Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
O menino João Cândido era negro, mas nasceu livre, em 1880, num lugar que já anunciava seu destino: Encruzilhada, nas planuras do Rio Grande do Sul. Cresceu gaudério, afeito as lides do campo. Sua iniciativa e capacidade de trabalho atraiu a atenção de um político local, capitão de fragata, Alexandrino de Alencar, que foi um dos comandantes da Revolta da Armada, uma revolta de oficiais contra a pouca atenção dada à Marinha pelo então Presidente da República, marechal Floriano Peixoto. Alencar era comandante do encouraçado Aquidabã na última batalha, próxima à ilha de Anhatorim nos arredores da cidade de Desterro, hoje Florianópolis. Com o fim dessa rebelião, que foi derrotada, ele chegou a ter de se exilar. Mas, retornando, viu no garoto João, um líder, e o recomendou à Marinha quando este completou 13 anos de idade.
Assim, enquanto a maioria dos marinheiros era recrutada à força pela polícia, João fez-se aprendiz na Marinha de Porto Alegre, sendo transferido para o Rio de Janeiro, como grumete, em 1895, então com 14 anos. E o guri, que nascera no solo firme da campanha gaúcha, se fez homem do mar, predestinado a cumprir um destino que mudaria a vida de todos os marinheiros.
Nos caminhos do mar, João Cândido conheceu muitos lugares, onde pode aprender sobre seu ofício e sobre a luta dos trabalhadores. Numa das viagens que fez à Grã-Bretanha, em 1908, ficou sabendo sobre a revolta dos marinheiros russos (do Encouraçado Potemkin), acontecida em 1905, na qual reivindicavam melhor alimentação e condições de trabalho. João atentou. Ele já era uma liderança entre os colegas, justamente por sua preocupação com a situação dos marinheiros e por sua qualidade como timoneiro.
Naqueles dias era ainda bastante comum o uso da chibata como castigo dentro da Marinha brasileira, mesmo já tendo sido legalmente abolido. Isso não era incomum visto que 90% do quadro era formado de negros e mulatos. O tempo passara, a escravidão já fora abolida, mas o tratamento com os negros permanecia igual. E esse tema do castigo era muito presente entre os marinheiros. À boca pequena se discutia e se conspirava contra as chibatadas, e João Cândido estava no centro desses debates. Conforme consta na sua ficha, nos quinze anos em que permaneceu na Marinha, foi castigado com a chibata em nove ocasiões, preso entre dois a quatro dias em celas solitárias “a pão e água”, além de ter sido duas vezes rebaixado de cabo a marinheiro. Ele organizava as lutas e bem sabia o que eram os maus tratos praticados pela Marinha.
No ano de 1893, na canhoneira Marajó, um grupo de marinheiros já havia esboçado revolta contra o excesso de castigos físicos, exigindo a troca do comandante, mas não ousavam pedir o fim do castigo. Foi só depois do retorno da Grã Bretanha, em 1908, com as notícias da revolta dos russos, que a coisa começou a esquentar por aqui. No começo, a luta dos marinheiros se fez no campo institucional. Muitas audiências foram realizadas com políticos e até com o então ministro da marinha, o protetor de João Cândido, Alexandrino de Alencar. Toda essa movimentação contra os castigos corporais e melhores condições de trabalho junto aos parlamentares e dirigentes das forças armadas foi capitaneada pelo marinheiro João Cândido, de formidável figura. Negro, alto, forte, alegre, de olhar penetrante e risonho. Não havia dúvidas com relação a sua liderança entre os marinheiros.
As negociações não deram em nada e os marinheiros decidiram então que era chegada a hora de uma revolta. Marcaram o dia 25 de novembro como o dia da sublevação. Mas, no dia 21, um fato antecipou o plano: um marinheiro de nome Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não pararam nem quando o jovem já havia desmaiado. Indignados, os marinheiros decidiram começar a revolta no dia seguinte.
A revolta
E assim foi. A ideia era o tomar o navio Minas Gerais naquela noite, visto que o capitão dormiria fora. Eles pegariam as armas, dominariam os oficiais em seus camarotes, assumiriam o controle do navio e, depois, de todos os outros que estavam na Baia da Guanabara. Mas, o destino conspirou contra. O capitão voltou mais cedo para o navio, e um marinheiro atacou um oficial de serviço, provocando a reação de todo o comando. Arma-se uma escaramuça e um dos marinheiros é ferido pelo comandante, que insiste em controlar a rebelião. Isso provoca a ira dos trabalhadores que partem para cima do comandante, até que ele é atingido por um tiro na cabeça.
Naquela noite de luta morrem no Minas Gerais, o comandante, dois oficiais e três marinheiros . Também acontecem mortes em outros navios e, assim, começa a rebelião que mobilizou 2.379 homens. João Cândido é escolhido para ser o comandante-em-chefe de toda a esquadra revoltada, composta por 4 navios, incluindo os dois encouraçados fabricados na Inglaterra, considerados os mais potentes do mundo à época: Minas Gerais e São Paulo.
João assume o comando, controla os motins e inicia negociações com a marinha exigindo o fim dos castigos corporais. Enquanto isso mantém os canhões dos navios apontados para a capital. Chega a disparar um tiro contra o palácio do governo, enquanto passa um rádio para o presidente da República. É enfático: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira… Vossa Excelência tem o prazo de 12 horas para mandar-nos uma resposta satisfatória…”. Ali, falava já como almirante, o comandante da revolta. Na praia, o povo acompanhava, maravilhado, o balé dos navios amotinados.
