Agroecologia e soberania alimentar, por Raquel Torres

Como você já viu aqui, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com 790 mil toneladas consumidas em 2009. Em média, cada brasileiro consome mais de cinco litros por ano. Não bastasse isso, a expansão desse mercado no país tem sido assustadora: entre 2000 e 2008, o crescimento foi de 176%, enquanto a média mundial no mesmo período foi de 45,4%. Para completar, a pressão exercida por empresas e políticos sobre os órgãos fiscalizadores faz com a proibição do uso de substâncias nocivas seja difícil e demorada.

Mística de aberturaA relação entre produtores e venenos agrícolas foi uma das discussões mais presentes na 10ª Jornada Nacional de Agroecologia da Via Campesina, realizada em Londrina/PR entre os dias 23 e 25 de junho, com o tema ‘Cuidando da terra, cultivando biodiversidade, colhendo soberania alimentar’. Mas outras questões importantes – e inseparáveis da dos agrotóxicos – foram debatidas pelos mais de 4 mil participantes. Ao longo de todo o processo, palestrantes e conferencistas demonstraram que agrotóxicos, sementes transgênicas, biologia sintética e leis ambientais estão relacionados muito intimamente entre si – e que os consumidores têm cada vez menos controle sobre a sua própria saúde.

As mais de 50 oficinas realizadas tinham temas como produção de leite, organização de feiras, compostagem, produção animal em sistema agroecológico e sistemas alternativos de irrigação para produtores familiares. Entre os participantes, um objetivo claro: buscar formas de garantir a soberania alimentar, ou seja, definir com autonomia o que produzir e ter acesso a alimentos acessíveis, nutritivos e produzidos de forma sustentável.

“Vocês têm que entrar na justiça contra nós”

O controle sobre os agrotóxicos no Brasil é feito hoje pelo Ministério da Agricultura, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama). “O trabalho não é nada fácil. Desde 2008, a Anvisa tenta avaliar 14 agrotóxicos, mas as empresas usam as mais variadas estratégias para impedir que a gente proíba o uso”, explicou Letícia Silva, representante da Anvisa.

De acordo com ela, uma dessas estratégias é a ‘entrada’ nas universidades, com a contratação de pareceristas para avaliarem seus produtos positivamente. “Recebemos pilhas de pareceres de universidades dizendo que aquele produto é bom. Se for algo proibido na Europa, por exemplo, eles dizem que só foi retirado de determinados países por falta de mercado, ou por falta de interesse das empresas. Ao mesmo tempo, temos centenas de estudos sérios, feitos por pesquisadores independentes, que comprovam os danos daquele produto à saúde”, disse.

.Ela disse que as companhias também buscam apoio político – “recebemos deputados, senadores e prefeitos de todos os partidos falando em favor das empresas” – e que chegam a entrar com ações judiciais contra a retirada de produtos, conseguindo liminares que acabam atrasando a proibição. “Há ainda outro caminho: o de buscar apoio com os próprios produtores rurais. Hoje, no Brasil, 60% da venda de agrotóxicos é financiada pelas próprias empresas que produzem os venenos. E, no fim da safra, o produtor paga pelo que usou no início. As companhias então buscam apoio desses mesmos produtores para fazerem pressão contra as proibições”, afirmou.

Para Letícia, uma das saídas para enfrentar esse problema está no controle social. Ela incentivou os participantes da jornada a pressionarem as agências reguladoras, assim como fazem as empresas de agrotóxicos. “Vão às secretarias de saúde, de meio ambiente. Vocês têm que entrar até com ações judiciais contra a Anvisa, se for preciso. Também precisamos ser cobrados. Estamos tentando fazer o trabalho, mas as pressões são fortes e precisamos dessa contribuição da sociedade, dizendo que não quer correr riscos, que quer garantir seu direito à saúde, que quer garantir seu direito de produzir sem agrotóxicos”, defendeu.

Afinal, quem controla a alimentação?

As empresas que controlam os agrotóxicos são exatamente as mesmas que controlam o mercado de sementes.  “Essas companhias começam a perceber que as pessoas não querem consumir agrotóxicos. Por isso, investem em outro tipo de tecnologia, que é a produção de sementes, especialmente as transgênicas. Essas sementes ou são resistentes a um tipo de herbicida ou funcionam, elas próprias, como agrotóxicos”, explicou Letícia Silva.

