Quando o Brasil ainda está procurando digerir as revoltas populares que destruíram alojamentos e outros espaços no canteiro de obras da Usina Jirau, no Rio Madeira, RO, e na Usina São Domingos, MS, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresenta à sociedade brasileira o seu relatório anual Conflitos no Campo Brasil 2010.
Entre os conflitos registrados, sobressaem, pelo elevado índice de crescimento que apresentam, os conflitos pela água. Um crescimento de 93,3% em relação ao ano de 2009. Em 2010 foram registrados 87 conflitos, afetando 197.210 pessoas, quando em 2009 foram 45 os conflitos registrados, envolvendo, porém, um número maior de pessoas, 201.675 pessoas. É o maior número de conflitos desde o ano de 2002, quando a CPT começou a fazer o registro destes conflitos. Número igual, 87 conflitos, foi registrado em 2007, afetando, porém, um número menor de pessoas, 163.735.
Os conflitos pela água estão relacionados a seu uso e preservação, à construção de barragens e à apropriação particular. Estes conflitos acontecem nas situações de destruição e/ou poluição, pesca predatória, divergências na comunidade, impedimento de acesso à água, expropriação ou ameaça de expropriação, não reassentamento ou falta de projeto de assentamento ou reassentamento inadequado, e não cumprimento de procedimentos legais.
Em 2010, 47 conflitos, 54%, estiveram relacionados ao uso e preservação da água, 31 conflitos, 25,5%, a barragens e açudes e 9 à apropriação particular, 10,3%.
Na construção de barragens registraram-se duas greves de trabalhadores reivindicando aumento de salários, melhores condições de trabalho e assistência médica. Em junho, nas obras de construção da hidrelétrica de Santo Antonio, no Rio Madeira, Rondônia, e em novembro nas obras da PCH Pratas, em Bandeirante, SC.
O estado que registrou o maior número de conflitos pela água foi a Bahia, com 15, 4 relativos a barragens e 11 ao uso e preservação da água. Minas Gerais teve o registro de 11 conflitos, 6 relativos às barragens e 5 ao uso e preservação.
A região Nordeste concentrou o maior número de registros (38), 43,7% do total, seguida pelo sudeste com 22, 25,5%, Norte com 17, 19,5% e Centro-Oeste e Sul com 5 cada um, 5,7%.
Os conflitos pela água, em 2010, estiveram acompanhados de violência física e psicológica. Foram registradas 14 ameaças de morte, 4 tentativas de assassinato, duas prisões e dois assassinatos.
O que comanda estes conflitos é o olhar vesgo e interesseiro do capitalismo que insiste em só ver o valor econômico da água, sem dar atenção aos mais importantes como o biológico, ambiental e social.
Quando o econômico monopoliza o valor da água, os conflitos e a violência encontram aí o chão fértil para se desenvolverem. Um exemplo disso são os dois casos ocorridos em 2010 de assassinatos em conflitos pela água, que destacamos abaixo:
Pescadores artesanais do Rio de Janeiro, assassinados em projeto da Petrobras
Os Projetos GNL e GLP são empreendimentos da Petrobrás destinados ao transporte de gás. Estão sendo construídos dutos submarinos que partem das proximidades da Praia de Mauá, no município de Magé, RJ, e têm por objetivo propiciar a importação de gás natural liquefeito através de navios. Para executar os projetos, a PETROBRAS contratou o Consórcio GLP Submarino, formado pelas empresas GDK e OCEÂNICA.
As obras, que integram o Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, afetam a pesca artesanal, principal atividade de subsistência de uma comunidade de três mil famílias de pescadores. Em 2003, os pescadores já haviam começado a sentir o efeito da presença constante de embarcações fazendo testes na baía de Guanabara e perceberam que grandes intervenções na área onde pescavam iriam acontecer. Por isso, em 2007, criaram a Ahomar [Associação Homens do Mar], que hoje tem 830 associados em sete municípios do Rio. A Ahomar se propôs resistir à obra em virtude do impacto ambiental que provocava e por tornar inviável a pesca na área. Em abril de 2009, paralisaram as obras de construção dos dutos por 36 dias, lançando redes nas áreas em que pescavam, impedindo a continuação das atividades das empresas. Essa ação provocou ataques, prisões, processos de criminalização. No dia 1º de maio de 2009, o presidente da associação, Alexandre Anderson de Sousa sofreu um atentado do qual saiu ileso. No dia 22 de maio, ainda em 2009, o tesoureiro da entidade, Paulo César Santos Souza foi assassinado. Sua casa foi invadida por três homens que o espancaram e dispararam cinco tiros em sua cabeça.
