“A discussão do urânio, além da questão das bombas nucleares, necessariamente levanta o debate sobre a política energética no planeta e, em particular, no Brasil”. Assim Marcelo Firpo Porto inicia a discussão a respeito dos riscos a partir da atual produção de energia que se sobressai no mundo, principalmente no que diz respeito à energia nuclear. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, o pesquisador analisa a contribuição dos riscos industriais aos chamados riscos ecológicos globais; também os desastres e as catástrofes industriais, principalmente nos setores químico, petroquímico e nuclear; e, ainda, fala sobre as indústrias e os processos tecnológicos perigosos que afetam de trabalhadores a populações que habitam os territórios onde tais processos são instalados.
Marcelo fala ainda sobre como o recente episódio em Fukushima renovou o debate acerca das polêmicas em torno da posição que afirma que a energia nuclear é uma alternativa “limpa”. Ele contesta tais afirmações ao refletir sobre os resíduos radioativos produzidos e a possibilidade de grandes acidentes em escala nacional e internacional. “Há alguns anos vem sendo discutido no mundo e no Brasil a importância de se ampliar a participação da energia nuclear. Um dos argumentos utilizados é que as usinas nucleares teriam menor contribuição na geração do efeito estufa ou aquecimento global, o que vem sendo contestado”, disse ele que também questiona: “A pergunta central a ser feita neste momento – e o debate precisa ser ampliado na sociedade brasileira – é: Não temos alternativas melhores para a produção de energia?”.
Marcelo Firpo Porto é pesquisador titular do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – ENSP/Fiocruz. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os maiores riscos industriais que existem hoje? Poderia comentá-los?
Marcelo Firpo Porto – Existem várias formas de classificarmos os riscos tecnológicos industriais, mas, para fins didáticos, podemos entendê-los através de três grandes grupos. O primeiro está relacionado à contribuição dos riscos industriais aos chamados riscos ecológicos globais. Dentre estes podemos mencionar o impacto nas mudanças climáticas decorrente do uso de combustíveis fósseis na produção industrial, e também em produtos como os veículos movidos a petróleo; a poluição química transfronteriça, por exemplo, através dos poluentes orgânicos persistentes (POPs), problema que envolveu até a criação de uma convenção internacional, a de Estocolmo; e a redução da camada de ozônio, problema cuja principal origem se encontrava na produção de uma substância química, o CFC (clorofluorcarbono), usado no passado como aerossóis e gases para refrigeração, e que acabou sendo proibido em vários países. Este último caso mostra que é possível atuar de forma preventiva global, embora um facilitador se deva ao fato de o problema não ter envolvido interesses econômicos de grande monta, como é o caso dos combustíveis fósseis. Os riscos globais, principalmente as mudanças climáticas, vêm sendo amplamente discutidos pela mídia, mas até o momento poucas medidas globais vêm sendo implementadas, já que os interesses econômicos em jogo são imensos e poderosos.
O papel da indústria
Um segundo grupo de risco está associado aos desastres e catástrofes industriais, principalmente nos setores químico, petroquímico e nuclear. O crescimento da indústria química ao longo do século XX foi impressionante, e hoje em dia podemos armazenar, produzir e transportar substâncias perigosas que mesclam grandes quantidades e elevados níveis de periculosidade. O perigo ocorre quando as substâncias são explosivas, inflamáveis e/ou produzem gases tóxicos que podem matar ou gerar doenças sérias. Existe um grande caso paradigmático no mundo que foi o acidente em 1984 de Bhopal [1] na Índia, onde ocorreu o vazamento de uma substância extremamente tóxica, o isocianato de metila, numa fábrica de agrotóxicos da multinacional americana Union Carbide. A susbtância era incolor e inodora, e horas após o acidente cerca de 2500 pessoas haviam morrido. Estima-se em mais de 15 mil o número total de mortes provocadas pelo acidente, que afetou a saúde de mais de 500 mil pessoas que viviam ao redor da fábrica.
