo da reforma constitucional. Afinal, a iniciativa privativa configura mecanismo de bloqueio deliberativo ainda mais poderoso do que o veto, já que este é superável pelo Congresso, enquanto aquela não o é.

Não bastasse, existe um argumento adicional contrário à afirmação da iniciativa privativa da Presidente da República, que se relaciona à natureza do tema versado na EC nº 74/2013.  É que toda a argumentação que lastreia a suposta iniciativa privativa de um poder do Estado para edição de emendas constitucionais sobre certos temas se liga à preservação da sua autonomia.

Ocorre que, por diversas razões já explicitadas anteriormente, o funcionamento da Defensoria Pública não é matéria concernente à autonomia do Poder Executivo. Pelo contrário, trata-se de tema afeto aos interesses da sociedade civil, especialmente dos seus segmentos mais vulneráveis, cujos direitos não podem ficar à mercê da vontade monocrática da Presidente da República. A adoção da tese advogada na ADI 5.296 geraria um problema constitucional e social insolúvel: a subordinação da DPU ao governo tem ensejado a insuficiência da sua atuação em favor dos direitos dos hipossuficientes, mas o problema só poderia ser corrigido com a concordância de quem o causou – o próprio Poder Executivo, através da sua Chefe. Em termos coloquiais, atribuir à Presidente da República o poder absoluto de decidir sobre a possibilidade de deliberação congressual a propósito da autonomia da DPU, mesmo em sede de emenda constitucional, tem implicações similares a aceitar que “a raposa se torne a única vigia do galinheiro”. Adotada a tese, só uma ruptura com a ordem vigente, com novo exercício do poder constituinte originário, poderia superar a recalcitrância do Poder Executivo em promover uma mudança essencial à garantia dos direitos fundamentais dos pobres.

Saliente-se, por fim, que inúmeras emendas constitucionais já foram aprovadas sem observância das regras sobre iniciativa privativa inseridas na disciplina das leis ordinárias e complementares. Neste sentido, por exemplo, a EC 45/2004, que resultou de proposta apresentada por deputados federais, realizou a reforma do Judiciário, instituindo o CNJ, mudando a composição das cortes trabalhistas e extinguindo os tribunais de alçada, dentre outras medidas. No âmbito do processo legislativo infraconstitucional, a iniciativa deste tipo de matéria caberia ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 96, inciso II, da Constituição. Se prevalecesse a argumentação formulada na ADI 5.296, ter-se-ia que concluir no sentido também da inconstitucionalidade da EC 45/04, tão importante para o país. Todavia, o STF, no julgamento da ADI 3.367,[18]considerou constitucional a referida emenda.[19]

Por todas estas razões, não se aplicam ao processo de reforma constitucional as regras sobre iniciativa legislativa privativa contidas no art. 61, §1º, da Constituição. No próximo item, pretendo demonstrar que a hipótese difere significativamente daquela que envolve emendas às constituições estaduais, que é a examinada nos precedentes do STF colacionados na inicial da ADI 5.296.

  1. Algumas distinções relevantes entre os limites ao poder constituinte decorrente dos Estados e ao poder de reforma da Constituição Federal

Toda a argumentação contida na petição inicial da ADI 5.296 se assenta em uma grande confusão entre os limites impostos ao poder de reforma da Constituição Federal, e aqueles incidentes sobre o poder de elaboração e alteração das constituições estaduais – conhecido como poder constituinte decorrente. As decisões citadas pela Requerente, que aduziram que as alterações constitucionais também devem respeitar as regras sobre iniciativa privativa são, todas elas, relativas a emendas a constituições estaduais, e invocam argumentos inaplicáveis ao processo de reforma da Lei Maior.

É que, na leitura do STF, o poder constituinte decorrente sofre uma ampla gama de limitações,[20]tão extensas que Luís Roberto Barroso chegou a registrar: “as Constituições estaduais são um artificialismo importado, seu espaço legítimo de atuação é mínimo e desimportante e, a despeito do discurso dogmático laudatório, não passam de leis orgânicas”.[21]Já em relação ao poder de reforma da Constituição Federal, impera uma postura de maior comedimento, justificada pelas legítimas preocupações de se evitar o engessamento excessivo da Constituição e de se proteger o autogoverno democráticode cada geração,[22]como se verá no próximo item.

