Após desintrusão, indígenas se preparam para reocupar Marãiwatsédé

Crianças brincam entre mudas que serão utilizadas para tentar reflorestar a área. Fotos: Daniel Santini

Povo Xavante pede apoio para recuperar área devastada e evitar novas invasões, e manifesta preocupação com veneno de plantações vizinhas de soja

Por Daniel Santini

Terra Indígena Marãiwatsédé – A desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso, foi oficialmente concluída em 28 de janeiro. A operação de retomada e devolução da área de 165 mil hectares para o povo Xavante foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal em outubro de 2012. O processo teve início em 7 de novembro e os invasores começaram a ser gradualmente retirados pela Força Nacional em 9 de dezembro. Agora, prontos para retomar totalmente o controle da área, os indígenas começam a planejar a reocupação.

Inserida no centro de uma nova fronteira de avanço da soja que se abre no estado, a reserva foi uma das áreas mais devastadas no Mato Grosso nas últimas duas décadas (clique aqui para ver em vermelho em um mapa o avanço do desmatamento na área). “Queremos recuperar as matas e a natureza, a caça precisa voltar. Os animais foram afastados quando começaram a invadir e derrubar as matas, por falta de alimentação”, diz o cacique Damião Paridzané. O grupo armazena e prepara mudas para tentar reflorestar novas áreas dentro da reserva. Marãiwatsédé significa “mata fechada” na língua dos indígenas.

A tentativa de resistência à desintrusão, fortemente apoiada por latifundiários locais que controlavam grandes áreas dentro da reserva, está relacionada ao preço crescente das terras e ao asfaltamento de rodovias próximas. O contexto preocupa os Xavante. “Fechamos um compromisso, não vamos nem alugar nem arrendar nossas terras. Fazendeiro é sabido, se a gente alugar o pasto, ele vai entrando cada vez mais um pouco, e aí volta todo mundo”, anuncia o cacique. Ele concedeu entrevista à Repórter Brasil acompanhado do conselho de anciões e demais líderes da aldeia, logo após receber uma remessa de mudas. “Estamos esperando para ocupar a terra e precisamos de assistência e apoio. É hora de fazer projetos e temos conversado sobre isso na comunidade. Primeiro, precisamos de apoio para recuperar a natureza. Segundo, melhorias de saúde e escola. Depois, apoio para agricultura ou para pequenas criações”, afirma.

“Nós, na nossa experiência e inteligência, queremos procurar cultivar ou criar, seja gado, seja peixe. O povo indígena jovem está estudando e não é difícil aprender as coisas. Se alugarmos pasto, o branco vai voltar e entrar cada vez mais. Para evitar isso, para não acontecer mais, queremos que a área indígena de Marãiwatesédé seja independente. Junto com o governo federal, é o que estamos programando, preparando”, diz, ressaltando a importância da participação e aproximação da Fundação Nacional do Índio (Funai) nesta nova etapa. “A Funai não pode falhar, sumir. Tem de acompanhar, continuar sempre junto”. A comunidade tem planos para ocupar as outras áreas da reserva, abrir novas aldeias e reflorestar as áreas mais impactadas.

Menino na porta de uma das casas da aldeia

Soja
A reserva hoje se encontra cercada por soja. Mesmo áreas próximas antes utilizadas para pecuária foram ocupadas pelas plantações nos últimos anos, em meio ao acelerado avanço do monocultivo na região noroeste do Mato Grosso, sempre acompanhado pelo uso intensivo de veneno. “Quem faz isso não tem preocupação com quem mora e com quem trabalha na fazenda, sejam empregado deles, sejam os índios. Ele não está lá trabalhando, está em casa, ou andando de avião, ou de carro. Então não está preocupado. Deixa ele querer matar, matar com veneno, com a respiração do ar mal respirado, ele não está vendo que [a vida] não é só a mala, a casa cheia de dinheiro”, diz o cacique, cobrando providências do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama).

“O ar está contaminado, não é como era antes. Por isso aparece doença de rico, câncer”, afirma. “Não queremos vizinhos plantando dentro do limite da aldeia, nem próximo da aldeia. Se no final do ano continuar, se plantar vai ter briga. A Funai e o Ibama têm de correr atrás, pedir para produtores rurais se afastarem da aldeia, plantarem fora da área dos indígenas, plantarem longe, a 40 km, 50 km. Somos seres humanos e temos de ser respeitados. Plantar soja do lado da aldeia vai prejudicar crianças e velhos, deixá-los doentes.

Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), sancionada em 5 de junho de 2012 pela presidente Dilma Rousseff, não contemplou uma recomendação fundamental, a de regular, seja com a criação de unidades de conservação, seja com restrições de uso, as áreas vizinhas às reservas. Tal cuidado, defendido por indígenas de diferentes regiões e entidades que defendem tais povos, está relacionado à questão de agrotóxicos e outras ameaças.

