Kátia Abreu, o intelecto como latifúndio e a inconstitucionalidade na legislatura

Pádua Fernandes

Comove-me perceber o ecletismo intelectual de certos políticos, categoria em geral não reconhecida publicamente pela inteligência e/ou pela cultura. De fato, o talento literário de personalidades como Anthony Garotinho (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/poesia-lesbica-de-politico-homofobico.html) e José Sarney (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/jose-sarney-ou-o-esquecimento-como.html), ou o profundo conhecimento de marxismo e de poesia soviética por políticos-empresários (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/marxismo-para-administradores-ou.html) não têm recebido a retribuição que merecem.

No entanto, a nobre senadora federal e presidente da CNA, Kátia Abreu, tem pelo menos seu talento literário reconhecido por um dos veículos mais vendidos da imprensa brasileira, a Folha de S.Paulo, de que é uma das prestigiosas colunistas.

Em sua coluna, ela já pôde, com audácia, discorrer sobre os mais diversos campos, como se todos, na verdade, lhe fossem próprios. Em termos científicos, pode-se chamar essa desenvoltura de latifúndio como princípio intelectual. Ela já pôde, como bem mostrou José Ribamar Bessa Freire (http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2012/11/25/katia-abreu-nao-tem-credito-para-emitir-juizos-sobre-indios/), aventurar-se na antropologia e substituir toda etnografia por novo método, a “abreugrafia”, muito mais eficiente em descobrir que os índios “não precisam de terras” (leiam o artigo, é notável).

Certa vez, pude verificar que a nobre senadora anexou a seus campos de conhecimento a economia e a história, e escreveu partindo da ousada hipótese de que Arnold J. Toynbee (o historiador) e Arnold Toynbee (o economista) eram a mesma pessoa (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/09/katia-abreu-os-toynbees-e-esterilidade.html), embora fossem de séculos diferentes.

Não é de estranhar que as habilidades intelectuais de Abreu, de envergadura latifundiária, fossem incluir o campo do direito, não fora ela a grande legisladora que todos conhecem, talvez o principal nome a sustentar o novo código florestal.

Eu estava concentrado em meus afazeres quando descobri a coluna de hoje, “Legalidade ou inconformismo”, em que a senadora federal protesta contra o fato de a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter proposto três ações diretas de inconstitucionalidade contra o código florestal, apontando o que seriam trinta e nove inconstitucionalidades. Com argumentos que clamam pelo senso comum dos leitores completamente leigos em direito, ela diz que seria praticamente impossível haver tantas falhas em um projeto que passou por quase seiscentos congressistas, seguiu rigoroso processo legislativo e foi examinado por comissões técnicas, inclusive de constituição e justiça.

A nobre política do PSD afirma que a “probabilidade de uma falha, embora possível, é rara”. Já trinta e nove falhas… Jamais! A PGR estaria fugindo de suas atribuições e exercendo a “militância política”.

Ainda não li as petições iniciais, não sei se foram apenas 39. À primeira vista, concordo ao menos com algumas delas, mas deixo para os meus colegas ambientalistas uma análise detida:
http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_constitucional/pgr-questiona-novo-codigo-florestal

O número, de qualquer forma, não é de espantar para quem acompanha a matéria. O que posso dizer no momento é que o artigo de Abreu baseia-se em erro espantoso, ainda mais considerando que foi assinado por alguém com certa experiência legislativa. O absurdo erro é pretender que é quase impossível os congressistas brasileiros aprovarem normas inconstitucionais.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal demonstra o impressionante engano cometido pela digna legisladora, mesmo levando em conta o enfraquecimento do constitucionalismo pelo STF dos últimos anos (como exemplo disso, leiam a dissertação de Leonardo D’Avila de Oliveira, Inflação normativa: Excesso e exceção, que analisa uma das formas de fuga da constitucionalidade empregadas pelo STF: “É de se surpreender que a Corte mais importante do país sustente que a manutenção do ordenamento somente se dá com a sua própria suspensão. Para tanto, justifica-se este entendimento com a teoria de Carl Schmitt, sem dúvida um grande constitucionalista do século XX, mas que, apesar de tudo, foi o jurista que se debruçou em justificar o regime de Hitler na Alemanha Nazista.”, p. 34).

Vejamos o levantamento do próprio Supremo Tribunal Federal das ações diretas de inconstitucionalidade de 1988 a 2012:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?pagina=adi&servico=estatistica

3137, isto é, 65,1% dessas ações foram julgadas de forma definitiva. Dessas, 16% foram consideradas procedentes (ou seja, quase um quarto das que já têm decisão final), e 4,4%, procedentes em parte, o que eleva as “falhas” legislativas a quase um terço dos casos julgados definitivamente.

