Esquecer a violência: uma segunda injustiça às vítimas; Entrevista especial com Castor Ruiz

Um país que ainda não fez a memória de sua violência, “não julgou a nenhum responsável por tortura, morte nem desaparecimento político durante a ditadura militar. A mensagem que com isso se transmite é a de impunidade”. A análise refere-se ao Brasil e parte do filósofo espanhol, radicado no Brasil, Castor Ruiz, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.

A respeito da anistia que aqui se fez, menciona que o expediente foi celebrado tanto por exilados políticos, por permitir sua volta e iniciar a transição democrática, quanto pelos agentes da ditadura como verdadeiro trunfo, uma vez que, com uma só cartada, permitia a “impunidade do passado e a transição ‘regrada’ para um regime que não lhes pediria contas de seus atos passados”. Nesse sentido evidencia-se a importância da memória: “A justiça não se faz pelo esquecimento, mas pela memória”, e esquecer a violência é cometer uma segunda injustiça com as vítimas “condenando-as ao desaparecimento definitivo da história”.

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Ele escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006); Propiedad o alteridad, un dilema de los derechos humanos (Bilbao: Universidad de Deusto, 2006); Os Labirintos do Poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e Os Paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Confira a entrevista.

IHU On-Line – No Brasil estamos vivendo uma transição inacabada em muitos aspectos entre a pós-ditadura militar e a sociedade democrática. Como podemos pensar a transição de um regime de exceção para um estado de direito?

Castor Ruiz – Todas as experiências de estados de exceção deixam um lastro de destruição humana. O desafio das sociedades na pós-ditadura é superar as marcas da violência. Definitivamente, a violência é inerente ao autoritarismo. Contudo é mais fácil superar o autoritarismo (enquanto sistema político) que as sequelas da sua violência.

Ainda que se confundam habitualmente estas duas realidades, regime autoritário e violência, é conveniente distingui-las porque a superação de cada uma tem dinâmicas diferentes. É muito mais fácil fazer a transição de um regime autoritário para outro democrático, do que a recuperação dos efeitos humanos e sociais da sua violência.

A violência produz inexoravelmente vítimas, cujas vidas se encontram irremediavelmente truncadas pela barbárie. Mas também produz vitimários, responsáveis por essa barbárie e que continuam agindo nas instituições sociais. Como recuperar a dignidade das vítimas? Como fazer justiça às vítimas (restaurando o mal sofrido) e aos vitimários (responsabilizando-os pelo mal feito)? É nesta intersecção que, desde a segunda metade do século XX, vem-se elaborando a chamada “justiça de transição”.

A transição de um regime de exceção para um estado de direito se realizou no Brasil e no caso na Espanha com acordos políticos. Contudo, o problema dos acordos políticos é que, em nome da estabilidade do Estado, sacrifica-se, muitas vezes, a dignidade das vítimas e se ignora a responsabilidade dos vitimários. Embora a transição do estado de exceção para estado de direito possa se fazer mediante um acordo de esquecimento. As sequelas da violência não podem se apagar pelos acordos.

Violência como normalidade política

Na transição pactuada a violência cometida persiste como continuidade viva e dolorosa na vida das vítimas, ou na sua ausência. As marcas da violência não se anulam pelos meros acordos políticos. A violência provoca um corte profundo no seio da vida humana por ela atingida e, como consequência, na sociedade que a sofre. A vítima sofre os efeitos mais perversos da violência, mas o vitimário também fica contaminado pela violência; sua condição humana fica degradada pela insensibilidade; torna-se uma permanente ameaça de violência para o conjunto da sociedade. O vitimário, ainda que seja um agente público (ou talvez ainda pior por essa condição), é contaminado pela violência ao ponto de fazer dela um ato e normalidade política. Ninguém está a salvo do embrutecimento ao qual a violência reduz a condição humana do vitimário. Ele, quando não se faz a devida responsabilização social dos seus atos, torna-se uma ameaça potencial.