O acidente brasileiro
No Brasil, outro acidente paradigmático ocorreu em Vila Socó, em Cubatão [2], quando um vazamento de gasolina de um gasoduto da Petrobrás próximo a uma favela foi seguido de incêndio e explosão. Os números da tragédia envolvendo produção de energia exemplificam, de forma cruel, o significado de vulnerabilidade social diante das desigualdades sociais e da falta de cidadania. Os números oficiais apontam 98 mortos, mas as estimativas do Ministério Público e a da USP apontam até mais de 650 mortos, já que inúmeros corpos foram violentamente carbonizados, inclusive de crianças, e jamais foram reconhecidos, reclamados por parentes ou considerados oficialmente desaparecidos.
Acidentes nucleares pelo mundo
Outro tipo de desastre importante está relacionado ao uso da energia nuclear, obviamente sem considerar seu uso bélico. Tragédias como Three Mile Island [3], Chernobyl [4] e agora a deFukushima no Japão [5] são exemplos bem conhecidos. No Brasil tivemos em 1987, na cidade de Goiânia, o que é considerado o pior desastre nuclear na América Latina, após o abandono de um equipamento contendo uma cápsula de césio 137 numa clínica de radioterapia desativada dois anos antes. O equipamento acabou sendo levado para um ferro velho e o “pó brilhante”, inicialmente motivo de êxtase e brincadeiras, acabou contaminando centenas de pessoas. Quatro pessoas morreram após a contaminação e até hoje não se sabe bem os reais impactos do desastre, tendo sido criada a Associação de Vítima do Césio 137.
Mais perigos
O terceiro grande grupo está associado às indústrias e processos tecnológicos perigosos, mas que afetam principalmente trabalhadores e populações que habitam os territórios onde tais processos são instalados. Neste caso, países como o Brasil são especialmente vulneráveis, pois o desenvolvimento de tecnologias e indústrias consideradas mais limpas e sustentáveis nos países mais ricos são feitas às custas de uma divisão internacional do trabalho e dos riscos que intensifica a presença de indústrias perigosas em regiões da Ásia, África e América Latina. Vou citar apenas dois exemplos de grande relevância para o Brasil. O primeiro é a expansão de empreendimentos ligados à produção de ferro e aço. Ao virar uma commodity metálica, a produção de aço deixou de ser estratégica para vários países ricos, ao mesmo tempo em que pressões ambientalistas acabaram por reduzir a expansão das grandes siderúrgicas na Europa, Japão e América do Norte simultaneamente ao aumento da produção em países como Coreia do Sul, China, Índia e Brasil. O Brasil, através de empreendimentos como a Siderúrgica de Pecém (Ceará) e a Companhia Siderúrgica do Atlântico no Rio de Janeiro, uma parceria entre a alemã ThyssenKrupp Companhia SIderúrgica do Atlântico –TKCSA e a brasileira Vale, vem se tornando um grande exportador de aço bruto. O problema é que as siderúrgicas são eletrointensivas e altamente poluentes, muitas vezes afetando territórios onde habitam populações tradicionais (indígenas, quilombolas e pescadores), e a rapidez com que os processos de licenciamento ambiental desses grandes empreendimentos têm ocorrido já começam a mostrar seu preço.
No caso da TKCSA, por exemplo, o início da operação dos primeiro e segundo altos fornos produziu eventos críticos de poluição atmosférica e inúmeras denúncias por parte da população local e do próprio Ministério Público, que, inclusive, chegou a entrar com uma ação contra a empresa e contra alguns dirigentes por crimes ambientais. Um segundo exemplo envolve a produção e consumo de agrotóxicos. Este caso é interessante porque o uso de um produto industrial como o agrotóxicoocorre justamente em áreas rurais, embora seus efeitos depois se alastrem pelos ecossistemas e pela contaminação da cadeia alimentar e, consequentemente, dos próprios consumidores afetados. O Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, e o impacto à saúde da população e dos ecossistemas da produção, transporte e consumo ainda não é bem conhecido. É importante mencionar que o agronegócio baseado em monoculturas somente se viabiliza através do consumo intensivo de agrotóxicos, pois práticas orgânicas e de agroecologia são incompatíveis com monocultivos de grande extensão. Os riscos industriais também estão presentes no campo desde que a revolução dita “verde” buscou transformar a produção rural numa grande máquina industrial.