Para Darci Frigo, da ONG Terra de Direito, a ação simbólica mais importante da jornada teve a ver justamente com as sementes: agricultores trocaram entre si sementes crioulas (nativas). “Essa é a ação política mais importante, porque vai no centro da estratégia das companhias que dominam a semente e tornam os agricultores escravos delas”, disse, referindo-se ao fato de que muitas sementes comercializadas dão frutos estéreis, ou seja, precisam ser compradas novamente a cada safra.

StedileJoão Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), afirmou que o modelo do agronegócio não tem futuro. “É muito forte, mas acredito que será derrotado pela natureza”, disse, indicando algumas das contradições do modelo em relação à natureza. De acordo com Stédile, um dos problemas é ele não conseguir produzir sem usar venenos. “E não é por falta de tecnologia, já que é possível produzir sem agrotóxicos em grandes áreas. O problema é que eles não querem usar mão de obra suficiente para isso, porque seu objetivo exclusivo é o lucro”, apontou.

Outra questão é a expulsão de trabalhadores do interior, já que a mão de obra necessária ao modelo do agronegócio é reduzida. “Em Ribeirão Preto, capital do agronegócio no Brasil, o número de pessoas na cadeia é o dobro do número de trabalhadores rurais. Que tipo de sociedade é essa, que tem mais gente na cadeia do que produzindo alimentos? Isso dá uma dimensão do quanto o campo está esvaziado”, questionou.

Para Stédile, colocar barreiras ao agronegócio deve passar por algumas ações, como a luta contra os agrotóxicos; a defesa e a multiplicação das sementes nativas; a cobrança para que governantes cumpram leis que favoreçam os pequenos produtores, como o Programa de Aquisição de Alimentos (um programa do governo federal de aquisição de alimentos da agricultura familiar); e a construção de projetos de agroindústrias cooperativadas.

Ficção científica

Os agrotóxicos e as sementes transgênicas não são as únicas ameaças à soberania alimentar. De acordo com Pat Mooney, da ONG ETC, grandes empresas transnacionais também dominam a chamada biologia sintética. “Parece ficção científica, mas é o que está acontecendo hoje: os cientistas acreditam ser possível manipular a biomassa para produzir qualquer coisa que desejem, desde óleos e móveis até alimentos. E imaginam ser possível produzir mais biodiversidade não-natural do que existe naturalmente”, disse.

CampanhaEle explicou que se trata de uma tecnologia diferente da dos transgênicos: “Com os transgênicos, se move uma parte do código genético de uma espécie para outra, pra criar plantas mais resistentes, por exemplo. A biologia sintética é diferente. Trata-se realmente de construir DNA. Os cientistas já construíram códigos genéticos em laboratórios e, com isso, conseguiram fazer vida artificial. Em maio do ano passado, uma pequena companhia, financiada pela British Petroleum, pela Exxon e pelo governo dos EUA, já conseguiu fabricar microrganismos”.

De acordo com Mooney, a ideia é que esses microrganismos convertam qualquer tipo de vegetal nos produtos desejados. “Não importa o que os agricultores colham: as fábricas é que vão decidir o que aquilo vai virar. Então, se o produto ‘plástico’ for necessário e pagar bem, as empresas vão fazer só plástico, e a população com fome vai continuar com fome”, alertou, dizendo que duas fábricas que trabalham com biologia sintética já foram construídas em São Paulo.

Ele disse ainda que essas empresas têm apontado a biologia sintética como resposta às mudanças climáticas do mundo. “Elas dizem: ‘nós ajudamos a provocar essas mudanças, então confiem em nós, pois sabemos como consertar’. Dizem que podem lidar com qualquer crise – alimentar, financeira, de combustível”, afirmou. De acordo com Mooney, essas empresas têm afirmado que é possível controlar a temperatura do planeta, por meio de uma ciência chamada geoengenharia. “Há um grande perigo em termos essas companhias regulando o termostato do mundo, fazendo experimentos com nossos ventos e oceanos”, defendeu.