A violência contamina tudo o que toca: pessoas, valores, instituições, hábitos, leis, etc. Ela tem uma potência contaminante das pessoas, da cultura e das instituições. O estado de exceção é uma forma política de extrema violência que contamina a sociedade, as instituições, os valores e as pessoas que com ele compactuam.

A sociedade sob o estado de exceção fica irremediavelmente marcada pela violência ao ponto dos modelos políticos contratualistas de acordos formais tornarem-se insuficientes para apagar as suas marcas.

A violência, por ser a negação da vida humana, é o ato de injustiça por excelência. As marcas da violência, da sua injustiça, permanecem nos corpos dos torturados, das vidas exiladas cujo passado é irrecuperável, dos mortos encontrados, dos desaparecidos, dos filhos que cresceram sem os pais (desaparecidos), dos pais que até hoje amargam a ausência dos filhos (desaparecidos). Como fazer justiça aos que sofreram a violência do estado de exceção?

Esquecimento e justiça

Definitivamente não é o esquecimento que faz justiça às vítimas da violência histórica. Não é o esquecimento da injustiça que legitima a justiça de transição. A transição histórica não se conclui com a mudança do regime de governo. Para que essa transição seja completa há que se levar em conta as vítimas da violência. A injustiça por elas sofrida é, em muitos casos, irreparável, mas em todos os casos há responsabilidade (e possibilidade) histórica de suturar as feridas abertas pela violência. Esta sutura, que tornará viável a transição social e não só política, só é possível através de atos de justiça reparadora. Não existem a priori formais nem contratuais que possam se aplicar numa justiça de reparação. Cada conjuntura histórica haverá de encontrar o meio mais justo de fazer justiça às vítimas da violência estrutural. Em qualquer caso, e em todos os casos, a condição necessária para que a justiça de transição seja justa é fazer memória das vítimas. A justiça não se faz pelo esquecimento, mas pela memória.

IHU On-Line – Que paralelismos e diferenças haveria entre a transição política da Espanha, após a ditadura de Franco, e a experiência de transição no Brasil?

Castor Ruiz – Os contextos de transição política de Espanha e Brasil têm alguns pontos comuns e diferentes. Na Espanha, ainda quando da morte de Franco os militares mantinham o poder férreo, todas as forças políticas fizeram uns acordos (chamados acordos da Moncloa) que incluíam uma anistia geral, como meio para evitar que os militares perpetuassem o modelo de ditadura franquista. Depois, os acordos da Moncloa serviram de inspiração para o modelo de anistia no Brasil.

Contudo, algumas diferenças são evidentes. Na Espanha, houve uma rejeição geral ao passado de ditadura franquista e seus símbolos. Na medida em que a sociedade espanhola foi-se desvencilhando do temor a um novo regime autoritário, a rejeição à ditadura foi alastrando por todas as esferas sociais. Todos os símbolos da ditadura foram sumaria e publicamente abolidos. Todas as ruas com nomes de generais ou símbolos da ditadura foram mudadas; quase todos os monumentos que lembravam a vitória do ditador e seu regime foram retirados. Em poucas décadas todas as instituições do Estado, incluído o Exército, democratizaram-se ao ponto de rejeitar quaisquer proximidades com o passado franquista. Nenhum político ou pessoa pública relevante quer ser associado com quaisquer símbolos do franquismo.

O Brasil e os símbolos da ditadura

Entendo que esta, entre outras, é uma matéria pendente da transição política no Brasil. A maioria, por não dizer, a totalidade dos símbolos da ditadura permanecem onde estavam. Muitas das principais ruas, praças, colégios e outros símbolos públicos continuam se denominando Castelo BrancoCosta e SilvaMédiciGeisel, Figueiredo. Muitos dos políticos atuais são os mesmos que estavam durante a ditadura: Sarney é o símbolo vivo dessa continuidade não revista. Muitos torturadores continuaram exercendo cargos públicos na transição, hoje aposentados ou falecidos por idade têm em seus filhos dignos representantes políticos e públicos. Inclusive sua memória é exaltada como benfeitores da pátria.

