UnB se prepara para instalar sua Comissão da Verdade

Com um saldo de centenas de professores e estudantes expulsos, presos, mortos ou desaparecidos, a instituição criada em 1962 com uma proposta filosófica vanguardista foi a mais afetada pela repressão da ditadura brasileira. Foram pelo menos quatro invasões do campus. No segundo ano do regime, a UnB já havia perdido mais de 80% do seu quadro docente. Após 1968, centenas de prisões. Estudantes como Ieda Santos Delgado, Paulo de Tarso Celestino e Honestino Guimarães estão desaparecidos até hoje.

Najla Passos

Brasília – A Universidade de Brasília (UnB) se prepara para instalar, nos próximos dias, a sua Comissão da Verdade, que terá a missão de auxiliar a nacional, instituída em maio pela presidenta Dilma Rousseff, a resgatar a história dos anos de chumbo na instituição de ensino superior brasileira que mais sofreu os efeitos da repressão imposta pela ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985.

Com um saldo de centenas de professores e estudantes expulsos, presos, mortos ou desaparecidos, a UnB tem uma enorme dívida com seu passado. Foram pelo menos quatro invasões do campus pelos militares. No segundo ano do regime, a UnB já havia perdido mais de 80% do seu quadro de professores.

Após 1968, foram centenas de prisões. Estudantes como Ieda Santos Delgado, Paulo de Tarso Celestino e Honestino Guimarães estão desaparecidos até hoje.

O decreto já está nas mãos do reitor José Geraldo de Souza Junior, aguardando os últimos ajustes. “O reitor é um militante dos direitos humanos que atendeu prontamente esta reivindicação da comunidade acadêmica”, afirma o professor da Faculdade de Direito, Cristiano Paixão, um dos idealizadores da iniciativa. Segundo ele, a Comissão será composta por professores do quadro da instituição, mas contará com o apoio de um comitê de observadores, formado por estudantes, funcionários, familiares das vítimas, ex-alunos e militantes dos direitos humanos. “Queremos envolver toda a sociedade interessada em reestabelecer a memória e a verdade”, afirma Paixão.

Criada em 1962 com uma proposta tida como inovadora para os padrões da época, a UnB foi invadida por tropas militares apenas nove dias após o golpe de estado que depôs o então presidente João Goulart, em 30 de março de 1964. O então reitor Anísio Teixeira, que acabou demitido, foi surpreendido por tropas militares provenientes de Minas Gerais, que chegaram ao campus em 14 ônibus e três ambulâncias, indício que a ditadura previa confrontos com a comunidade universitária. O campus ficou interditado por duas semanas.

A segunda invasão ocorreu no ano seguinte, quando os professores entraram em greve, em protesto contra a demissão de três colegas. Os alunos aderiram à paralisação e o clima de tensão tomou conta do campus. A UnB foi cercada no dia 11 de outubro. Uma semana depois, o reitor Zeferino Vaz demitiu 15 docentes acusados de subversão. Entre eles Sepúlveda Pertence, que viria a ser presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em solidariedade aos colegas, 223 dos 305 professores da instituição também se demitiram. Com apenas três anos desde sua fundação, a UnB perdeu mais de 80% do seu quadro. Entre eles, intelectuais do porte do artista plástico Athos Bulcão, considerado o artista de Brasília, do educador Paulo Freire, tido como um dos mais notáveis pensadores da pedagogia mundial, e do médico Josué de Castro, aclamado pelo clássico “Geografia da Fome”.

Os problemas decorrentes daí foram inúmeros. “A UnB se desviou completamente dos ideais de sua fundação, defendidos por intelectuais como Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Se tornou uma instituição medíocre, com professores de segunda linha. Foi nesta época que o estudante de geologia, Honestino Guimarães, ganhou a presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB) e passou a se destacar na luta por melhor qualidade de ensino”, conta o advogado Cláudio Almeida, estudante da instituição à época e companheiro de luta de Honestino desde o colegial.
Em 1968, a morte do estudante Edson Luiz nos porões da ditadura no Rio de Janeiro levou Honestino a conclamar uma série de manifestações na UnB. Os protestos contra a repressão logo encamparam também a luta por melhores condições de ensino. E levaram à terceira invasão do campus, que resultou na detenção de cerca de 500 alunos e na prisão definitiva de 60. Entre eles, Honestino e Cláudio.

“No dia anterior, eu fui avisado de que circulavam boatos de que o campus seria invadido. Os filhos de militares que estudavam na UnB foram aconselhados a faltarem aula e a história vazou, Mas mesmo assim fui até lá. Quando cheguei, encontrei Honestino que me perguntou como estava a situação lá fora. Disse que estava tudo calmo e fui para a sala de aula. Um pouco mais tarde, começamos a ouvir gritos de que Honestino foi preso, espancado e levado amarrado pelos militares”, recorda Cláudio.