IHU On-Line – Em que medida a energia nuclear pode ser considerada também um risco industrial, como é o caso das indústrias petroquímicas e siderúrgicas? Há alguma aproximação possível?
Marcelo Firpo Porto – Há um importante estudioso dos riscos tecnológicos ambientais, o norte americano Charles Perrow [6], que em 1984 publicou um livro denominado Normal Accidents –Living with High-Risk Technologies. Perrow estudou indústrias perigosas tendo como ponto de partida o acidente na usina nuclear de Three Mile Island, e descobriu que diversas indústrias podem produzir o que ele chamou de acidentes normais. Indústrias de processos como as nucleares, químicas, petroquímicas e mesmo as siderúrgicas possuem uma característica comum, que é o forte acoplamento entre vários subsistemas técnicos e organizacionais do processo produtivo, o que é acelerado pela automação. O autor denominou isso de sistemas complexos altamente interligados, nos quais disfunções em certos subsistemas podem, através do chamado efeito dominó, levar a acidentes sistêmicos, onde todo ou expressiva parte do sistema é destruído, implicando em prejuízos de enorme valor. A questão é que a propagação de disfunções neste tipo de processo industrial possui inúmeras incertezas, e de certa forma é sistêmica e imprevisível.
Daí o fato das áreas de engenharia e ergonomia ligadas à segurança terem se desenvolvido justamente nestas indústrias, além dos setores espaciais e bélicos, já que a confiabilidade técnica do sistema em jogo precisava ser profunda e extensamente avaliada e controlada. Porém, ainda que com todo o avanço das técnicas de análise e gerenciamento de riscos nas últimas décadas, permanecem muitas incertezas e problemas que por vezes emergem no debate público apenas quando ocorrem desastres. Além disso, são necessários projetos e práticas de gestão de riscos bastante sofisticados, e países que possuem tais indústrias precisam de muitos recursos econômicos e técnicos para reduzirem os perigos de tais empreendimentos. Obviamente, vulnerabilidades institucionais, como órgãos de licenciamento e fiscalização sem recursos humanos adequados, pressões políticas para acelerar processos de licenciamento, ou ainda dificuldades econômicas por parte de algum setor ou empresa em crise podem aumentar a probabilidade, frequência ou gravidade destes acidentes.
IHU On-Line – Quais são os riscos da mineração de urânio, como aquela realizada em Caetité, na Bahia?
Marcelo Firpo Porto – Apenas recentemente comecei a tratar dos problemas da mineração do urânio, em função de se tratar de um dos casos do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil [7], um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e a Fase. Existem muitas controvérsias e polêmicas, mas a população local e diversas entidades vêm denunciando vários problemas decorrentes da mineração em Caetité, implicando inclusive em ações do Ministério Público Federal. O problema é acompanhado por várias entidades, como a Associação Movimento Paulo Jackson, Comissão Pastoral da Terra, Grupo Ambientalista da Bahia e Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité, que através de denúncias, representações e campanhas estão tentando apoiar e informar a população local. A ideia, com isso, é tentar reverter os impactos negativos já existentes e evitar o aparecimento de novos problemas com a mineração de Urânio na região. Além disso, em julho de 2010 foi realizada a Missão da Plataforma Dhesca Brasil em Caetité, com a presença da relatora do Direito Humano ao Meio Ambiente da Missão Dhesca Brasil, Marijane Lisboa, e foram feitas visitas às comunidades residentes no entorno da mineradora.