O pior é que o dia 1º de abril ainda é oficialmente celebrado na maioria (talvez na totalidade) dos quartéis militares de forma oficial como dia da revolução. Há um setor das forças armadas e da classe política no Brasil que se identifica com o regime de exceção e justifica a ditadura como um mal necessário. Neste caso, esses setores se autocompreendem sempre de prontidão para voltar atuar quando as circunstâncias assim o requerer, segundo a sua opinião.

O melhor antídoto da violência é a memória. Por isso é conveniente lembrar que setores das forças armadas, chamados de legalistas, se opuseram ao estado de exceção; alguns até foram mortos por isso. É o caso do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, aos efeitos o comandante da base aérea de Canoas, na época. Foi morto o dia 04-04-64 por se negar a bombardear o Palácio Piratini, Porto Alegre, sede da resistência legalista.

IHU On-Line – Quais foram as principais dificuldades encontradas na transição espanhola e qual o paralelismo que poderia ser feito com as encontradas no Brasil?

Castor Ruiz – A anistia dos acordos da Moncloa, a semelhança da que também se reivindicou no seu momento no Brasil, significou a reintegração política de todos os exilados e banidos pelo estado de exceção. Foi um avanço político possível naquele momento. Porém, com o passar do tempo, o medo inicial do retorno do autoritarismo deu lugar à necessidade da verdade sobre a barbárie da ditadura. A grande pergunta que ficou na transição espanhola, assim como está ocorrendo no Brasil, é o direito à verdade sobre as vítimas da violência.

Se a transparência é o que define a democracia, os regimes de exceção fazem do esquecimento e do ocultamento os cúmplices de seus atos políticos. A transição, para que seja justa, há de levar em conta a injustiça cometida contra as vítimas. Qualquer transição justa demanda, como primeiro passo, conhecimento da verdade do que aconteceu com as vítimas. O segundo passo será julgamento dos responsáveis pelo acontecido. Terceiro passo, atos de reparação possível para as vítimas, num sentido amplo do termo. Em quarto lugar, e quando concluídos todos os anteriores, poderá se falar em perdão político aos responsáveis ainda vivos. Mas o perdão tem algumas condições.

Genocídio silencioso

Estado que compactua com o esquecimento da violência cometida por seus funcionários, instituições e estruturas permite a reprodução da barbárie como normalidade política, além de transmitir sensação de impunidade, pondera o filósofoNa Espanha criara-se uma Comissão Nacional da Memória Histórica, como instrumento para aferir a verdade das vítimas. Em torno dela surgiu uma grande rede de Associações de Vítimas. Estas, por iniciativa própria e com apoio da Comissão Nacional da Memória Histórica, foram levantando fossas de desaparecidos, estudando arquivos, revendo os casos de torturas, etc. A verdade dos fatos ocultados pela ditadura histórica serviu de base jurídica para os atos de reparação política e moral às vítimas.

Na medida em que os fatos estão ainda vindo à luz, a impressão geral que fica é que se cometeu uma enorme injustiça contra as vítimas, pelo esquecimento do acontecido. Um dado, que serve de exemplo do que estamos falando, chamou muito atenção. Como o regime de exceção durou 40 anos, há várias fases e fatos de violência extrema nesse período. Além dos milhares de fuzilados e desaparecidos durante as execuções sumárias de civis no período de guerra, constatou-se que após a guerra civil, 1939, havia uma população carcerária de mais de 1 milhão de presos, a maioria políticos. Quando a Segunda Guerra Mundial termina, em 1945, os arquivos mostram que há pouco mais de 400 mil presos. Quando as comissões foram pesquisar com mais detalhe nomes e processos de execução dos presos, constatou-se um procedimento de fuzilamento massivo e indiscriminado em todas as cadeias franquistas, caracterizando um autêntico genocídio silencioso, que até datas muito recentes havia ficado despercebido porque não se tinha noção da dimensão da barbárie cometida.