Documentos sobre Suiá Missú desaparecem

O pesquisador Armando Wilson Tafner Jr., do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), diz que documentos sobre a Fazenda Suiá Missú, empreendimento que resultou na expulsão dos Xavante de suas terras em 1966, sumiram. Ao tentar consultar arquivos para um mestrado em história econômica, ele encontrou dificuldades em diferentes bancos de dados do estado. “No Instituto de Terras do Mato Grosso o responsável pelo arquivo me disse que viu pessoas queimando os documentos. Ele me entregou um documento relativo a uma doação e só. Disse que todo o resto foi incinerado”, conta. “Na Junta Comercial do Estado do Mato Grosso (Jucemat), o acadêmico também não teve sucesso em buscar informações sobre o passado. “Disseram que os arquivos foram encaminhados para outro lugar e não sabiam informar nem para onde nem o motivo da transferência”.

Após a expulsão, os indígenas tentaram por diversas vezes voltar para a área tomada pela Suiá Missú. Nos anos 1980, a fazenda foi vendida para a empresa italiana AGIP Petroli, e no final da década fortes pressões de grupos ambientalistas da própria Itália culminaram no constrangimento do grupo empresarial na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992, a Eco 92. Pressionado, o presidente da corporação, Gabriel Cagliari, prometeu a devolução da área aos Xavante, mas, na mesma semana, o gerente da fazenda, Renato Grillo, juntou-se a políticos locais contrários ao retorno dos indígenas. Em vez da desocupação, foi organizada a invasão de parte da área na localidade conhecida como Posto da Mata, episódio amplamente divulgado nos meios de comunicação. Somente duas décadas depois, durante a Conferência das Nações Unidas para Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, os Xavante renovaram a esperança de reaver as terras.

Após a saída da Agip, aconteceu nova invasão da área com a criação da “Nova Suiá Missú”. Foto: Arquivo/CPT

Durante o processo de retomada, entre os argumentos dos latifundiários locais contrários à desintrusão estava o de que a terra em questão nunca pertenceu ao povo Xavante, o que seria comprovado pela falta de documentação. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) chegou a divulgar nota questionando se a área em questão era mesmo indígena. Mesmo com as dificuldades, o pesquisador encontrou informações históricas na Prelazia de São Félix do Araguaia e na sede da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em Belém. “Não há dúvidas de que as terras eram dos indígenas. Os incentivos fiscais da Sudam para a ocupação da área estavam relacionados a isso [a substituição dos povos originais pelos colonizadores]”, diz. Ele escreveu um artigo sobre a história da atuação da família Ometto na região.

Posto da Mata
O Posto da Mata, vilarejo que havia sido construído dentro da área da reserva, é um dos pontos desocupados por ordem da Justiça. Após a retirada dos moradores, as casas foram derrubadas. Hoje, sobraram escombros, orelhões e bicicletas enferrujadas abandonadas, que dividem espaço com a Força Nacional, gatos e cachorros abandonados.

Vila onde ficava o Posto da Mata já não existe mais. Casas foram demolidas

Entre os principais argumentos dos contrários à desintrusão está o fato de que, além de latifundiários responsáveis pela devastação de grandes áreas, entre os invasores havia também pequenos camponeses. A estes, o governo alega ter oferecido vagas em projetos de assentamento nas regiões.

O Incra realizou o cadastro de 235 famílias para assentamento em projetos da região. Criado em 19 de dezembro de 2012, no município de Alto da Boa Vista, o Projeto Casulo, denominado “PAC Vida Nova”, receberá inicialmente 30 famílias oriundas de Posto da Mata, podendo ampliar a meta de acordo com a demanda. Para isso, conta com o apoio da Prefeitura Municipal e do Exército na abertura de estradas e outras medidas de infraestrutura.

Nem todos aceitaram e muitos optaram por migrar para cidades vizinhas, o que preocupa os indígenas. “Conversamos com os pequenos por muito tempo, cansamos de conversar. E conversamos com o governo para dar um jeito de ajudá-los, de dar terra para eles sobreviverem, mas, na hora de acertar a desintrusão, eles não quiseram. Isso preocupa a gente. E se eles quiserem entrar de novo? Tem várias pessoas no Alto da Boa vista, em Bom Jesus e Serra Nova e aqui no entroncamento do ‘Posto do Arno’ vão abrir uma vila”, detalha o cacique Damião, que espera que um contingente da Força Nacional permaneça na região mesmo após a desintrusão ajudando a fiscalizar a área.

Aldeia principal da Terra Indígena Marãiwatsédé

Ameaçado de morte, ele saiu da aldeia apenas uma vez desde que a desintrusão teve início e pede apoio. “Tem muito pistoleiro contrário aos índios e muito ódio contra os índios. Não somos bicho, somos gente. Temos de ser respeitados, bem tratados, como irmãos, como parentes. Assim como branco tem gente ruim, índio também tem gente ruim, mas também tem gente boa para lutar junto, unir.”

*Colaboraram: Andreia Fanzeres, Carolina Motoki e Elizabete Flores

Após desintrusão, indígenas se preparam para reocupar Marãiwatsédé

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