Márcia Leite, antropóloga* – Em colaboração ao Canal Ibase
O caso do assalto à igreja na Cidade de Deus [veja esta matéria] ilumina como o Estado, através de suas instituições e funcionários, se apresenta e atua nos territórios de favela. E os relatos dos moradores – tanto os obtidos pelo Ibase como os que nós do CEVIS/UERJ colhemos em nossa pesquisa FAPERJ sobre os impactos das Unidades de Polícia Pacificadora/UPPs nessas localidades – incidem exatamente sobre este ponto, expressando a experiência de Estado daqueles que vivem, ainda, à margem da cidade, ou seja, daqueles que não são plenamente reconhecidos e tratados como cidadãos. É por isto que não têm acesso aos mesmos direitos que a população moradora nos bairros da “cidade formal”.
Esta é uma questão amplamente aceita, quando se trata do acesso dos moradores de favela aos equipamentos urbanos e a alguns outros serviços públicos. O próprio Estado o reconhece, ao implantar, nas favelas “pacificadas”, o programa municipal UPP Social, cujo objetivo declarado é a integração social e urbana desses territórios e de seus moradores à cidade e à sociedade. Mas, no que se refere à segurança pública, a questão se apresenta de outra maneira. Afinal, o que o Programa de Pacificação de Favelas vem realizando neste campo? A orientação e a prática deste programa centram-se na eliminação do controle ostensivamente armado desses territórios pelos grupos de traficantes de drogas ilícitas. É a isto que o secretário Beltrame se refere quando apresenta a maior das realizações das UPPs: o “fim do fuzil”.
Claro que o “fim do fuzil” é importante em termos de redução da violência e, por isso, tem produzido uma aprovação unânime nas favelas como nos bairros. Os moradores dos bairros aprovam a implantação de UPPs nas favelas, estimulados pela valorização de seus imóveis e pelo fim dos confrontos armados em sua vizinhança, assim afastando o medo das “balas perdidas”. Também os moradores de favelas, conforme os depoimentos recolhidos em nossa pesquisa, valorizam este aspecto do programa, pois agora suas rotinas não são mais afetadas pela presença e atividade dos traficantes de drogas em seus locais de moradia, nem pelas operações policiais nessas localidades. Também comemoram e valorizam a queda dos homicídios praticados por policiais nas favelas e encobertos por “autos de resistência”, ainda que insistam nas denúncias das violações de seus direitos civis e das violências praticados pelos agentes policiais lotados nas UPPs. Mas criticam duramente – é só lembrar, por exemplo, as recentes manifestações Ocupa Borel às Nove e Ocupa Alemão às Nove – o controle social repressivo exercido por policiais sobre diversos aspectos da vida cotidiana nessas localidades (concentração nas ruas e bares, festas, som alto, etc.), justificado pela necessidade de “arrancar a favela de dentro dos favelados”.
A percepção desta forte dimensão de disciplinarização dos moradores de favela, somada à desilusão de perceberem o limite da segurança que o Estado lhes propicia (aquela que concerne à supressão do domínio militar dos traficantes de droga no território – por mais valorizada que ela seja, como indicado acima), leva-os à formularem uma crítica contundente (e, do meu ponto de vista, pertinente) à política de segurança efetivamente praticada pelo Estado nas favelas “pacificadas”: sua lógica é propiciar segurança sobretudo para os moradores dos bairros formais. Neste sentido, acredito, as autoridades de segurança pública precisam levar a sério (e não simplesmente descartá-los como se fossem orientados por uma suposta “saudade dos tempos do tráfico de drogas”) os relatos sobre o aumento dos roubos, assaltos e estupros nas favelas, que teriam sido denunciados a policiais lotados nas UPPs sem que os mesmos buscassem apurar responsabilidades e prender os culpados.
Para concluir, vale sublinhar que o caso relatado, com a sugestão de que a Igreja de Cidade de Deus busque garantir de forma privada sua segurança, demonstra os limites da segurança pública propiciada aos moradores de favela. E afinal, é exatamente isso o que os moradores de favela estão nos dizendo em seus relatos: ainda permanecem em operação, em seus territórios de moradia, dispositivos de exceção que limitam seu acesso à cidade e à cidadania, mantendo-os à margem da cidade.
*Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ). Coordenadora da Pós-graduação em Sociologia Urbana na mesma instituição, Marcia é também pesquisadora do CNPq e membro do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS/UERJ).
*O título original desta coluna é “As UPPs e a segurança dos moradores de favelas ‘pacificadas’: uma questão pública?”
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.