Definitivamente, o esquecimento da violência comete uma segunda injustiça contra as vítimas, condenando-as ao desaparecimento definitivo da história. Neste ponto cabe lembrar um outro fato, o de milhares de crianças que tiveram que exilar-se do país sem seus pais. Foram vários barcos só com crianças enviados com destino ao México e à Rússia. Crianças cujos pais tinham morrido ou estavam lutando; crianças que, arrancadas pela violência, cresceram longe de sua família original; crianças que nunca mais voltaram e cujos destinos ficaram, na sua maioria, desconhecidos. Igualmente triste foi o destino de milhares de refugiados que fugiram da guerra para França.

IHU On-Line – Os arquivos da ditadura espanhola foram abertos? O que isso significou à consolidação da democracia no país?

Castor Ruiz – O estado de exceção sempre oculta ao máximo sua barbárie. Uma parte importante da violência não fica registrada, é simplesmente impetrada. Há que se aplicar uma hermenêutica da violência para poder ler o não dito no dito. Ou melhor, invertendo a lógica hermenêutica, o que deveria ser dito naquilo que não foi dito. Em qualquer caso, a verdade aparece sempre como a grande inimiga da violência. Daí que os regimes de exceção e seus cúmplices na transição tentem evitar ao máximo as comissões de verdade. O Brasil vive este momento crucial. A encruzilhada em que ainda é possível trazer à luz muita da violência ocultada pela ditadura militar.

A abertura para o reconhecimento da verdade histórica da barbárie atua como um autêntico termômetro do estado de direito. Quando os regimes e governos colocam sucessivos obstáculos para que a verdade da violência seja conhecida, é um sintoma claro de que há um déficit, grave, de democracia nas instituições públicas. Se as penumbras do encobrimento são utilizadas como estratégia política pelo estado de exceção, a transparência é o rosto da democracia. Quando se oculta a violência significa que ainda há cumplicidade, explícita ou tácita, com os seus responsáveis.

No caso da transição espanhola os princípios anteriormente esboçados também se cumpriram. Entanto, as diversas instâncias do Estado mantinham simpatizantes do regime franquista. Foram inúmeros os obstáculos para abertura dos arquivos das delegacias, da central de inteligência e das prisões. Na medida em que os simpatizantes do regime franquista eram expurgados das instituições públicas, incluído o Exército, a transparência se tornou mais efetiva. A correlação entre transparência pública e conhecimento da violência é um dos mensuradores da solidez democrática do estado de direito ou de seu déficit.

IHU On-Line – Por que o Brasil não consegue fazer as contas com o seu passado ditatorial?

Castor Ruiz – Talvez tenhamos aqui um dos pontos nevrálgicos dos efeitos perversos da violência. A memória da violência não é só um ato de justiça para com as vítimas que a sofreram: é também o meio mais eficiente para neutralizá-la. A violência que se oculta tende a reproduzir-se mimeticamente. A violência tem um potencial mimético que tende a sua reprodução, de uma ou de outra forma, quando não é convenientemente neutralizada. O efeito mimético se dá em toda forma de violência. Aparece na violência familiar e social, mas também na violência política.

A memória (anamnese é o antídoto mais eficiente para neutralizar a violência, qualquer violência, enquanto o esquecimento (amnésia) é seu principal aliado. Daí que a justiça das vítimas seja sempre uma justiça anamnética, enquanto a impunidade da violência é sempre amnésica. O silêncio e o esquecimento são os meios pelos quais a violência se reproduz e perpetua nas pessoas, na sociedade e nas estruturas. O Estado que decide ocultar ou esquecer a violência cometida por parte de seus funcionários, instituições ou estruturas está propiciando que esses mesmos funcionários (ou seus colegas sucessores), instituições e estruturas reproduzam a violência no seu seio como um ato de normalidade política. A amnésia torna a violência algo normal. A normalização da violência, propiciada pela amnésia, tende a legitimá-la como meio útil para o governo social.