Se virmos o quadro das liminares, isto é, processos em que há apenas uma decisão provisória, a situação é mais grave. 4,6% tiveram deferimento total (mais da metade dos casos que estão nessa fase, que são 8,7% do total) e, 1,34%, deferimento parcial. Aguardam julgamento 26,3% das ações. No entanto, com essa visão geral, é possível concluir que, em muitas das vezes que é ajuizada ação direta de inconstitucionalidade, ela é julgada procedente.

Trata-se de uma das hipóteses do que se chama de controle concentrado de constitucionalidade (há outras, como a arguição de descumprimento de preceito fundamental, mas me aterei apenas a essa ação, alvo das considerações de Abreu). Não é qualquer pessoa que pode propor esse tipo de ação; a legitimidade ativa para esse tipo de ação é taxativa e está prevista no artigo 103 da Constituição da República:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

 I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

O percentual de procedência nessas ações certamente não deve ser o mesmo, se isolarmos cada um dos  que são legitimados a propô-las. É possível que o êxito da PGR, em virtude de sua alta especialização jurídica, seja mais alto do que o de outros legitimados. Se algum eventual leitor desta nota conhecer pesquisa que aponte os percentuais de êxito da PGR (provavelmente algum relatório da própria instituição, ou trabalho acadêmico de pesquisadores da jurisdição constitucional), agradeço se o mencionar aqui.

Ademais, o percentual de inconstitucionalidade somente não é mais alto devido ao grande número de ações não conhecidas. Não conheço estatística que discrimine as diferentes razões que levam a esse resultado, em que não há julgamento do mérito. No entanto, sei que ele, deve-se, em parte, a processos propostos por partes que não estão previstas no artigo 103. Não se trata, pois, de que a lei não fosse inconstitucional – talvez ela o fosse, mas o processo simplesmente não chegou nem mesmo a ser conhecido por falta de legitimidade ativa (isto é, a legitimidade de quem o propôs). A UNE e a CUT, por exemplo, são consideradas ilegítimas. Outra hipótese é a de a lei ter sido revogada – a ação perde o objeto e, por isso, também não é conhecida: talvez a lei fosse inconstitucional, mas o STF não perde seu tempo analisando lei que não integra mais o direito brasileiro.

Dessa forma, mesmo sem uma análise fina do que significam os números consolidados pelo Supremo Tribunal Federal, sabemos que é alta a probabilidade, quando é proposta ação direta de inconstitucionalidade, do que a nobre senadora chamou de “falha” do processo legislativo. Qualquer bom estudante de direito (sei que se trata de espécie rara) poderá confirmar isso, já a partir do terceiro ano da graduação.

Devemos lembrar também dos vetos presidenciais, dos quais um dos possíveis fundamentos é justamente a inconstitucionalidade, parcial ou total, da lei aprovada pelo Congresso Nacional. Lembremos da recentíssima tentativa de José Sarney, então presidente do Senado Federal, de cometer mais uma inconstitucionalidade e decidir sobre o veto à lei dos royalties antes de apreciar os mais de três mil vetos anteriores (note-se que o impressionante número de vetos a apreciar denota o escasso grau de cumprimento das atribuições institucionais pelo Poder Legislativo).

Ademais, devemos lembrar da ligeireza com que tantas vezes atuam as comissões de constituição e justiça das casas legislativa. O notável caso da reserva de mercado pretendida para os portadores de diploma em história é apenas um dos exemplos pitorescos. Escrevi uma nota sobre as lacunas lógicas, históricas e constitucionais do parecer do senador Flexa Ribeiro:

http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/03/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html

Em momentos como esse, nota-se a ligeireza de tais representantes políticos no trato da ordem jurídica, o que é incompatível com as atribuições do legislador e danoso para o Brasil.

É possível que as representações de inconstitucionalidade contra leis estaduais e municipais revelem números ainda mais notáveis.

No tocante à interessante coluna de Abreu, pródiga em análises nos mais diferentes campos do conhecimento humano, o que posso verificar é que o cultivo do princípio intelectual do latifúndio revelou-se, no texto de hoje, sinônimo de terra arrasada. O que me suscita a indagação se a mesma devastação ocorre em outros campos.

http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/katia-abreu-o-intelecto-como-latifundio.html

Enviada por Henyo Trindade Guarani Kaiowá.

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