Segundo ele, os alunos começaram a sair das salas, em protesto, mas os
militares já haviam ocupado o campus. “Eram mais de 700 homens atirando para matar e jogando bombas. Meu colega Waldemar Alves foi baleado na cabeça e apresenta sequelas até hoje. Nós tentamos nos esconder no Minhocão, que ainda estava em obras. Mas, cercados, tivemos que nos render. Fomos levados em fila indiana, mãos na cabeça, para a quadra de basquete. Lá era feita a triagem: os identificados eram imediatamente presos e os demais liberados. Eu fui preso”, conta o ex-aluno.

Cláudio foi levado ao Doi/Codi e, depois, ao Exército, onde outros quatro estudantes também estavam presos. Mais tarde, o obrigaram a participar de uma acareação com Honestino, um dos momentos mais difíceis de sua vida. “Quando eu o vi, ele estava um trapo. Foi barbaramente espancado e torturado. Os militares zombavam dele, o humilhavam. E continuou sendo torturado na minha frente, para dizer quem eu era e qual era minha participação no movimento. Mesmo assim, não falou nada. Depois, eu também fui torturado para denunciar outros colegas. “A tortura é uma violência física e moral muito grande. Impossível de esquecer”.

Cláudio foi liberado alguns dias depois e conseguiu concluir os estudos. Honestino passou mais tempo na prisão, foi solto e expulso da UnB. Constantemente perseguido, detido e aterrorizado pelos militares, foi morar em Goiânia. “A última vez que nos encontramos foi no final de 1969. Eu falei que não tinha condições psicológicas de continuar na luta. Honestino partiu para a clandestinidade. Foi preso em 1973 e, desde então, ninguém sabe o que aconteceu com ele”, relata.

Outros estudantes da instituição, como Ieda Santos Delgado (que participou do histórico Congresso da União Nacional dos Estudastes (UNE), em Imbiúna (SP), Paulo de Tarso Celestino, que também foi presidente da FEUB, tiveram destinos semelhantes. “Naquela época, era muito comum um militante desaparecer sem deixar vestígios. As famílias, os amigos, ficavam desesperados. Foram muitas histórias interrompidas que precisão ser desvendadas. Éramos um bando de burgueses, classe média, sonhadores e não imaginávamos a violência que teríamos que enfrentar”, desabafa Cláudio.

Pretexto para o AI-5
O ex-estudante da UnB afirma que a invasão do campus foi o pretexto utilizado pela ditadura para a promulgação do Ato Institucional no 5 (AI-5), que implantou a censura, fechou o Congresso e cassou de vez as liberdades individuais. “Eles precisavam de um fato político que justificasse a adoção desta medida, que foi a maior agressão praticada pelo Estado contra a sociedade brasileira. Depois houve o discurso do então deputado Márcio Moreira Alves, mas só isso não seria suficiente”, avalia.

Em 1976, com a posse do capitão de mar e guerra José Carlos de Almeida Azevedo no posto de reitor, os protestos recomeçaram. O mote ainda era a má qualidade do ensino, mas logo os estudantes passaram a reivindicar também a redemocratização do país, no bojo dos movimentos pró-anistia que começavam a pipocar. “Foi a retomada do movimento estudantil, praticamente dizimado no país todo após a promulgação do AI-5, em 1968”, relata o empresário Antônio Ramaiana Ribeiro, estudante de agronomia à época.

Ramaiana, que apesar de ser filho de um oficial da Marinha, foi preso por três vezes e expulso da instituição, relata que, principalmente em 1977, quando eclodiu a greve dos estudantes, a ditadura voltou a ocupar o campus e a fazer um grande número de vítimas. “Só naquele ano, mais de 80 alunos foram presos, alguns na própria UnB, outros em suas casas. Destes, 30 foram expulsos e cerca de mil saíram da instituição, pressionados pelo terrorismo imposto pelo interventor Azevedo”, recorda.

No livro “UnB 1977: o início do fim”, no qual narra suas memórias daqueles dias, o empresário avalia que o vanguardismo da luta na instituição, que rapidamente se espalhou pelas demais universidades do fim, foi o divisor de águas que obrigou a ditadura a dar início a abertura política, descrita como lenta, gradual e segura pelo então presidente Ernesto Geisel. “A ditadura não admitia subversão na UnB, justamente por ela estar mais perto da sede do poder político, no próprio quintal do Palácio do Planalto. Por isso, a repressão era imensa. Foi a única universidade a ser comandada diretamente por um militar”, acrescenta.

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