Sensação de impunidade

É neste contexto político conflitante de justiça anamnética (das vítimas) contra a impunidade amnésica (dos vitimários) que devemos situar no Brasil a polêmica sobre a abertura dos arquivos, a comissão da verdade, o julgamento dos responsáveis, etc.

A violência cometida pelo estado de exceção do último regime militar no Brasil permanece silenciada, ocultada oficialmente. Isso quer dizer que muitos de seus personagens continuaram (e continuam) atuando como agentes públicos, instruindo a colegas e subordinados no uso desses mesmos métodos. Instituições que não fizeram memória de sua violência histórica continuam acobertando-a como meio legítimo (normal) para determinadas situações em que eles a considerem necessária.

O Brasil não fez memória de sua violência. Não julgou a nenhum responsável por tortura, morte nem desaparecimento político durante a ditadura militar. A mensagem que com isso se transmite é a de impunidade. O Estado brasileiro com o silêncio e a política de esquecimento está conferindo impunidade para atos de violência histórica. Isso tem uma consequência grave para o presente: o Estado conserva em seu seio setores violentos em linha de continuidade com a violência institucional do passado que fazem do silêncio e o esquecimento sua estratégia de perpetuação. Não é uma casualidade que o percentual de torturas e maus tratos cometidos pela polícia na Argentina (uma realidade social próxima) seja muito inferior àquele que se comete no Brasil. A Argentina, desde há décadas, está julgando de forma sistemática muitos torturadores e assassinos da sua ditadura militar tornando a violência do Estado um tema de debate público em que se espelham agentes e instituições.

IHU On-Line – E por que a anistia foi a opção adotada em nosso país?

Castor Ruiz – A anistia foi inicialmente uma reivindicação dos exilados. Era o passo necessário para a transição democrática. Os militares do governo sabiam disso e fizeram da anistia um instrumento para negociar, também, a impunidade a respeito da violência cometida durante o regime de exceção. Daí que a própria anistia tivesse historicamente esse duplo sentido. Celebrada pelos exilados políticos como um ato de vitória que permitiu sua volta e abriu as portas para a transição democrática, foi também celebrada pelos agentes da ditadura como seu trunfo por ter conseguido, numa só cartada, a impunidade do passado e a transição “regrada” para um regime que não lhes pediria contas de seus atos passados.

Por isso o termo anistia ecoa de forma ambígua. Com base nessa ambiguidade semântica o Supremo Tribunal Federal ditou sentença no ano passado dizendo que a lei de anistia tinha anistiado também quaisquer possibilidades de julgamento pelos atos cometidos durante a ditadura. Mas o STF poderia ter utilizado essa mesma ambiguidade semântica da anistia para interpretar que a lei foi também uma imposição autoritária de um governo violento que declarou sua autoanistia, o que torna seu ato uma ilegalidade jurídica.

A ambiguidade da anistia autodeclarada pelos militares a torna um ato jurídico dúbio (suscetível de anulação) e um ato político de imunização da justiça futura. Ninguém pode anistiar-se a si mesmo das barbáries cometidas, que é o que representa a autoanistia da maioria das ditaduras do mundo. Por isso os acordos internacionais assinados pelo Brasil reconhecem a tortura um crime contra a humanidade que é imprescritível no tempo e no espaço, e não é suscetível de anistia. Cabe ao governo ter vontade política para manter estes princípios.

IHU On-Line – A partir do governo Dilma, quais são as expectativas em relação à abertura dos arquivos dos anos de chumbo?

Castor Ruiz – É difícil fazer prognósticos neste campo. Porém, podemos dizer que os rumos das decisões do governo Dilma neste sentido dependerão muito da intensidade com que a sociedade pressione a respeito. Já no governo Lula era notória e pública a divergência de posições dentro do próprio governo sobre este ponto.