Em janeiro de 2010, um novo assassinato. Um dia depois de protocolar documento na Petrobras denunciando a presença de homens armados no canteiro de obras, o pescador Márcio Amaro foi assassinado. O presidente Alexandre Anderson de Souza, já havia sofrido, poucos dias antes, ameaça de prisão. Em abril, ele e outro companheiro, Deaize Menezes de Sousa receberam ameaças de morte e no dia 31 de julho houve uma tentativa de assassinato contra os dois. No dia 1º de setembro, um major do GAM [Grupamento Aéreo Marítimo da Polícia Militar do Rio] esteve na sede da Ahomar tentando levar preso o presidente, sem qualquer mandado judicial, nem acusação formal, o que não aconteceu por haver no local muitos pescadores.
A partir daí, Alexandre Anderson, passou a ter proteção policial com uma escolta que o acompanha 24 horas por dia. Sua liberdade assim fica cerceada. Segundo ele diz “não consigo mais ver meus amigos, não podemos ir a um aniversário, a uma festa. Nossa família hoje são os policiais do 34º Batalhão da Polícia Militar, de Magé, que tomam conta do nosso sono. Nossa vida é casa, trabalho e esporadicamente ir a Brasília fazer relatórios”.
Água contaminada abastece cidade no Ceará
“Incolor, inodora, insípida. Assim é a água que a comunidade de Tomé, no alto da Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte (a 198 km de Fortaleza), recebe nas torneiras de todas as suas casas. Contudo, ao analisar 46 amostras dessa água retiradas de diferentes pontos de distribuição, um estudo da Faculdade de Medicina da UFC (Universidade Federal do Ceará) constatou que em todas há resquícios de diferentes tipos de defensivos agrícolas [agrotóxicos], o que faz dessa água uma ameaça à saúde de todos que a ingerem.” Assim começa um texto da UOL Notícias no dia 13/02/2011.
O estudo constatou a presença de 22 princípios ativos de agrotóxicos na água consumida pela comunidade de Tomé, assim como em outras quatro localidades. Entre os defensivos há inseticidas, fungicidas, herbicidas e acaricidas. A água, distribuída pelo SAAE (Sistema Autônomo de Água e Esgoto) de Limoeiro do Norte, é retirada de canais do projeto de irrigação Jaguaribe-Apodi, do Dnocs (Departamento Nacional de Obras contra as Secas). Nesse projeto estão instaladas empresas nacionais e multinacionais que produzem frutas e grãos, e que pulverizam agrotóxicos nas plantações, tanto com o auxílio de tratores como de aviões. A Fapija (Federação das Associações do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi) recebe R$ 350 mil mensais pela permissão de uso da água contaminada. Em frente a uma das piscinas do projeto que funciona como reservatório, a própria Fapija mandou instalar placas com os dizeres: “Atenção, água não potável” e “Atenção, proibido banho e pesca”.
Um estudo da Cogerh (Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará) mostra que também a água subterrânea de poços está contaminada. As consequências do consumo desta água e do uso indiscriminado de agrotóxicos já se percebem. Pelo menos 17 pessoas na comunidade tiveram câncer. Outros apresentaram doenças como dermatites, desregulação hormonal, dificuldades respiratórias e insuficiência do fígado e dos rins. Em agosto de 2008 faleceu o trabalhador José Valderi Rodrigues, em consequência do manuseio de agrotóxicos. Ele movia uma ação de indenização trabalhista contra a empresa em que trabalhava, pois além de outros sintomas teve uma perna amputada em decorrência da contaminação pelos venenos. A principal liderança na região era José Maria Filho. Sua voz ecoava em todo o Vale do Jaguaribe, através das emissoras de rádio e em todas as manifestações sociais denunciando as violações dos direitos humanos, sobretudo a contaminação da água pelo uso de agrotóxicos. Ele fazia denúncias ao Ministério Público e em 2010 registrou Boletim de Ocorrência, depois de fotografar um avião fazendo a pulverização de venenos. Desde 2009, conforme ele mesmo comentava com amigos, vinha sofrendo ameaças de morte. No dia 21 de abril de 2010, José Maria Filho, o Zé Maria do Tomé, foi assassinado com 19 tiros, no caminho de casa, em Limoeiro do Norte. Até agora, a polícia não identificou os assassinos. Sua voz, porém, continua a ecoar na região na voz dos companheiros de luta dos movimentos sociais.
Fonte: CPT Nacional