Sandra Machado
Nesta semana que celebra a data internacional das lutas pelos direitos das Mulheres Afro-Latinas e Caribenhas, motivo de artigo ontem no Blog da Igualdade, aproveito para resgatar um artigo que publiquei no site da Editora Francis & Verbena Editora.
Em julho de 2010, foi lançado discretamente no Brasil um filme raro, pois aborda a controversa questão da Mutilação Genital Feminina (FGM, na sigla em inglês). Uma forma de violência que já mutilou aproximadamente 150 milhões de mulheres em diversos países, nações ou regiões tribais que seguem o Islamismo e suas tradições culturais e religiosas. E que também acontece entre imigrantes e seus descendentes que constituem residência permanente em países europeus, americanos, caribenhos, asiáticos e da Oceania.
A temática permanece atualíssima e polêmica, tanto que qualquer produção midiática que toque no assunto dificilmente passará em branco ou deixará de ser boicotada, veladamente ou não. As estatísticas de organismos internacionais para a saúde atestam que, mesmo após tantos esforços contra a prática cruel, oito mil casos de FGM em meninas ocorrem, por dia, no mundo.
Para quem acha que a atrocidade é cometida somente nos países africanos ou do (Extremo ou Médio) Oriente, um “número”: somente no Reino Unido e na França, juntos, as estimativas são de que há 40 mil mutilações de jovens mulheres, anualmente.
A violência da excisão genital contra as mulheres, praticada quando ainda estão na primeira infância (normalmente entre dois e oito anos), é tão literal e terrível que ou as pessoas “sãs” evitam saber, ou a polêmica em torno de uma tradição religiosa/cultural permanece mesmo um absurdo tabu.
O filme Desert Flower (Flor do Deserto, Alemanha, 2009) poderia muito bem ser um desses muitos contos de fadas modernos, fantasiados nas produções audiovisuais feitas para as grandes bilheterias internacionais, e que visam também a distribuição para as redes de televisão. O enredo narra a saga inacreditável, e improvável, de uma menina “sobrevivente”, filha de uma família nômade do deserto da Somália, que aos 13 anos decide dar um basta e foge da vida miserável.
A criança atravessa o deserto sozinha, chega à capital Mogadíscio e de lá parte para Londres, no Reino Unido, de onde o destino a transportará para as principais passarelas do mundo. De nômade do deserto de um dos países mais pobres – e entre os 10 mais corruptos – do mundo transforma-se em top model – uma supermodelo negra e exótica para os padrões do mundo da moda nos anos 1980.
A história é bem real e os laços com os contos infantis são tão superficiais quanto o são a fragilidade e a efemeridade das passarelas. E param por aí.
Na verdade, Flor do Deserto é sobre a decisão da modelo em interromper sua carreira, no auge da fama e dos convites pelas melhores casas de alta costura, e anunciar ao mundo ter sido vítima de uma das maiores atrocidades que se pode cometer contra as mulheres. No caso, contra meninas entre os dois e até os 10 anos de idade – entre tantas outras mais debatidas nas sociedades contemporâneas: a excisão (mutilação) genital feminina (FGM).
O filme é permeado pela necessidade visceral da mulher em denunciar o que considera um crime (e que também o foi, mais tarde, pela ONU). O roteiro é baseado no livro homônimo, escrito em 1997, pela própria modelo Waris Dirie (em somali, seu nome significa flor do deserto, que aliás é uma flor que desabrocha nos climas mais inóspitos).
Hoje com 47 anos, Dirie é também autora de Desert Dawn (2001), Desert Children(2005), Letter to My Mother (2007), e Black Woman, White Country (2010), livros inéditos no Brasil. A top model etíope Liya Kebede interpreta o papel de Waris Dirie no filme, que é dirigido pela norte- americana residente na Alemanha, Sherry Hormann, e co-escrito por ela e pela argumentista anglo-indiana Smita Bhide.
Ao considerarmos os interlaços com outras violências impingidas às mulheres (e/ou às crianças), essas que estão inscritas sob a égide de “tradições culturais e religiosas”, mas igualmente ou até mais brutais, pouco são debatidas ou conhecidas em países como o Brasil. Claro, não é assunto-prioridade para nossos Meios de Comunicação de Massa, ou até mesmo para alguns grupos e organizações feministas. Talvez, por se pensar que este seja um problema mais “distante”, algo que não nos tocaria diretamente. Será que não?