Uma das limitações impostas ao poder constituinte decorrente consiste no princípio da simetria, que postula que, em sua auto-organização, os demais entes federativos devem observar as normas gerais impostas pela Constituição à União Federal[23].  A jurisprudência do STF extraiu desse princípio a exigência de que as regras do processo legislativo estadual espelhem, na medida do possível, aquelas que a Constituição instituiu para a edição das normas federais. E foi além disso, para também impor às assembleias legislativas que não se utilizem de emendas constitucionais para promover modificações no ordenamento que não poderiam ser introduzidas, no âmbito do processo legislativo ordinário ou complementar, sem a iniciativa do governador de Estado.[24]

Nessa matéria, entendeu o STF que o modelo de separação de poderes da Constituição Federal deve ser seguido pelos Estados, e que o mesmo engloba as regras sobre iniciativa privativa. Para a Corte, permitir que uma emenda constitucional estadual proposta por parlamentares trate de tema que, no processo legislativo ordinário ou complementar, é de iniciativa reservada ao governador, equivaleria a coonestar uma fraude às regras que são de observância compulsória pelos Estados.

Esta ratio ficou claramente registrada no julgamento da ADI 3930[25], cuja ementa destaca a origem da vinculação das emendas à constituição estadual às regras sobre iniciativa privativa – o princípio da simetria:

“I- À luz do princípio da simetria, a jurisprudência desta Suprema Corte é pacífica ao afirmar que, no tocante ao regime jurídico dos servidores militares estaduais, a iniciativa de lei é reservada ao Chefe do Poder Executivo local por força do art. 61, § 1º, II, f, da Constituição.

II- O vício formal não é superado pelo fato de a iniciativa legislativa ostentar hierarquia constitucional.

III Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 148-A da Constituição do Estado de Rondônia e do artigo 45 das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta local, ambos acrescidos por meio da Emenda Constitucional nº 56, de 30 de maio de 2007”(grifei).

Nesse julgamento, afirmou-se que o objetivo da extensão das regras de iniciativa privativa à reforma das cartas estaduais é impedir que, pela via da emenda, possa o legislativo estadual burlar o princípio da simetria, que lhe impõe a observância das referidas normas. É o que se lê no voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio:

“Presidente, a novidade é que não houve apresentação de um projeto de lei, mas de emenda constitucional. Acontece que esta via não serve ao drible da reserva de iniciativa.

Por isso, acompanho o relator.”

Daí se percebem duas razões adicionais para a evidente inaplicabilidade das regras sobre iniciativa privativa ao processo de reforma da Constituição Federal: (i) este processo, por óbvio, não se sujeita ao princípio da simetria, que está ligado à auto-organização dos entes federados, e não à alteração da Constituição Federal; e (ii) ainda que assim não fosse, não seria possível cogitar, na hipótese, de drible à iniciativa privativa de lei do Chefe do Executivo, já que não se pode tratar do tema da EC 74/2013 por meio de lei, mas tão somente por intermédio de emenda constitucional.

Primeiro ponto. A simetria, como já assinalado, não guarda nenhuma relação com a elaboração das emendas à Constituição Federal. Estas, como será analisado no próximo item, têm de respeitar, no seu conteúdo, o núcleo essencial do princípio da separação de poderes, mas estenão se relaciona com o procedimento de elaboração das emendas, já que consiste em limite material, e não em limite formal ao poder de reforma da Constituição.

Segundo ponto. Uma lei não poderia assegurar autonomia funcional ou administrativa à Defensoria Pública da União, nem muito menos atribuir a esta o poder de iniciativa das respectivas propostas orçamentárias. Tais matérias só podem ser veiculadas em sede constitucional, pois modificam institutos que a própria Constituição consagra. Assim, seria absurdo conceber a edição da EC 74/2013 como tentativa de burla à iniciativa privativa do Poder Executivo em leis ordinárias e complementares, por uma simples razão: tais espécies normativas não poderiam, sequer em tese, tratar do assunto versado pela referida emenda.

Todas estas razões demonstram que não houve qualquer vício de iniciativa na elaboração da EC 74/2013. No próximo item, comprovar-se-á que tampouco existe inconstitucionalidade material no referido ato normativo.

  1. A ausência de violação à cláusula pétrea da separação de poderes

O princípio da separação de poderes, consagrado no art. 2º da Constituição, representa cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, inciso II, da Lei Maior.  As cláusulas pétreas, como se sabe, traduzem limites materiais ao poder de reforma da Constituição. Tais limites, como a sua própria designação já indica, dizem respeito ao conteúdo da emenda constitucional, e não ao respectivo procedimento.  Portanto, as cláusulas pétreas não especificam o modo como as emendas devem ser elaboradas, não tendo por isso qualquer relação com o poder de iniciativa do processo de reforma.