A escuridão por detrás da transparência
Uma das principais queixas se refere à falta de transparência acerca dos processos de licenciamento, da gestão ambiental e de saúde dos trabalhadores por parte das Indústrias Nucleares Brasileiras – INB. Por exemplo, a falta de transparência com relação aos casos de vazamentos e acidentes na região, incluindo a liberação de licor de urânio no ecossistema local. Embora a empresa tenha divulgado que a mineração não provoque problemas de saúde à população, tais afirmações encontram-se baseadas em dados preliminares de um estudo epidemiológico de pesquisadores da Fiocruz contratado diretamente pela INB.
Existem problemas importantes nas bases de dados de saúde, em particular as que fornecem dados de morbidade e mortalidade, e há necessidade de estudos mais independentes e de longo prazo que possam melhor avaliar os riscos, principalmente os de médio e longo prazo, para a saúde da população que vive no local, mas também para os trabalhadores. Outra questão importante é a necessidade de conhecermos melhor os impactos da mineração de urânio já desativada em Poços de Caldas. Por exemplo, existem impactos em termos do aumento do número de casos de câncer na região? Como outras potencialidades de desenvolvimento regional foram prejudicadas em função dos impactos da mineração do urânio no local?
IHU On-Line – Tratando-se de um material tão perigoso, por que o urânio e outros materiais radioativos continuam a ser explorados e utilizados?
Marcelo Firpo Porto – De um lado existem aplicações de materiais radioativos para outros fins que o uso em usinas nucleares, como na medicina nuclear, seja para uso diagnóstico ou terapêutico, ou ainda para o controle de qualidade na área industrial. Contudo, tais usos são periféricos, já que o principal uso de material radioativo continua sendo para a produção de energia em usinas nucleares, que consome boa parte da demanda global de urânio de cerca de 70 mil toneladas anuais. Ou seja, a discussão do urânio, além da questão das bombas nucleares, necessariamente levanta o debate sobre a política energética no planeta e, em particular, no Brasil.
Usinas de Angra dos Reis
Hoje a contribuição das usinas Angra I e II corresponde a cerca de 3% do consumo de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional, e há alguns anos vem sendo discutido no mundo e no Brasil a importância de se ampliar a participação da energia nuclear. Um dos argumentos utilizados é que as usinas nucleares teriam menor contribuição na geração do efeito estufa ou aquecimento global, o que vem sendo contestado. Porém a principal fonte de contestação a esta posição do nuclear como alternativa “limpa” vem justamente das polêmicas em torno dos resíduos radioativos produzidos e pela possibilidade de grandes acidentes em escala nacional e internacional, o que se renovou agora pelo acidente de Fukushima. A pergunta central a ser feita neste momento – e o debate precisa ser ampliado na sociedade brasileira – é: Não temos alternativas melhores para a produção de energia? A quem interessa a produção de usinas nucleares no Brasil? Quais as condições institucionais e políticas existentes acerca da regulação e fiscalização das usinas existentes, além de outras fases do ciclo, incluindo a mineração de urânio?
IHU On-Line – Dentro do contexto da sociedade do risco e da incerteza, como os riscos industriais podem ser compreendidos?
Marcelo Firpo Porto – Esta questão epistemológica é central para entendermos os riscos industriais modernos. O filósofo francês Paul Virilio [8] nos fala sobre o enigma da tecnologia, que é também o enigma do acidente, e faz uma analogia com a filosofia clássica aristotélica. Nesta a substância é necessária, e o acidente relativo e contingente. Mas nas sociedades modernas vem ocorrendo uma inversão, pois os acidentes tornam-se necessários, e a substância, relativa e contingente. Entendo isso de duas formas. De um lado, o sentido da produção e do uso, numa sociedade de mercado, materialista e consumista, torna-se cada vez mais contingente, o que importa são fluxos de produção e consumo atrelados a fluxos financeiros. Desta forma, o valor em si do trabalho, da produção e do uso de seus produtos são contingentes, inclusive porque a cada momento os produtos são substituídos por inovações que fazem o tempo útil ou ciclo de vida dos produtos serem cada vez menores.