Lembremos do conflito público entre o então ministro da Justiça, Tarso Genro, e o ainda ministro do Exército, Nelson Jobim. Dentro do governo há pessoas e fatias que têm uma clara posição política a respeito da necessidade de abertura dos arquivos da ditadura, do julgamento dos casos de tortura e desaparecimento, para talvez depois poder falar em anistia geral.

Contudo, as pressões pela manutenção dos arquivos fechados e a negação de qualquer julgamento é muito firme. Haja vista que continua se reelegendo como presidente do Senado, mediante acordos com o governo, um dos expoentes políticos mais nítidos do regime de exceção: Sarney. Sua eleição implica acordos políticos do governo, que deve conceder muito às forças que o apoiam. Ele, sendo um símbolo da ditadura, mantém uma rede política e econômica de influências mediante a qual controlam pontos estratégicos do poder no Brasil. Isso quer dizer que o Brasil mudou de regime, mas nem tanto. Muitas pessoas do antigo regime (as que morreram foram fielmente sucedidas por seus filhos e netos, como Magalhães Neto) continuam muito bem posicionadas política, econômica e militarmente.

IHU On-Line – É possível fazer democracia sem acertar as contas com o passado? Como?

Castor Ruiz – A democracia é um regime de governo que tem como princípio a autonomia dos sujeitos e seu autogoverno coletivo. Há muito que se questionar a respeito de se as atuais democracias formais são efetivamente democráticas ou nelas impera um regime biopolítico de governo da vontade dos outros. Nossas democracias são marcos jurídicos de princípios formais que reconhecem os quesitos necessários para se exercer a autonomia. Porém nelas operam dispositivos de poder que investem em técnicas de produção de subjetividades e fabricação de condutas. O sujeito jurídico do direito formal é invertido por objeto a ser governado. Vivemos uma tensão permanente entre os dois aspectos que encurralam a vida humana como objeto a ser governado através de formas de normalização. Esta é uma das crises das nossas democracias em escala global.

Esclarecido o marco agônico da democracia formal em que estamos tensionados, cabe conferir ao presente um valor relativo. Sua relatividade é, entre outros aspectos, em referência ao passado que o constitui. O presente de uma sociedade, contrariando o contratualismo, não existe como um momento zero da história: ele é o resultado dessa história. Toda sociedade se constrói sobre os cimentos ou escombros do seu passado. A violência é o entulho que toda sociedade quer esconder de si mesma, como se o mero ato formal de esquecimento possibilitasse a desaparição das suas consequências históricas. A violência ocultada pelo esquecimento (mas não neutralizada) persiste nas instituições sociais e se reproduz na conduta dos indivíduos como um ato de normalidade. O esquecimento tende à normalização da violência.

Memória da barbárie

A violência esquecida coloca em xeque o próprio estado de direito. O estado de direito, que já oculta a exceção jurídica como uma sombra ameaçadora da ordem que ele mesmo institui, dificilmente poderá fazer do direito uma forma de justiça se oculta a violência como meio normal de governar a vida humana, seja ou por agentes públicos, ou por atos institucionais ou por instituições do Estado.

O meio mais eficiente de neutralizar a violência do presente é fazer memória da violência passada. A memória faz presente as vítimas e as consequências perversas da violência e sua barbárie. Ela permite depurar dos aparatos do Estado os resquícios de violência que ainda perduram grudados em práticas, instituições, agentes, como atos de normalidade política. Lembrando que violência e autoritarismo existem como práticas políticas coimplicadas. Quanto mais insistente seja a rememoração da violência, mas eficiente será seu expurgo das práticas autoritárias do estado de direito.

IHU On-Line – Em que aspectos o perdão não deve ser confundido com esquecimento?

Castor Ruiz – Esta questão nos conduz ao ponto culminante do que podemos denominar uma justiça de transição. O perdão, a princípio, é uma categoria ética que pode ter fortes implicações políticas. Em primeiro lugar, cabe assinalar que só se pode perdoar o que se lembra; ninguém pode perdoar aquilo do que não tem conhecimento ou memória. O perdão demanda a memória, anamnese. Em segundo lugar, o perdão não pode ser confundido com impunidade. Em tal caso, procede-se ao desvirtuamento do perdão, a seu uso instrumental por parte dos violentos como meio de impunidade política. Algo que não corresponde ao perdão.

