ADVOGADOS SEM FRONTEIRAS, integrante da Rede ASF – presente em 16 países, organização que trabalha pelo acesso à justiça e pela proteção dos direitos humanos no mundo, em defesa dos grupos mais vulneráveis, diante das violações de direitos perpetradas contra o povo Guarani-Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul, Brasil, e, especialmente no que diz respeito ao recente homicídio do Kaiowá Denilson Barbosa, 15 anos, da aldeia Tey’ikue, vem, por meio desta NOTA PÚBLICA, manifestar-se nos seguintes termos:
No dia 17 de fevereiro deste ano de 2013, Denilson Barbosa foi encontrado morto no município de Caarapó (MS), em uma estrada vicinal a sete quilômetros do perímetro urbano da cidade, vítima de disparos de arma de fogo.
Segundo relatos das duas testemunhas e sobreviventes, o crime ocorreu quando Denilson, seu irmão de onze anos e seu cunhado foram pescar no córrego Mbope’i, cuja nascente fica dentro do tekoha (“espaço onde se vive” em guarani) e cujo curso se dá por entre fazendas do entorno. As testemunhas relatam ainda que viram Denilson, o único que não conseguira fugir ante a aproximação dos três homens armados, ser espancado por esses três homens. O irmão e o cunhado da vítima identificam os três indivíduos que os atacaram como funcionários do fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalves, que detém a Fazenda Sardinha, vizinha ao tekoha em Caarapó.
É importante notar que os Guarani-Kaiowá vivem confinados no Mato Grosso do Sul em pequenas extensões territoriais. No caso de Caarapó, em 3.594 hectares de terra para um total de cinco mil pessoas.
Registra-se que não há acesso a recurso pesqueiro necessário para garantir a segurança alimentar das comunidades confinadas. Lideranças indígenas contam que os índios costumam pescar na área porque ali está o único riacho da região da reserva onde moram, motivo pelo qual muitos indígenas recorrem a ele como garantia e manutenção de sua própria subsistência. A Advogados Sem Fronteiras lembra que esses territórios podem configurar a extensão do território tradicional, pois trata-se de áreas imprescindíveis a seu bem-estar e a sua reprodução física e cultural, amparado pelo art. 231, §1º da Constituição Federal e arts. 7, 14 e 15 da Convenção n. 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (promulgada no Brasil pelo Decreto n. 5.051 de 2004).
Após o enterro do jovem Kaiowá, na tarde de 18 de fevereiro, familiares do indígena assassinado ocuparam o território reivindicado como tradicional, denominado por eles de Tekoha Pindo Roky. Em seguida, cerca de 200 famílias da aldeia Tey’ikue retomaram área onde se encontram até o presente momento. A Advogados Sem Fronteiras expressa a sua preocupação pela segurança das centenas de indígenas que se encontram sob ameaça nesse território e necessitam a imediata proteção por parte das autoridades federais e estaduais.
A Advogados Sem Fronteiras entrou em contato com diversas autoridades do Mato Grosso do Sul a fim de apurar o ocorrido, dentre elas, a delegacia estadual na qual foi aberto inquérito para investigação de homicídio. Nesse contato, foi informada de que o crime foi classificado como crime comum e, portanto, de competência da Justiça Estadual. A Advogados Sem Fronteiras considera essa classificação um equívoco, pois nega o fato de que o crime se insere no contexto mais amplo do conflito por demarcação das terras que os Guarani-Kaiowá ocupam tradicionalmente. Entendemos que o crime deve ser julgado pela Justiça Federal. Recebemos também relatos de representantes da Aty Guasu (“Grande Assembleia” dos Guarani-Kaiowá) de que Denilson Barbosa integrava uma família conhecida há anos por defender reivindicações de terras, o que é mais um indício do caráter político do assassinato, indício este que não pode ser ignorado pelas autoridades policiais ao classificarem o crime como crime comum.
A Advogados Sem Fronteiras, ao acompanhar as denúncias de violações de direitos humanos ocorridas no Mato Grosso do Sul, constata que há uma prática frequente de descaracterização de crimes ocorridos contra indígenas: ameaças das lideranças indígenas, que são defensores de direitos humanos dos povos indígenas, não são tipificadas como tais, como se percebeu no caso do cacique Ládio Veron, em que uma ameaça de morte foi classificada como “violência doméstica”. Ao mesmo tempo, assassinatos de indígenas, como o caso em questão, são classificados como “crimes comuns”. Nesse sentido, a Advogados Sem Fronteiras entende que classificar esse crime como homicídio comum, não reconhecer a existência há décadas de um conflito fundiário no Mato Grosso do Sul e o histórico genocídio do povo Guarani-Kaiowá, não reconhecer que o crime está relacionado ao conflito por demarcação de terras dos povos indígenas, não reconhecer a natureza racista da violência e sua relação com a etnia da vítima, configura certamente uma forma de omissão por parte do Estado Brasileiro e do Governo Estadual do Mato Grosso, que nega, assim, justiça aos Guarani-Kaiowá.
A despeito de o fazendeiro perpetrador do crime já ter assumido a autoria do fato, o seu depoimento é contraditório com os fatos relatados pelas testemunhas, uma vez que afirma que a morte teria sido acidental e nega os espancamentos perpetrados contra Denilson Barbosa. Além disso, relatos de um indígena que pediu para não ser identificado afirmam que a polícia não teria feito uma perícia ou exame de corpo de delito adequado. A Advogados Sem Fronteiras teme que a ausência uma perícia adequada possa impedir que os fatos sejam devidamente investigados, culminando na impunidade.
O homicídio de Denilson Barbosa, ocorrido em 17 de fevereiro deste ano de 2013, é a mais recente evidência da omissão do Estado Brasileiro na proteção dos direitos humanos dos povos indígenas, que permite a impunidade dos muitos assassinatos já ocorridos contra os Guarani-Kaiowá e que não garante a proteção à vida e à integridade física desses povos.
Frente a todo o exposto, a Advogados Sem Fronteiras vem, por meio desta NOTA PÚBLICA, ratificar o compromisso já assumido para a defesa dos direitos do povo Guarani-Kaiowá. Requer que se reconheça, no caso do assassinato de Denilson Barbosa: a natureza de crime hediondo, por tratar-se de prática qualificada e sistemática e o reconhecimento do contexto de conflito fundiário e de racismo quanto à identidade indígena da vítima. Requer, também, a devida proteção das centenas de Guarani-Kaiowá que se encontram na Tekoha Pindo Roky e, ainda, que o crime seja investigado pela Polícia Federal com intervenção do Ministério Público Federal.
A Advogados Sem Fronteiras exige a observância da Constituição Federal de 1988, da Convenção n. 169 da OIT, da Lei n. 8.072 de 1990 (Lei de Crimes Hediondos) e normas correlatas. Exige, ainda, a efetivação da segurança dos povos indígenas confinados nas várias partes dos tekoha que habitam, precariamente. O Estado Brasileiro deve agir, sob pena de omissão, para a urgente demarcação das terras indígenas reivindicadas e, até que ela ocorra, deve garantir a segurança desses povos.
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Enviada por Tereza Amaral para Combate ao Racismo Ambiental.