Segundo o húngaro Meszáros [9], essa característica pode ser explicada pela economia política da seguinte forma: nas sociedades capitalistas avançadas existe a tendência a uma taxa de uso decrescente dos seus produtos, resultado implícito, num primeiro momento, dos avanços de produtividade conquistados. Mas esta tendência vem acompanhada de uma série de deformações nas sociedades de mercado que produzem uma espécie de “sociedade descartável”, pautada num equilíbrio artificial – e frequentemente perigoso – entre produção e consumo. O problema dos resíduos ou do lixo nas sociedades modernas pode ser visto, essencialmente, como um resultado dessa tendência.
Por outro lado, o que Virilio nos aponta é o crescente poder de intervenção humana sobre materiais e energias da natureza em níveis cada vez mais intensos e concentrados, portanto perigosos e ameaçadores. A invenção da máquina a vapor é a invenção da explosão da máquina a vapor; a do transatlântico ou navios de carga é simultaneamente a de naufrágios como o do Titanic ou o Exxon Valdez; a dos aviões é a invenção da queda dos aviões. Toda nova tecnologia ou novo sistema produtivo inventa simultaneamente novos acidentes ou, por vezes, desastres específicos. Virilio também aponta a tendência dos técnicos virarem tecnocratas e esconderem ou camuflarem os riscos das tecnologias nas quais atuam, uma certa “obscenidade” da tecnologia e dos seus defensores.
Outro referencial de grande valia para pensarmos esta questão provém de pensadores que se debruçam sobre o que poderíamos chamar de uma epistemologia dos riscos a partir do tema das incertezas e dos problemas com a chamada ciência normal, no sentido que Kuhn [10] empregou em seu clássico A Estrutura das Revoluções Científicas. A restrita separação que a ciência normal ou clássica opera entre as várias dimensões de problemas complexos – e os problemas dos riscos ambientais na sociedade são sempre complexos – contribui para a geração de dois extremos de discursos e práticas por parte de cientistas e instituições técnico-científicas. De um lado, a fragmentação e alienação do trabalho de técnicos e instituições técnico-científicas, pois recortam a realidade de várias maneiras – sem interconexões entre as várias visões – e deixam de lado aquilo que não conseguem compreender, apesar de ser essencial aos problemas que buscam resolver. Com isso jogam a responsabilidade de sua ineficiência ou imobilização para profissionais de outros setores ou para os políticos e a sociedade em geral.
De outro lado, favorece a geração de três tipos de discursos reducionistas: os excessivamente simplistas, que desprezam dimensões importantes do problema; os excessivamente complicados ou “esotéricos”, no sentido de serem compreendidos apenas pelos membros da comunidade acadêmica ou profissional que o gerou; e os excessivamente ideológicos, que concentram toda a análise do problema a partir de um conjunto de crenças ou convicções filosóficas, sociais e políticas colocadas como verdades absolutas. Na prática, muitas vezes esses discursos se mesclam no interior dos grupos técnico-científicos e das instituições, sem ajudar muito a sociedade a compreender e decidir sobre como enfrentar problemas ambientais e riscos industriais. Além disso, o reducionismo de técnicos e pesquisadores de áreas mais duras são frequentemente usados, de forma simplória e ingênua, para não se posicionarem criticamente frente a interesses políticos e econômicos que se encontram por detrás das tecnologias perigosas. Isso pode ocorrer em setores como a química, os transgênicos e também na área nuclear.
Para enfrentar os limites da ciência normal, autores como Silvio Funtowicz e Jerolme Ravetz sugerem o desenvolvimento de uma ciência pós-normal como estratégia de enfrentamento para problemas ambientais complexos, definidos como aqueles que envolvam alto grau de incertezas e valores éticos ou morais elevados em jogo. Em outras palavras, a ciência clássica, assumida como objetiva por ocultar valores e incertezas, é corresponsável pela geração da sociedade de risco e não será ela que poderá contribuir para sua transformação. Não se trata de abrirmos mão dos acúmulos já obtidos pela especialização científica, nem tampouco em perdermos a qualidade da produção do conhecimento científico. Pelo contrário, o nó da questão reside justamente no aprofundar o sentido de qualidade na produção do conhecimento, cujo sentido vem sendo degradado pelas pressões econômicas de mercado e por uma crença obsessiva no valor das análises quantitativas.