As cláusulas pétreas subtraem certas decisões fundamentais do constituinte originário da alçada do poder reformador. Elas representam o máximo grau de entrincheiramento de normas jurídicas, que são retiradas até mesmo do alcance das maiorias qualificadas necessárias à aprovação das emendas constitucionais. Reverter alguma decisão salvaguardada por uma cláusula pétrea, de acordo com a ortodoxia constitucional, só é possível por meio de uma ruptura institucional, com nova convocação do poder constituinte originário.

Diversas razões justificam que se adote uma interpretação parcimoniosa e não excessivamente abrangente das cláusulas pétreas. Em primeiro lugar, destaque-se a necessidade de prover a Constituição de mecanismos para que possa se ajustar às novas visões e necessidades que surgem com a evolução da sociedade. O excessivo enrijecimento da Lei Maior, por meio de uma interpretação muito elástica dos limites materiais ao poder de reforma, poderia ocasionar a sua “esclerose precoce”. Ou então provocar demandas de ruptura institucional, com o que um instrumento vocacionado para a garantia da estabilidade da ordem constitucional acabaria, paradoxalmente, se convertendo em fonte de instabilidade.[26]Foi o que registrou com sabedoria o Ministro Gilmar Mendes, ao consignar que “a aplicação ortodoxa das cláusulas pétreas, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar a sua ruptura”.[27]

Não bastasse, a banalização dos limites ao poder de reforma, por meio de uma interpretação muito ampla das cláusulas pétreas, também não se concilia com o princípio democrático, que postula o direito de cada geração de se autogovernar.[28]Afinal, o entrincheiramento de uma decisão, sob o manto de uma cláusula pétrea, implica vedar ao povo, em cada momento de sua história, a possibilidade de deliberar sobre aquele assunto.[29]

Isto não significa que as cláusulas pétreas sejam ilegítimas, ou que devam ser objeto de uma interpretação necessariamente restritiva. Pelo contrário, elas são fundamentais para a preservação dos valores e princípios básicos de uma comunidade política, prestando-se, na feliz expressão de Oscar Vilhena Vieira, à salvaguarda da “reserva de justiça”[30]do sistema jurídico. Significa, isto sim, que é necessário interpretar com equilíbrio e moderação tais limites materiais, de modo, de um lado, a não expor à erosão os princípios básicos da ordem constitucional, mas também, do outro, a não bloquear a deliberação democrática legítima nem impedir o ajuste da Constituição às novas necessidades e anseios sociais. Foi o que registrou Luís Roberto Barroso, em bela passagem:

“A locução ‘tendente a abolir’ deve ser interpretada com equilíbrio. Por um lado, ela deve servir para que se impeça a erosão do conteúdo substantivo das cláusulas protegidas. De outra parte, não deve prestar-se a ser uma inútil muralha contra os ventos da história, petrificando determinado status quo. A Constituição não pode abdicar da salvaguarda de sua própria identidade, assim como da preservação e promoção de valores e direitos fundamentais; mas não deve ter a pretensão de suprimir a deliberação majoritária legítima dos órgãos de representação popular, juridicizando além da conta o espaço próprio da política. O juiz constitucional não deve ser o prisioneiro do passado, mas militante do presente e passageiro do futuro.”[31]

Por esta razão, a melhor doutrina e a jurisprudência do STF interpretam o art. 60, § 4º, da Constituição, não como uma proibição absoluta de que haja qualquer tipo de alteração nos preceitos e institutos relacionados às cláusulas pétreas, mas sim como interdição de mudanças que afetem o núcleo essencial dos princípios e bens jurídicos protegidos.[32]Como ressaltou a Corte, pela voz do Ministro Sepúlveda Pertence, “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”.[33]

Assentada esta premissa, cabe analisar a forma como ela se aplica à cláusula pétrea da separação de poderes, a fim de aferir se esta foi ou não afrontada pela EC 74/2013.

O princípio da separação de poderes, como se sabe, foi concebido pelo constitucionalismo liberal visando a assegurar a moderação no exercício do poder e a proteger a liberdade dos governados.  A ideia essencial, difundida por Montesquieu,[34]é a de que a atribuição de funções estatais a órgão e pessoas diferentes evita a concentração excessiva de poder nas mãos de qualquer autoridade, contendo o despotismo. Outra contribuição fundamental ao desenvolvimento do princípio se deu por influência do constitucionalismo norte-americano,[35]que articulou a necessidade de instituição de mecanismos de “freios e contrapesos” (checks and balances), que permitissem controles recíprocos entre os poderes, de forma a evitar que qualquer deles pudesse atuar abusivamente no âmbito das respectivas competências.

