Ao subir o elevador que leva ao Morro do Cantagalo, comunidade incrustada entre Copacabana e Ipanema, o escritor indiano Suketu Mehta se admira com a nova praticidade no acesso à favela, e prevê: “Em cinco ou dez anos, muitos moradores não conseguirão mais pagar o aluguel aqui.”
A reportagem é da BBC Brasil e foi publicada pelo Portal UOL, 13-07-2012.
Mehta viu o mesmo acontecer em favelas em Mumbai, cidade onde cresceu e que deixou na adolescência para se mudar para os Estados Unidos. Voltou 20 anos depois e encontrou “uma cidade partida”. As impressões do retorno deram origem ao livro Mumbai: cidade máxima.
No Cantagalo, com a facilidade no acesso e a maior segurança após a pacificação, os preços vão disparar, considera Mehta, notando a vista para o mar.
“A ameaça a todas essas pessoas não virá mais dos traficantes, virá do mercado imobiliário.”
Mehta esteve no Cantagalo pela primeira vez na quarta-feira, mas já passara uma semana percorrendo outras favelas cariocas em dezembro último, como parte da pesquisa para um ensaio sobre favelas em grandes metrópoles, que servirá de introdução a um livro do fotógrafo Robert Polidori.
Desta vez, o escritor veio ao Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, e depois ao Cantagalo falar à comunidade sobre o seu trabalho, em um encontro da Festa Literária das UPPs – a FLUPP.
No caminho para a palestra, Mehta percorreu parte da comunidade com a BBC Brasil e comentou as semelhanças com as favelas de seu próprio país.
“Na verdade acho que esta seria uma favela bastante boa em Mumbai. Qualquer morador de uma favela de lá ficaria feliz se sua avó pudesse se mudar para um lugar como este”, comentou.
Mesmas vielas, mesmo cheiro
O escritor viu no Cantagalo os mesmos valões, esgoto correndo e lixo acumulado em terrenos baldios que vê nas favelas de Mumbai.
Viu as mesmas vielas, tortas e estreitas. Sentiu o cheiro de comida sendo preparada e escutou televisões ligadas no volume máximo. Reparou na fiação elétrica emaranhada nos postes e na profusão de tênis caídos sobre eles, pendendo pelos cadarços.
“Sempre me perguntei sobre esses tênis voadores”, disse, olhando para o alto. E viu as pipas empinadas por crianças nos telhados.
“Isso realmente faz meu coração dar um salto. Quando eu era menino, também empinava pipas em Mumbai.”
Mas Mehta também notou diferenças, algumas de forma – em Mumbai, os terrenos são mais planos e as comunidades são mais densas – e outras sociais. Estivesse em uma favela indiana, considera, as portas das casas estariam todas abertas, e as crianças, correndo de um lado para o outro, entrando nas casas dos vizinhos.
E falou sobre a principal diferença visível ali, esta peculiar ao Rio de Janeiro e a apenas uma pequena parcela de suas centenas de favelas: as Unidades de Polícia Pacificadora, experiência para a qual o mundo está olhando atentamente para ver se vai dar certo, afirma Mehta.
Economia do tráfico
Havia policiais já na entrada da favela. No meio do percurso, em um mirante acidental (com ampla vista para o mar, à frente, e para o morro Pavão-Pavãozinho, com a concentração de casas que o recobre), mais policiais estavam a postos.
Mehta quis falar com um deles, e perguntou se todos os traficantes já foram embora e se a atitude dos moradores perante eles mudou.
Ouviu que o tráfico não é mais como antigamente, mas que ainda há “um ou outro” traficante remanescente, alvo do combate diário da polícia; que os policiais enfrentam dificuldades porque o tráfico estava profundamente enraizado na comunidade; que ainda há resistência por parte dos moradores, porque muitos viviam, direta ou indiretamente, do tráfico.
“Este policial apontou para uma questão crucial”, comentou. “A economia da favela tem sido o tráfico, e muitos sobreviveram disso por gerações. Que alternativas essas pessoas vão ter? Se não forem educadas, onde vão arranjar emprego?”, questionou, apontando para a necessidade de programas de profissionalização e inserção no mercado de trabalho.
O escritor observa que as UPPs não tratam tanto de “pacificar”, mas mais de “legalizar”, com a regularização de serviços e de documentação de moradores.
Ação ‘cosmética’
Ele levanta dúvidas sobre o alcance do programa, apontando que a meta é chegar a 40 UPPs até 2014, mas que o Rio tem mais de 600 favelas.
“Claramente, o que está acontecendo é de alguma maneira cosmético. Abrange áreas frequentadas por turistas, que precisam ser limpas. Nas demais favelas, continua sendo cada um por si.”
Em dezembro, porém, Mehta visitou comunidades pacificadas – como o Morro Dona Marta e a Rocinha – e não pacificadas – como o Complexo do Alemão. As diferenças entre umas e outras já ficam bastante claras.
“Para começar, você não vê meninos de 12 anos carregando um AK-47, o que me chocou. Gosto do que está acontecendo aqui. As pessoas não estão mais vivendo sob a humilhação do regime de moleques que dizem quando podem sair de casa”, afirma.
A pobreza pode ser mais aparente nas favelas de Mumbai, mas a violência é bem mais presente nas favelas cariocas. Já nas comunidades pacificadas, considera, pessoas que nunca souberam o que é ter segurança diária agora podem respirar.
“Mas não se pode trocar uma tirania pela outra. A polícia tem que tomar cuidado para não ser outra força ocupante”, diz.
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