Números podem dar a impressão de precisão e certeza, porém mal empregados e hipervalorizados pela perspectiva positivista artificializam as realidades que buscam retratar. Nenhum número pode captar a diversidade de perspectivas e avaliações que se encontram presentes em qualquer tema relativo a problemas ambientais e tecnologias perigosas, em especial quando envolvem a saúde humana e dos ecossistemas. Portanto, precisamos avançar no tema das incertezas e na discussão epistemológica em sua natureza política. Muitas tragédias têm sua origem quando, na análise dos riscos e nos processos de licenciamento, incertezas são ocultadas em nome de uma aparente precisão e neutralidade por técnicos e cientistas, muitas vezes financiados justamente pelas empresas e instituições interessadas na implantação desta ou daquela tecnologia ou empreendimento. É preciso que saibamos e discutamos até que ponto incertezas elevadas ou mesmo ignorâncias estão sendo encobertas quando se afirma que certas tecnologias ou processos industriais são efetivamente seguros.
IHU On-Line – Sob quais aspectos se podem compreender esses riscos no contexto de vulnerabilidade social das populações?
Marcelo Firpo Porto – No meu livro Uma Ecologia Política dos Riscos, afirmo que o tema da vulnerabilidade social é central para entendermos a produção de acidentes e desastres em países com maiores desigualdades sociais, déficits democráticos e também impotência de instituições que atuam na regulação e controle dos riscos industriais. Em contextos vulneráveis, os riscos tecnológicos ambientais são agravados em decorrência de vulnerabilidades sociais que permitem a (re)produção social de populações, setores produtivos e territórios vulneráveis aos riscos, ao mesmo tempo que os processos decisórios e as instituições responsáveis pela sua regulação e controle não atuam de forma efetiva, pelo menos para certos grupos e territórios.
Vulnerabilidades como essas se encontram amplamente difundidas em regiões como a América Latina e Brasil, produzindo ciclos viciosos de geração/exposição/efeitos dos riscos que somente podem ser rompidos através de mudanças estruturais que redirecionem o modelo vigente de desenvolvimento e as estruturas de poder. As vulnerabilidades sociais resultam em gradientes ou diferenciais de exposição entre os grupos que vivem mais à periferia social e econômica do desenvolvimento e acabam por arcar com as principais cargas ambientais nos ambientes que trabalham e vivem. É por isso que um furacão no Haiti, uma desastre industrial na Índia ou um vazamento de gasoduto no Brasil podem matar muito mais pessoas que nos EUA, Europa Ocidental ou Japão, mesmo com eventos de mesma magnitude física.
IHU On-Line – Como é possível pensar em justiça ambiental face à iminência de desastres como os que podem ser causados por usinas nucleares, petroquímicas ou siderúrgicas?
Marcelo Firpo Porto – De acordo com o que apontamos na questão anterior, riscos em contextos vulneráveis são agravados em função de discriminações e desigualdades sociais e são, portanto, uma questão de (in)justiça ambiental. O movimento pela justiça ambiental (JA) vem se desenvolvendo nas últimas décadas a partir da luta contra dinâmicas discriminatórias que colocam sobre o ombro de determinados grupos populacionais os malefícios do desenvolvimento econômico e industrial. Segundo o espanhol Joan Martinez-Alier [11], a justiça ambiental ou ecologia política coloca-se como contraposição às outras correntes do ambientalismo internacional baseadas numa visão ecológica romântica ou na visão da ecoeficiência que une ciência tecnocrática e mercado. Ambas consideram que tanto as causas como as consequências dos problemas ambientais são de igual responsabilidade de todos os habitantes do planeta. Autores estadunidenses da justiça ambiental como Robert Bullard [12] vão negar esta visão categoricamente ao analisarem as “zonas de sacrifício”, locais onde os grupos sociais discriminados tendem a viver e trabalhar em territórios mais perigosos, sejam eles locais de trabalho, nas periferias das metrópoles ou nas proximidades de lixões e fábricas perigosas.