O perdão só pode ser concedido pelas vítimas. Há uma dimensão pessoal do perdão em que as vítimas, feito o devido reconhecimento da verdade, o devido julgamento e até a condenação dos culpados, têm o poder de perdoar para trazer a reconciliação pessoal e social. Esta dimensão ética do perdão tem profundas raízes religiosas (principalmente cristãs e budistas), mas também amplas implicações políticas.

Embora há muito debate a este respeito, entendemos que há uma dimensão política do perdão. As sociedades que viveram rasgadas pela violência: o caso da ditadura no Brasil, mas outros casos até mais graves como África do SulGuatemala, El SalvadorColômbia, e também sociedades com o terrorismo endêmico como Irlanda ou País Basco (Espanha), tem que encontrar um ponto de reconciliação social com a violência sofrida.

Essa reconciliação nunca será tal através das leis de ponto final, que são leis de impunidade. Não são leis de perdão, mas de autoperdão. O autoperdão, que pode ser um dispositivo psíquico de autorreconciliação, só é viável quando há um reconhecimento público do mal feito e um pedido público de perdão paras as vítimas. Desde a perspectiva política, o perdão só pode ser outorgado pelas vítimas após o devido processo de justiça. A reconciliação do perdão não tem por objetivo principal a impunidade dos violentos, mas a integração social digna das vítimas. O perdão é o gesto político por excelência em que as vítimas conseguem reconciliar-se, dentro do possível, com a violência sofrida.

1º de abril, uma humilhação

O perdão ainda requer o autorreconhecimento da culpa dos violentos. Sem reconhecimento por parte dos violentos da responsabilidade política do mal feito, o perdão se torna inviável. Nesse caso, a violência continua ainda viva como uma potência ameaçadora que se autoproclama um meio político legítimo quando necessário. Quando não há arrependimento, a violência ainda se mantém como ameaça para as vítimas e para ela todos somos potenciais vítimas. O ato violento do qual não há arrependimento persiste como sombra ameaçadora da própria dignidade das vítimas. Por isso resulta humilhante para os torturados, mortos e desaparecidos da última ditadura militar que ainda se celebre no Brasil o dia 1º de abril como um gesto memorável, e não humilhante.

A relação do perdão é tão complexa que torna sua dimensão política algo difícil; em muitos casos torna inviável. Mas quando as condições humanas e políticas do perdão se dão, ele pode ser um eficiente instrumento de reconciliação social. Há algumas experiências muito positivas de ex-terroristas do IRA (irlandês) que fizeram o gesto político de reconciliação pública com os filhos e esposas das vítimas que eles mataram. Tal gesto reintegra a dignidade das vítimas, a quem se reconhece a injustiça sofrida. E aos próprios terroristas que, depois do devido julgamento e prisão, puderam se reintegrar à atividade política sem as marcas da violência.

A anistia costuma ser um sucedâneo do perdão. Ela, como indicamos antes, é um conceito polissêmico e um ato político ambíguo. Como conceito foi utilizado pela maioria dos ditadores como instrumento jurídico para autoimunizar-se da violência cometida. Este é o tipo de anistia que está sendo questionada no Brasil. Contudo, cabe pensar em um outro momento da anistia. A justiça de transição devida às vítimas exige a verdade dos atos violentos, o julgamento dos envolvidos e que os tribunais ditem sentença com a pena correspondente. Após o julgamento dos responsáveis e como forma de reconciliação política, caberia pensar numa anistia da pena. Esta anistia não seria um esquecimento, senão uma forma política de perdão institucional. Ela não nega os fatos, não esquece, senão que faz justiça às vítimas reconhecendo a verdade e, como ato político de reconciliação, dependendo das circunstâncias, pode outorgar o perdão institucional (anistia) da pena.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=42487

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.