No cenário contemporâneo, a significativa mudança no papel do Estado, que passou a intervir mais fortemente no âmbito das relações sociais, ensejou uma releitura do princípio em questão. Por um lado, não há mais tanta ortodoxia no que concerne à divisão das funções estatais: admite-se, por exemplo, uma participação maior do Executivo e mesmo no Poder Judiciário no processo de produção do Direito. Por outro, a separação de poderes passou a ser mais diretamente associada a preocupações com outros objetivos, especialmente a legitimação democrática da atuação estatal, a sua eficiência e profissionalismo, e a proteção efetiva dos direitos fundamentais[36]. Nesse contexto, como registrei em obra doutrinária, “a cláusula pétrea da separação de poderes deve ser pensada sem fetichismos institucionais que inibam qualquer possibilidade de experimentalismo democrático na busca de arranjos estruturais mais adequados aos desafios do Estado contemporâneo”[37].

Portanto, a cláusula pétrea da separação de poderes não visa a congelar os exatos delineamentos do arranjo institucional definido pelo poder constituinte originário.[38]Ela objetiva, isto sim, impedir concentrações excessivas de poder que recaiam sobre qualquer dos órgãos da soberania, ou práticas que ponham sob grave risco os valores liberais e democráticos salvaguardados pelo referido princípio. Ela almeja, em síntese, impedir que “se verifique, de forma direta ou oblíqua (…) um fortalecimento ou enfraquecimento desmedido de ‘um poder’, criando-se uma relação de subordinação entre os poderes onde deveria haver vínculo de coordenação harmônica”.[39]

No caso da EC 74/2013, é evidente que não ocorreu a afronta à cláusula pétrea. A emenda operou um ajuste pontual na engenharia institucional do Estado brasileiro, visando a tornar mais efetiva a atuação da Defensoria Pública da União, e, com isso, a aprimorar a proteção aos direitos fundamentais dos excluídos. Não houve subtração desmedida das atribuições e poderes do Executivo, mas alteração singela, conquanto indispensável para a concretização dos objetivos fundamentais alentados pela própria Constituição.

Diante do exposto, pode-se concluir que a cláusula pétrea da separação de poderes (art. 60, § 4º, III, CF), encarnando limite material, e não formal ao poder de reforma, não tem qualquer relação com o poder de iniciativa das emendas constitucionais.  Por outro lado, a EC 74/2013 não afrontou, em seu conteúdo, a referida cláusula pétrea, pois sequer tangenciou o núcleo essencial do princípio da separação de poderes.

  1. Conclusão

Diante do que foi exposto, conclui-se que a Emenda Constitucional nº 74/2013 não violaqualquer limite ao poder de reforma da Constituição. Ela não padece de vício de iniciativa, porque as regras sobre iniciativa privativa, previstas no art. 61, §1º, da Constituição, não se estendem às emendas à Constituição Federal.  Ela tampouco ofende, em seu conteúdo, a cláusula pétrea da separação de poderes, pois está longe de atingir o núcleo essencial do princípio.

A atribuição de autonomia funcional e administrativa, e de iniciativa de proposta orçamentária à Defensoria Pública da União se afigura essencial para que tal instituição possa cumprir adequadamente a sua missão constitucional, e atuar de forma mais efetiva na garantia dos direitos dos excluídos. Por isso, a EC nº 74/2013, mais do que compatível com a Constituição, é medida indispensável para a promoção de objetivos fundamentais da ordem constitucional, ligados à construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, em que os direitos dos pobres sejam mais do que promessas vazias em “pedaços de papel”.

É o parecer.

Rio de Janeiro, 14 de abril de 2015.

DANIEL SARMENTO

Professor de Direito Constitucional da UERJ

Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ

Pós-doutor na Yale Law School

[1] A EC 74/2013 também aludiu à Defensoria Pública do Distrito Federal. Porém, a expressa extensão a esta das garantias institucionais atribuídas às defensorias estaduais pela EC 45/04 já tinha sido anteriormente assegurada pelo art. 2º da EC 69/2012.

[2] Veja-se, a propósito, Oscar Vilhena Vieira. “A Desigualdade e a Subversão do Estado de Direito”. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (Orgs.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 191-216.

[3] Cf. Jessé de Souza (Org). A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

[4] Por essa razão, Ana Paula de Barcellos afirmou que a garantia do acesso à justiça integra o mínimo existencial, compondo o conteúdo nuclear do princípio da dignidade da pessoa humana. Cf. Ana Paula de Barcellos. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.  Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 293-301.

[5]Mauro Cappelletti e Bryant Gath.

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