Outro tipo de discriminação ocorre junto aos povos tradicionais, sejam eles indígenas, quilombolas, pescadores, geraizeiros e outros tantos, desprezados em seu modo de viver em estreita relação com os ecossistemas locais quando da instalação de empreendimentos como hidrelétricas, mineração ou expansão do agronegócio. Ao articular ambientalismo com justiça social, os movimentos por justiça ambiental vem se constituindo num importante exemplo de resistência, através de ações em redes que articulam lutas locais e globais, frente aos efeitos nefastos de um capitalismo globalizado, o qual utiliza sua crescente liberdade locacional de investimentos entre regiões e planetas para inibir a construção de parâmetros sociais, ambientais, sanitários e culturais direcionadores do desenvolvimento econômico e tecnológico. Hoje em dia um tema central para os movimentos por justiça ambiental é o processo de licenciamento ambiental que despreza necessidades das populações atingidas e estudos mais profundos sobre os impactos sociais, culturais e ambientais dos empreendimentos. Isso é central seja para o debate sobre a transposição do rio São Francisco, a instalação de uma hidrelétrica, uma siderúrgica ou ainda uma usina nuclear.
Notas:
[1] Bhopal é a capital do estado de Madhya Pradesh, na Índia. Tem cerca de 1540 mil habitantes. A tragédia de Bhopal foi um desastre industrial que ocorreu na madrugada de 3 de dezembro de 1984, quando 40 toneladas de gases tóxicos vazaram na fábrica de pesticidas da empresa norte-americana Union Carbide. Este evento é considerado um exemplo de crime corporativo. Mais de 500 mil pessoas, a sua maioria trabalhadores, foram expostas aos gases e pelo menos 27 mil morreram por conta disso. A Union Carbide, empresa de pesticidas de origem americana, se negou a fornecer informações detalhadas sobre a natureza dos contaminantes, e, como consequência, os médicos não tiveram condições de tratar adequadamente os indivíduos expostos. Cerca de 150 mil pessoas ainda sofrem com os efeitos do acidente e aproximadamente 50 mil pessoas estão incapacitadas para o trabalho, devido a problemas de saúde. As crianças que nascem na região filhas de pessoas afetadas pelos gases também apresentam problemas de saúde. Mesmo hoje os sobreviventes do desastre e as agências de saúde da Índia ainda não conseguiram obter da Union Carbide e de seu novo dono, a Dow Química (Dow Chemicals), informações sobre a composição dos gases que vazaram e seus efeitos na saúde.
[2] Cubatão é um município do estado de São Paulo, na Região Metropolitana da Baixada Santista. Com um grande parque industrial, na década de 1980, foi considerada pela ONU a cidade mais poluída do mundo. A Vila Socó fica localizada na cidade e é uma favela formada por barracos de palafitas suspensos sobre uma área de mangue. Na madrugada de 24 de fevereiro de 1984, um duto de gasolina da Petrobrás que passa em baixo da vila iniciou um grande vazamento, jorrando 700.000 litros de gasolina que se alastraram por toda área alagada. Combustível misturou-se com a água do mangue sob as casas de palafitas. Uma faísca provocada por fósforo ou curto-circuito em fio elétrico pôs fogo à mistura de água com combustível. As chamas chegaram rapidamente ao oleoduto e provocaram uma explosão deixando 98 mortos e mais de 4 mil pessoas feridas.
[3] Three Mile Island é a localização de uma central nuclear que em 28 de Março de 1979 sofreu uma fusão parcial, havendo vazamento de radioatividade para a atmosfera. Sua central nuclear fica na ilha no rio Susquehanna no condado de Dauphin, Pensilvânia. O acidente foi causado por falha do equipamento devido o mau estado do sistema técnico e erro operacional. Houve corte de custos que afetaram economicamente a manutenção e uso de materiais inferiores. Mas, principalmente, apontaram-se erros humanos, com decisões e ações erradas tomadas por pessoas despreparadas. Um dia depois foi medido a radioatividade em volta da usina que alcançava até 16 quilômetros com intensidade de até oito vezes maior que a letal. Apesar disso, o governador do estado da Pensilvânia iniciou a retirada só dois dias depois do acidente.
