Por Alexey Dodsworth
Macaco, preto fedido, chimpanzé, tição, urubu. Você dificilmente ouvirá estes termos desprezíveis serem ditos nos dias de hoje, e quem os disser tem plena consciência de que poderá ser processado e eventualmente encarcerado. Racismo é crime. Mas não pense você que as coisas foram sempre assim. Presenciei muito deste tipo de xingamento quando era um adolescente nos anos 80, em Salvador. Em Salvador, cidade de maioria negra! Perdi a conta de quantas vezes vi pessoas negras serem alvo deste tipo de impropério. Já tive colegas que mudaram de escola por não suportarem as ofensas envolvendo a cor de suas peles. Por conta da criminalização do racismo em 1988, paulatinamente a sociedade incorporou o fato de que determinadas expressões são intoleráveis. E eu não vejo ninguém relativizar o racismo, defendendo a “liberdade de expressão” para quem queira usar estes termos asquerosos. É inegociável. Falou, vai preso. Nenhuma liberdade pode se pretender absoluta, nem a de expressão. Ou, melhor dizendo: somos livres para fazer o que quisermos e dizer o que quisermos, mas para tudo há um preço.
Se estes termos pejorativos dirigidos contra negros nos são – agora! – intoleráveis, por que toleramos bicha, viado, baitola, boiola, frutinha? Ora, dirão alguns, Bolsonaro não é racista, ele se confundiu com a pergunta, pensou que Preta Gil estava a falar de gays. Vou contar um segredinho: homofobia é racismo. Isso mesmo. “Racismo” significa sustentar a suposta inferioridade ou superioridade de um determinado agrupamento de pessoas, agrupamento este definido por alguma característica distintiva comum. Pode ser cor de pele, mas não necessariamente. E se digo isso, não é por mera retórica. Há precedentes, há jurisprudência no Brasil sobre isso. Pessoas já foram processadas por demitir funcionários que se revelaram gays, e o processo se amparou na lei antiracismo.
Deste modo, achar que Bolsonaro não cometeu um crime grave por fazer declarações contra gays e não contra negros constitui equívoco de pensamento. A matriz que norteia o discurso homofóbico de Bolsonaro é absolutamente a mesma de quem faz declarações preconceituosas contra negros. Vejamos o que faz Bolsonaro: ele sustenta a opinião de que todos os indivíduos homossexuais são doentes e promíscuos. Esta afirmação perversa constitui ofensa moral a milhões de brasileiros.
Homofobia é um tipo de racismo, tanto quanto intolerância religiosa é um tipo de racismo. E se você discorda, considere isso:
1. Pessoas que odeiam gays, religiosos ou qualquer outro tipo de agrupamento distintivo costumam se referir ao grupo que odeiam como “esta raça”. Se não é racismo, por que se referem ao grupo como “raça”? Fato: o ofensor considera o grupo odiado como uma raça à parte. Sua própria linguagem o entrega.
2. Há jurisprudência no Brasil no tocante a considerar a homofobia um tipo de racismo. Antigamente, eu considerava o PL122 desnecessário, supérfluo, por entender que já está implícito na lei que constitui crime perseguir e discriminar pessoas, ou mesmo ofendê-las moralmente, por conta de suas características singulares. No meu entender, discriminar uma pessoa por ser gorda, magra, negra, branca, atéia, religiosa, homo ou heterossexual é tudo preconceito, e preconceito é crime. Ponto final. Ou deveria ser um ponto final. O problema – e fui fortemente convencido disso ao ver um sem-fim de casos em que o agressor se fez de sonso – é que, ao que parece, as pessoas precisam de tudo bem definidinho. Tem gente que acha que perseguir negros não pode, mas perseguir gays pode. Não, não pode. Toda a discussão em torno do PL122 evoca argumentos que são exatamente os mesmos dos anos 80, quando se idealizou a lei contra o racismo. Os que eram contra esta lei afirmavam que se tratava de um “privilégio”, de uma “proteção diferenciada”. Bem, se a interpretação é esta, só me resta responder que isso se fez necessário porque a sociedade fez por merecer.
Vejam esta notícia: Vôlei: Atleta gay sofre com homofobia e clube aciona o STJD
Digamos que o jogador fosse negro, e não gay. E que as ofensas proferidas fossem macaco, preto fedido, chimpanzé.
Por que isso seria “mais grave” do que ofender o jogador, homossexual que é, num coro geral que brada “bicha, bicha”?
Se surgiu a necessidade de alterações específicas na lei antidiscriminação para incorporar “homofobia”, é porque – ao que parece – muita gente ainda acha que este tipo de preconceito é permitido e tolerado.
Enquanto isso, em outros países, a coisa é diferente. Já ficou entendido que não se pode agredir moralmente um grupo, qualquer que seja, e sair incólume. Na Inglaterra, a polícia está à procura de um rapaz que cola adesivos homofóbicos pela cidade. Será a Inglaterra um país que cerceia a liberdade de expressão? Ou nós é que ainda não entendemos o que isso significa? Alguns otimistas dizem que o fato de o CQC ter exposto Bolsonaro na TV foi um bem. Dizem os otimistas que isso expôs o preconceito do deputado. Vocês acham que isso fará com que ele perca votos? Eu não duvido que venha mesmo a perder. Mas na medida em que ele se dá ao direito de chamar os outros de bichas, viados e declarar que homossexuais são doentes e promíscuos, na medida em que ele diz o que diz e sai impune, dá um péssimo exemplo para o povo brasileiro. E o resultado é esta onda de ódio que ora se levanta. Ou vocês acham que não existe relação entre o súbito ataque moral realizado contra o jogador de vôlei e o episódio envolvendo Bolsonaro? Pode ser coincidência, claro. Infelizmente, acho que não é. Bolsonaro abriu o precedente para que todos se sintam confortáveis para urrar, numa só voz, com toda sensação de segurança deste mundo: bicha, viado, frutinha.
Não alcançamos o ideal dos Direitos Humanos por meras criminalizações. Mas a criminalização tem, sim, importante valor educativo. Até imagino que uns e outros que leiam este texto sejam racistas, e nada neste mundo pode modificar o que se passa na mente de uma pessoa se ela não quiser. Duvido, entretanto, que com todo o racismo que tenham, cometam a imprudência de xingar um negro de “macaco”.
Há os que argumentam que isso é uma “ditadura do politicamente correto”. Falam isso até sentirem na pele. Na real, falar contra procedimentos politicamente corretos nada mais é do que pleitear o direito de dizer babaquices. E então você sustenta o direito de se referir pejorativamente a outros seres humanos, até que acontece contigo o que ocorreu com Diogo Mainardi: teve um filho com problemas cerebrais. Cito, então, um trecho da revelação filosófica vivenciada por Mainardi:
A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam de explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era puro folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo que dá medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não teria problemas se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a inteligência humana é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma pessoa e outra. Só que meu filho não é retardado. E acho que não iria gostar de ser tratado como tal.
Nada mais a dizer. Onde a lógica se revela insuficiente, a vida ensina.
Texto inicialmente postado no blog Devir.
http://www.plc122.com.br/homofobia-racismo/