Leonardo Sakamoto
Vou resgatar um debate aqui, dada a importância da renúncia papal, nesta segunda (11). Num discurso a bispos brasileiros, durante as últimas eleições presidenciais, o hoje demissionário Joseph Ratzinger condenou o aborto e a eutanásia e, implicitamente, a pesquisa com embriões para obtenção de células-tronco. Ou seja, o que era esperado dele dado o posto que ocupa, sua trajetória e o contexto em que está inserido.
Mas foi além, e afirmou que “os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas”. Ou seja, em plenas eleições, Bento 16 pede para que os representantes de sua igreja orientem politicamente os fiéis.
Conversei com uma pessoa da comunidade do Jardim Pantanal (aquele bairro da capital paulista que se esvai em lama nas enchentes) sobre isso e, apesar de ser extremamente religiosa, discordou da avaliação do papa (que vai entregar o seu mandato no próximo dia 28 por, segundo ele, “não ter mais forças” para exercer o pontificado).
“Na Bíblia, está escrito para dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. A gente tem que separar o que é política do que é religião, senão não dá certo.” É a gente simples da periferia de São Paulo ensinando bons modos para o Vaticano.
E já que haverá um conclave em breve, se eu também puder meter a colher na cumbuca dele já que ele meteu na nossa, tenho algumas sugestões de quem seria um ótimo papa.
Por exemplo, ao final de sua carta aos bispos, ele defendeu a solidariedade. Mas de que tipo de solidariedade ele está falando? Da caridade? Uma ação pouco útil, que consola mais a alma daquele que doa do que o corpo daquele que recebe? Ou da solidariedade de reconhecer no outro um semelhante e caminhar junto a ele pela libertação de ambos? Se for a primeira, ele está pregando a continuidade de uma igreja superficial, que ainda não consegue entender as palavras que estão no alicerce de sua própria fundação.
Se falou da segunda, a solidariedade como redenção do corpo e da alma, ele se referiu claramente à Teologia da Libertação. Prefiro acreditar que ele estava falando da primeira, pois seria irônico a atual administração do Vaticano (que deu continuidade à anterior) pregar algo que vem tentando soterrar há tempos.
A Teologia da Libertação tem sido uma pedra no sapato da Santa Sé. Na prática, esses religiosos católicos realizam a fé que o Vaticano teme ver concretizada ou não consegue colocar em prática. Pessoas, como Pedro Casaldáliga, que estão junto ao povo, no meio da Amazônia, defendendo o direito à terra e à liberdade, combatendo o trabalho escravo e acolhendo camponeses, quilombolas, indígenas e demais excluídos da sociedade.
Imaginem se ao invés de Ratzinger, fosse Casaldáliga abrindo a boca para falar a bispos brasileiros. E a defesa da vida fosse feita de outra forma, retomando palavras que ele proferiu há tempos:
“Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazerem a terra escrava e escravos os humanos.”
Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia e um dos maiores defensores dos direitos humanos no país, foi marcado para morrer (novamente) no final do ano passado. Aos 84 anos e doente, teve que deixar sua casa por conta das ameaças surgidas em decorrência do governo brasileiro, finalmente, ter começado a retirar os invasores da terra indígena Marãiwatsédé, Nordeste de Mato Grosso – ação que sempre foi defendida por ele.
Enquanto isso, nossa realidade continua lembrando muito daqueles microcosmos de poder do Brasil profundo, presentes nas obras de Dias Gomes: o padre, o delegado e o coronel, amigos de primeira hora, tomando uma cachacinha na (ainda) Casa-grande, gargalhando da vida e discutindo sobre os desígnios do mundo, que – para eles – deveria ter a cara de seu vilarejo.
No meu mundo, não. Nele, se ainda houvesse igreja, ela seria comandada por pessoas como Casaldáliga.
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