[4] Chernobyl é uma cidade-fantasma localizada no norte da Ucrânia, perto da fronteira com a Bielorrússia. Em meados da década de 1970, foi construída pela União Soviética uma central nuclear no noroeste da cidade, no distrito de Raion. Em 26 de abril de 1986 ocorreu o acidente nuclear. Um reator da central de Chernobyl explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão. O acidente se deu durante o teste de um mecanismo de segurança que garantiria a produção de energia em caso de acidentes. A explosão ocorreu quando o sistema era testado em um dos blocos da usina, provavelmente devido à instabilidade do reator provocada por uma combinação de erros humanos na sua operação e por sua construção estar incompleta à época. As pessoas foram alertadas 30 horas depois do acidente e apenas cinco trabalhadores da usina sobreviveram ao acidente. O acidente de Chernobyl teve 400 vezes mais radiação do que a bomba atômica de Hiroshima no Japão.
[5] Fukushima é uma província do Japão localizada na região de Tohoku, na ilha de Honshu.
[6] Charles B. Perrow nasceu em Tacoma, Washington (EUA) e é um renomado sociólogo e teórico organizacional. É professor na Universidade de Yale.
[7] Ver www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br.
[8] Paul Virilio é um filósofo e urbanista francês que define a era da informática como algo perigoso, já que nos leva à perda da noção da realidade, quebrando distâncias e territorialidades e ainda proporcionando uma quantidade absurda de informações. Ele é caracterizado como um crítico que vê como negativas as implicações dos meios de comunicação de massa, apesar de não se considerar como tal, mas sim como um analista. Ele relaciona a internet com a história e a cultura estadunidense, caracterizada por uma imposição ao mundo, um controle universal como o “big brother” previsto por George Orwell.
[9] István Mészáros é um filósofo húngaro e está entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. É professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra. É ligado à chamada Escola de Budapeste, um grupo de filósofos húngaros constituído por antigos discípulos de Georg Lukács ou por ele influenciados, e que inclui Ágnes Heller e György Márkus.
[10] Thomas Samuel Kuhn foi um físico estadunidense cujo trabalho incidiu sobre História da ciência e filosofia da ciência, tornando-se um marco importante no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Seu primeiro livro foi A Revolução Copernicana, publicado em 1957. Mas foi em 1962, com a publicação do livro Estrutura das Revoluções Científicas que Kuhn se tornou conhecido não mais como um físico, mas como um intelectual voltado para a história e a filosofia da ciência.
[11] Joan Martínez Alier é um economista catalão, professor de Economia e História Econômica da Universidade Autônoma de Barcelona. É autor de estudos sobre as questões agrícolas em Andaluzia, em Cuba e no Peru, um dos membros fundadores (conselheiro e 2006-2007) da Sociedade Internacional de Economia Ecológica e da Associação Europeia de Economia Ambiental.
[12] Robert Bullard é professor de Sociologia e Diretor do Centro de Recursos Ambientais da Justiça na Universidade Clark, em Atlanta (EUA). É conhecido como o “Pai da Justiça Ambiental” e considerado um importante ativista contra o racismo ambiental, bem como o estudioso do problema e do Movimento de Justiça Ambiental, que surgiu nos EUA na década de 1980.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=41914
Excelente entrevista: didática, esclarecedora, comprometida, ampla e simples. Muito agradecida por poder acessá-la.
Cris Faustino
Nossos parabens e agradecimento, prof. Marcelo.
Sua excelente entrevista traz abordagens e informações importantes sobre a crise civilizatoria e é também muito esclarecedora sobre a mineração de uranio em Caetite, onde, esperamos tenha boa repercussão.
Boa noite,
Zoraide