Todos os anos, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente três milhões de meninas são vítimas da mutilação genital, não só em nações africanas ou nas médio-orientais, mas em pelo menos outros 28 países, mundo afora. Os dados contabilizam que aproximadamente 150 milhões de mulheres foram afetadas pela prática cruel da FGM, que segue ocorrendo na África e no Oriente Médio, e também na Ásia, na Europa, nas Américas e na Austrália.
A hoje bem organizada Waris Dirie Foundation/Desert Flower Foundation (Fundação Waris Dirie/Flor do Deserto) arrebanha suporte às vítimas da FGM e luta por um fim ao que ela chama de crime, por meio das redes sociais e em campanhas de apelo midiático, bem como em eventos e programas educacionais. “A mutilação feminina não tem aspectos culturais, religiosos, ou de tradição. É um crime que procura por justiça”, afirma Dirie.
No filme, ato da mutilação é fotografado em um crescendo de suspense, até levar o espectador saudável à náusea, inevitável para os mais sensíveis. Não é uma cena de abertura. Foi editada para a parte final da película. Antes, o roteiro e a direção engendram toda a saga de um ser humano que prefere não apenas sobreviver, mas viver e denunciar com todas as letras, apesar de suas dores e marcas profundas, físicas e psicológicas.
A edição do filme não obedece necessariamente a uma seqüência cronológica, mas é entrecortada com flashbacks e forwards na vida de Dirie. Entre licenças criativas, aprendemos desde o início sobre a sua índole cuidadosa com outros, como seu irmão mais novo ou com sua mãe, nas areias do deserto.
Sua fuga é motivada pelo eminente casamento, forçado, com um homem de 60 anos, que poderia ser seu avô. Seu pai a vende ao mercador para receber cinco camelos em troca. Dirie deixa o acampamento à noite, apenas com a roupa do corpo, sem água ou comida, e vence uma das grandes batalhas de sua vida: o deserto.
Consegue encontrar sua avó na capital somali, e esta tampouco tem recursos para mantê-la. A avó dá um jeito de mandar a menina para Londres, onde um tio serve como embaixador. Analfabeta, Waris Dirie é obrigada a submeter-se a um regime de escravidão dentro da embaixada, de onde nunca sai. Quando a Somália entra em guerra civil e o golpe de Estado muda o governo, seu tio tem que deixar o cargo. Dirie foge novamente, agora para as ruas de Londres.
A somali mal fala o inglês e tampouco lê ou escreve. Ela passa fome, dorme nos becos e lava-se em banheiros de lojas, até conseguir trabalho em uma rede de fast food . Além de lavar o chão, ali conhecerá o bem-sucedido fotógrafo de moda Terence Donovan. Com ele, faz seu primeiro trabalho como modelo – um calendário da Pirelli. Portas abertas para uma agência de moda e as passarelas.
Para evitar cair em glamour de uma possível fabulação de príncipes e princesas, a direção enxuga ao máximo os recursos técnicos de efeitos especiais, de enquadramentos e iluminação que possam favorecer superficialmente o engrandecimento da personagem, ou make-up (maquiagem) excessivos.
O sucesso de Waris Dirie como modelo pouco é narrado pelo roteiro. Quase nada se sabe sobre seus amigos e os casos de passarela. Não é esse o foco. A ênfase é dada ao instinto de sobrevivência e ao conflito interno da personagem: seguir escondendo e respeitando a “tradição” imposta pelos progenitores e conterrâneos, ou quebrar tabus e regras sociais e denunciar os abusos e crimes.
Nos países e comunidades mais pobres, ou seja, na maioria dos casos, os órgãos genitais das meninas (clitóris e lábios vaginais) são arrancados com lâminas de barbear, ou qualquer instrumento cortante – muitas vezes enferrujados, sujos – sem desinfetante e, muito menos, anestesia. O que resta da genitália é costurado, cerzido mesmo, com linha grossa e anzol, ou agulhas maiores, para se ter a certeza que a menina permanecerá virgem até ser dada, ou vendida, em casamento.
Essa é a tal tradição cultural/religiosa que argumentam os que lutam por manter a dominação e as demonstrações insanas de poder. Na prática, além das dores constantes e o desconforto até para urinar, necessidade básica de um ser vivo, esses procedimentos bárbaros, não raro, levam à morte pelas infecções e/ou hemorragias.
Waris Dirie, no apogeu da carreira, em 1997, choca a opinião pública com a revelação de que fora circuncidada – um termo bastante brando para a selvageria – quando tinha apenas cinco anos de idade. O ato de coragem de Dirie foi quebrar o “tabu do silêncio” de suas raízes sócio-culturais. De expor-se e ameaçar o que havia conquistado (o que fica claro não ser sua preocupação), e escrever livros sobre sua vida, detalhar o que passou e o que sabe sobre a “tradição” à imprensa mundial.