Com os marinheiros dominando os mares, as conversas evoluíram e foi fechado um acordo no qual o governo se comprometia a acabar com o uso da chibata na Marinha, bem como a anistiar a todos os revoltosos. Mas, como costuma sempre acontecer, os governantes não cumpriram a palavra. Quando todos os rebeldes depuseram as armas, no dia 27 de novembro, e entregaram os navios, tiveram uma surpresa. O governo promulga, no dia seguinte, um decreto que permite a expulsão dos marinheiros que “representassem risco para a marinha”. Era a artimanha para trair a lei aprovada no senado da República e sancionada pelo presidente Hermes da Fonseca.
O governo também mantinha presos, apesar da anistia, muitos marinheiros que haviam participado da rebelião da chibata. Todos estavam confinados na Ilha das Cobras, onde eclodiu, em janeiro de 1911, um motim de fuzileiros navais. Nesse motim não havia uma pauta em questão, apenas era uma pré-defesa diante de boatos que diziam que o Exército iria atacar navios em represália por conta da revolta da chibata. Eram dias de muita confusão na Marinha. O governo foi implacável e bombardeou a ilha, onde estavam pouco mais de 200 homens. Depois, usou o motim na ilha como desculpa para proclamar estado de sítio e lei marcial.
Era a vingança de Hermes da Fonseca sobre os marinheiros. Depois do motim na Ilha das Cobras centenas de marinheiros foram mortos e outros dois mil foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre, destino dos 96 que lá ainda chegaram vivos.
O fim do almirante negro
João Cândido foi um dos que acabou expulso, acusado de favorecer os fuzileiros rebeldes. Foi preso em 13 de dezembro no quartel do exército, e transferido no dia de natal (24 de dezembro de 1910) para uma masmorra (a cela 5) na Ilha das Cobras, onde 16 de seus 17 companheiros de cela morreram asfixiados. Mais tarde ele contaria que 29 marinheiros e fuzileiros navais foram submetidos ao cal em duas celas da Ilha das Cobras. João é transferido em abril de 1911 para o Hospital dos Alienados, como louco. Chegou a voltar para a Ilha das Cobras de onde foi solto em 1912. Apesar de livre das acusações, João foi banido da Marinha e acabou no cais, trabalhando como estivador, descarregando peixe.
Sua figura valente sobreviveu na memória dos marinheiros, que sempre lhe renderam glórias, mas para a Marinha e para o resto do país, seu nome se esfumaçou, esquecido dentro da história oficial, sempre contada pelos vitoriosos. Muito tempo depois, em 1933, João Cândido foi procurado pelo líder da Ação Integralista Brasileira, Plínio Salgado, para se incorporar às fileiras desse movimento nacionalista de inspiração fascista. E o velho guerreiro acabou liderando um núcleo do movimento na Gamboa, bairro portuário do Rio de Janeiro. Segundo ele, entrou para o grupo de Plínio porque este possibilitava a filiação de negros e de mulheres. Naqueles dias o integralismo aparecia como uma novidade e muitas figuras importantes caíram no canto da sereia de um nacionalismo regenerador.
Mas, nem a aproximação com essa vertente bem à direita da política nacional fez com que a Marinha esquecesse o comandante da revolta que humilhou o governo de Hermes da Fonseca. Até uma homenagem que João Cândido receberia no Rio Grande do Sul em 1959 foi suspensa por interferência da Marinha. Foi perseguido até o final da vida, mesmo com a gradativa recuperação de sua heroica trajetória através de artigos de jornais e livros de história. Morreu aos 89 de idade, de câncer, muito pobre em São João de Meriti, interior do Rio de Janeiro.
A memória recuperada
Nos anos 70, João Bosco e Aldir Blanc imortalizaram o velho “almirante negro” com a música “O mestre-sala dos mares”, hoje um clássico da música popular brasileira. Em 1985 o historiador Hélio Leôncio Martins escreve “A revolta dos Marinheiros – 1910” e em 2003 o cinema mostra sua história no curta “Memórias da Chibata”. Em 2005 um projeto de lei propõe inscrever o nome de João Cândido no Livro dos Heróis da Pátria. Em 2007, João teve uma estátua inaugurada no antigo Palácio do Catete, que foi bombardeado durante a revolta. A estátua, de corpo inteiro, mostra João Cândido com as mãos no leme, de frente para o mar e de costas para o palácio do governo brasileiro, que traiu sua própria palavra quebrando a anistia aos marinheiros rebeldes.
Em 2008, 39 anos depois de sua morte, finalmente foi publicada no Diário Oficial da União, a lei que concedeu anistia ao líder da Revolta da Chibata e a todos os seus companheiros, mas não o reincorporou à Marinha, como era o seu desejo acalentado até a morte.
Em 2008, a estátua de João foi transladada até a Praça XV de novembro, no centro do Rio, num evento grandioso que contou com a presença do então presidente Lula. O representante da Marinha não compareceu. Em 2010, Lula batiza com o nome de João Cândido o primeiro petroleiro produzido no Brasil após um intervalo de 13 anos. Em 2012 começa a ser produzido o longa metragem “Chibata”, com patrocínio da Petrobrás, que contará a saga de João Cândido e seus companheiros na histórica revolta que aboliu o uso da chibata e marcou a vida nacional.
O negro bonito, de riso largo, que saiu da campanha gaúcha para o mar não está esquecido. Ele vive e viverá. E ainda há uma longa luta para travar que é a reincorporação de João à Marinha, tal qual ele sonhava. Enquanto isso não acontece o veremos nas tardes modorrentas do Rio, mão no leme, olhando atrevido para a terra, com os canhões engatilhados. Salve, almirante, nós não te esquecemos…
João Cândido foi um símbolo de resistência contra a opressão. Bosco e Blanc já o imortalizaram, fazendo justiça a sua coragem e dignidade. No país que ainda não aboliu de todo a escravidão, porém, há quem não o reconheça como um herói da luta pela liberdade de todos. Uma pena.