Mooney assegurou que a biologia sintética e a geoengenharia estarão no centro das discussões da Rio +20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que vai acontecer no Rio de Janeiro em 2012. “A briga será pelo controle da biomassa e do termostato. Vamos nos render a tecnologias não testadas? A novos senhores que vão tomar conta? Ou o mundo vai finalmente aceitar a ideia de soberania alimentar?”, questionou.

O papel da educação

Educação no MSTPara Conceição Paludo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a luta pela agroecologia passa por uma educação do campo de qualidade. Ela explicou o papel que a educação tem em uma sociedade de classes: “Na perspectiva das classes dominantes, que são quem dirige a política educacional, a educação está a serviço da formação de uma consciência alienada. É uma consciência de superfície, formada só para saber a aparência da realidade. Educar significa fazer aceitar a ordem”, disse.

De acordo com a professora, a educação popular deve ser voltada para formar homens e mulheres que caminhem para a transformação. “Para fazer frente ao agronegócio, por exemplo”, defendeu.

Aleida GuevaraAleida Guevara, médica cubana que é filha de Che Guevara, fez a conferência de encerramento da Jornada, e destacou a falta de informação como um problema que dificulta a formação de consciência e a luta por mudanças no modelo produtivo. “Há algum tempo, um grande escândalo tomou conta das mídias brasileiras em geral: o MST havia atacado e arrasado áreas enormes de eucaliptos. Isso foi dito muitas vezes. Mas a grande imprensa não disse, em momento algum, que esses eucaliptos são uma ameaça às terras. Que, inclusive, já não se cultiva mais eucalipto na Austrália porque seca o solo. Este é um exemplo de coisas que acontecem, mas não temos as informações corretas e, por isso, não podemos reagir”, disse. Ela também destacou o papel que a educação tem na emancipação: “Só um povo culto é realmente livre. Se uma pessoa tem esclarecimento do que quer fazer e por que, não será manipulado”.

EPSJV na Jornada

Entre as ações de aproximação com movimentos sociais desenvolvidas pela EPSJV está a Coordenação dos Polos de Educação Profisisonal nos Territórios de Manguinhos e Mata Atlântica (CPEP-Terramata), voltada para a formação profissional de jovens e adultos moradores do entorno dos campi da Fiocruz, nas comunidades de Manguinhos e Jacarepaguá. Segundo Grácia Gondim, que coordena o Terramata, a ideia é fortalecer a população na perspectiva de participar e intervir de forma propositiva na gestão do território e nas políticas sociais públicas.

Ela explica que, por conta disso, os atores envolvidos no projeto definiram a necessidade de conhecer outros movimentos sociais comprometidos com a transformação da sociedade. Nessa perspectiva, participantes do projeto foram à Jornada em Londrina. “Pensamos tanto na possibilidade de troca como na de aquisição de conhecimentos, de modo a problematizá-los e situá-los no contexto e no currículo dos cursos propostos pelo Terramata”, explica a coordenadora. De acordo com ela, o encontro vai gerar alguns desdobramentos: “Vamos problematizar os temas trabalhados na Jornada, verificando sua pertinência para sua inserção nos currículos a serem elaborados no segundo semestre de 2011 e, em particular, a proposta da agroecologia urbana como estratégia para o desenvolvimento sustentável das cidades, para a valorização da vida e para o fortalecimento da cidadania”, diz.

Documentos

Leia aqui a Carta da 10ª Jornada de Agroecologia, com uma série de reivindicações aos governos estaduais e federal.

E veja aqui o abaixo-assinado feito pelos participantes da Jornada e enviado ao governo federal, pedindo a proibição do metamidofós, que já foi banido de diversos países. Embora esse agrotóxico tenha tido sua proibição determinada pela Anvisa este ano (ele deve deixar de ser produzido em 31 de julho e deixar de ser comercializado a partir de 2012), a Justiça concedeu uma liminar à empresa Fersol permitindo sua produção e comercialização.

Reportagem de Raquel Torres, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

 

http://www.ecodebate.com.br/2011/07/05/agroecologia-e-soberania-alimentar-por-raquel-torres/

 

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