Ela iniciou, desde então, uma luta contra a FGM, inclusive, como embaixadora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a erradicação da mutilação feminina, em todo o mundo. Seu livro Flor do Deserto vendeu 11 milhões de cópias, até 2009, um best seller . E o filme representou a Alemanha no Festival de Cinema de Veneza, em 2009, além de receber prêmios em outros festivais europeus.
Na cena final da produção, em que Waris Dirie discursa para os membros da Assembléia Geral da ONU, e a seguir nos créditos finais, a audiência aprende, enfim, que o tema é algo que não se pode mesmo subestimar. Em diversos países são perpetuadas as tradições bárbaras que visam a redução da mulher a uma criatura servil ao homem, impedida de ter prazer no sexo, ou no ato sexual.
Algo que as tradições cristãs e outras religiões tentam por meio da castração psicológica há centenas anos, com a demonstração performática de poder e de força sobre o Outro (a mulher), os que praticam a FGM levam ao extremo da castração física literal. Não importa quantas meninas morram nesse processo da excisão. A prática inumana continua a ser infligida a aproximadamente oito mil crianças por dia, ainda de acordo com o site da Fundação, sediada em Viena (Áustria), onde Dirie hoje reside e é cidadã.
Quão próximos (as) estamos dessa realidade? Há até bem pouco tempo, costumava-se comentar no Brasil e em outros países latino-americanos que a pornografia, o estupro, e o abuso de crianças e adolescentes, a maioria do sexo feminino, seriam questões que tocavam mais os “tarados e desviados” europeus e (norte) americanos.
Hoje, basta abrir os jornais, revistas, portais da Internet, ou ligar a TV e o rádio, para se constatar que esses “desviados/tarados/maníacos”, e/ou espancadores e assassinos, podem estar bem ao lado, sentados em nossos sofás, aqui mesmo no Brasil ou nos países vizinhos. A diferença reside na organização e divulgação dos dados e estatísticas latino-americanos e de outros países periféricos, que ainda apresentam dificuldades de acesso à informação e à educação, em relação aos países “centrais” desenvolvidos.
Neste início de milênio, as estatísticas mostram que entre 10 e 12 mulheres são assassinadas no Brasil, diariamente. Isso sem contar os abusos e espancamentos que as tornam psicossocialmente incapazes. Em outra vertente da violência pervertida, operações realizadas pela Polícia Federal contra a pornografia infantil e o abuso de menores registram seguidos “recordes” de prisões e cumprimento de mandados de busca e apreensão de material pornográfico.
Os policiais federais prevêem que terão ainda muito trabalho pela frente, “nos próximos anos”. Ficamos sabendo, também, que o Brasil está em quarto lugar nesteranking terrível do abuso e pornografia infantil, atrás apenas de três países europeus já calejados nesses noticiários que remetem à ficção de horror: Alemanha, Espanha e Inglaterra.
Trailer do filme Flor do Deserto (Desert Flower, Alemanha, 2009):
http://www.youtube.com/watch?v=U18deTeHW0I&feature=related
http://www.dzai.com.br/igualdade/blog/blogdaigualdade#.UBUnSWnwoAQ.gmail. Enviada por José Carlos.
Tambem sou contra qualquer hegemonia o que não me impede de protestar e desejar que as culturas que exercem a clitoridectomia
acordem para o fato que as leis sejam elas da cultura e da tradição ou dos homens que vitimizam a metade ou mais da população não são leis que merecem ser preservadas.
A questão é se sou moralmente capaz de impor minha cultura à outros.
A clitoridectomia em sociedades africanas islamizadas é um traço cultural desse povo que o aceita. É lícito que os ocidentais, por acreditarem que algo é contra seus princípios, imperialmente interfiram em sociedades organizadas?
Para que a clitoridectomia e a infibulação sejam abolidas pelas culturas que a empregam, é necessário que os próprios agentes dessa cultura entendam que deve ser abolida e não que pessoas de fora venham mandar lá.
A luta de Waris é dela (uma mulher que conheceu o mundo ocidental) ou das mulheres somali?
Será que gostaríamos que os Estados Unidos ou a Inglaterra mandasse o Brasil parar de festejar o carnaval por causa dos picos de contágio de DSTs e gravidez indesejada?
Sou contra qualquer tipo de hegemonia, seja ela econômica ou cultural.
À??