Milton Santos, o grande geógrafo negro que precisou sair do país para ser reconhecido, dizia que ser negro no Brasil nos obriga “a uma condição de permanente vigília”.
É isso, o racismo não nos dá trégua. Quando baixamos a guarda, achando que alguma conquista de promoção da igualdade racial está consolidada, os racistas se levantam outra vez.
O feriado da Consciência Negra veio após anos de luta, em 2006. Em 2007 já estava sendo questionado pela Acirp, Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto. Agora é a diretoria regional do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP) que entrou na justiça contra o feriado do 20 de novembro.
Nossa dúvida é: por que só questionam o feriado do 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra, sempre, e nenhum outro? Claro, não interessa pras nossas elites um feriado que agrega valores tão fundamentais como a liberdade, a igualdade, a luta por direitos, quando eles praticam a exploração, a discriminação racial, o lucro a qualquer custo e o consumo exacerbado, e o mais importante, que se reporta à história do povo negro.
Ora, feriado por feriado, questionem o natal, que paralisa a produção por vários dias. Não, não o farão. Não apenas por que o lucro gerado pelo consumismo natalino é monstruoso, mas também por que sua essência está na cultura cristã-ocidental, hegemônica no país.
Escondem-se atrás de supostos “fundamentos jurídicos” para esconder o que realmente pensam e sentem. Não querem o 20 de novembro por que é uma data fruto do “ativismo negro” com o objetivo de chamar todos os brasileiros e todas as brasileiras, negros e negras, ou não, a dedicarem-se de maneira especial à reflexão sobre as relações raciais no Brasil e sobre as mazelas geradas pelo racismo em nosso país. É um convite para a construção de uma nova consciência de brasilidade, capaz de incluir também os afro-descendentes no projeto nacional brasileiro, com cidadania plena.
O 20 de novembro, como data que questiona o racismo no país, coloca em cheque também o racismo presente no mercado de trabalho construído pelo comércio e pela indústria nacionais, no qual negros e negras são excluídos por suas características fenotípicas. São gritantes os número dos institutos de pesquisa (IBGE, IPEA, DIEESE, etc.), que denunciam a discriminação racial no mercado de trabalho brasileiro. Os trabalhadores negros e as trabalhadoras negras são sistematicamente submetidos a rendimentos inferiores aos rendimentos dos não-negros, quaisquer que sejam as situações ou os atributos considerados, quando não tem seu direito ao emprego negado por suas características aparentes.
Não vemos esforços dessas mesmas entidades representativas do comércio e da indústria, que questionam o 20 de novembro, no combate ao racismo no mercado de trabalho. Pois bem, sem desigualdade racial não haveria necessidade de um feriado para a afirmação da igualdade. Sem uma construção hegemônica que nega a história, a cultura e a própria existência de metade da população brasileira, o 20 de novembro realmente não se justificaria. Se as datas nacionais nos incluíssem, se o panteão dos heróis nacionais nos incluísse, se a história nacional “oficial” nos incluísse, se o mercado de trabalho não nos discriminasse, o 20 de novembro não se justificaria. Mas a realidade é outra.
A partir da segunda metade do século XIX teve início no Brasil uma política nacional de “branqueamento”, cujo objetivo era construir uma nação de descendência européia, considerada a “ideal” e sinônimo único de civilização e desenvolvimento. Essa mesma política determinou também a formação de um panteão cívico e de datas nacionais, destacando heróis e eventos históricos que não incluem os afro-descendentes e os indígenas, considerados inadequados ao perfil de país que se pretendia. Grandes assassinos de negros e indígenas, como os bandeirantes, por exemplo, foram incluídos, e hoje constituem nomes de escolas, praças públicas, ruas, avenidas e rodovias, já que seus “crimes” eram consoantes ao projeto de formar um país de brancos, não somente nas características físicas, mas também em seu perfil histórico, político e ideológico.
Zumbi dos Palmares e muitos outros heróis negros que lutaram e morreram pela liberdade, por igualdade de direitos e por um Brasil sem racismo, ficaram e ficam ignorados, pois suas lutas sempre foram contrárias aos interesses das elites nacionais, primeiro para destruir o escravismo criminoso que construiu suas riquezas, palácios e templos; e, depois contra a política e economia pós-abolição, estruturadas utilizando o racismo como instrumento de exploração e dominação dos afro-brasileiros.
A recuperação da história de Zumbi é uma ação revolucionária, que contradiz a “invenção racista” de um Brasil de brancos e a cotidiana reafirmação desta branquitude nos conteúdos, práticas e imagens reproduzidas na mídia nacional (novelas e outros), na educação formal e em todas as relações sociais.
Por ocasião do 20 de novembro de 2008, encontramos um grupo de crianças realizando um trabalho a pedido da professora. Deveriam circular por um número “x” de estabelecimentos comerciais e bancários, e visualizar, apenas visualizar a presença e / ou a ausência de pessoas negras trabalhando. Eram crianças de 10 a 12 anos, e descreveram exatamente o que enxergaram, uma violenta discriminação racial, a ausência ou a presença nos postos de trabalho mais precários e pior remunerados.
Ribeirão Preto, 24 de março de 2011
Centro Cultural Orùnmilá
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“Compromisso, senão lutar vira negócio; respeito, senão militância vira farra; memória, senão a desgraça se repete”. (Hamilton Walê)
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem, a herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua mente”. (Hampatê-Bá)
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