Ronaldo Pelli
“Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. (…) Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!” (publicado em “A barca de Gleyre”. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133)
Assim Monteiro Lobato se dirigiu em carta ao amigo Godofredo Rangel, em 1908, após ter avistado na antiga Rua Larga, atual Marechal Floriano no Centro do Rio, diversos trabalhadores a caminho do trem para voltar às suas casas. É esse Lobato racista, eugenista e bastante polêmico – até para a própria época – que a escritora Ana Maria Gonçalves enxergou ao fazer uma extensa crítica a Ziraldo por ter retratado o escritor ao lado de uma mulata na camisa de um bloco de carnaval carioca de sugestivo nome: “Que merda é essa?”.
O tema do desfile do bloco, “Proibido proibir”, faz referência a um episódio anterior – que também mereceu bastante repercussão – envolvendo o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo. No fim do ano passado, o Conselho Nacional de Educação emitiu um parecer em que sugeria que o livro “Caçadas de Pedrinho” fosse distribuído para as escolas públicas do país com uma advertência que contextualizasse historicamente algumas passagens interpretadas como racistas. A recomendação, que nem chegou a se concretizar, já que o Ministério da Educação não homologou o parecer, foi interpretada por muita gente como uma espécie de censura a obra de Lobato.
Na carta aberta a Ziraldo, a autora de “Um defeito de cor” – que narra a história de uma velha africana em viagem ao Brasil, dentro do contexto da formação do povo brasileiro – colhe trechos de cartas de Lobato que mostram como o criador de Narizinho, Visconde de Sabugosa e Emília se portava com bastante racismo. Como quando elogia organizações americanas que pregam a discriminação desejando que tivesse algo parecido no Brasil: “País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan é país perdido para altos destinos”, escreve ao amigo Arthur Neiva, em 1928, de Nova York.
A carta de Ana Maria Gonçalves deu repercussão: saiu nos jornais de grande circulação, recebeu diversas críticas, incentivou um pequeno protesto ao ensaio do bloco, foi comentada por outros escritores em outros blogs. A escritora se mostrou surpresa com o tamanho do barulho, mas não com o teor das posições.
“Os contrários aos argumentos da carta estão apenas reagindo, não estão trazendo nenhum argumento novo para a discussão”, escreve ela por e-mail. “A informação de que Monteiro Lobato era eugenista e racista, e que em carta para o amigo Godofredo Rangel confessou fazer uso da própria literatura para propagar essas ideias, precisa ser parte da discussão.”
Voltando à origem de toda polêmica, ela diz ser grave a entrega de livros de Lobato a crianças pequenas, dizendo que tais obras estariam “contaminadas” com o racismo.
“Quem não quer colocar tudo isso em questão, sejam quais forem seus interesses, está contribuindo para a propagação e manutenção do racismo na sociedade brasileira.”
O também escritor Alex Castro, que está terminando um doutorado em literatura com ênfase em história, abordando a escravidão na literatura brasileira do século XIX, ecoa a carta de Ana Maria. Ele concorda que a questão da eugenia está dentro da proposta literária de Lobato. Todavia, propõe que a discussão não se atenha à pessoa física do escritor, mas que pensemos a sociedade e como ela se comporta frente ao problema da discriminação.
“O racismo não é um problema individual, mas sistêmico e estrutural da nossa sociedade”, postou em seu blog, “Liberal, Libertário, Libertino”. “Entrar na discussão caça-às-bruxas de apontar quem é ou não racista é fazer o jogo de quem quer esvaziar esse debate. Afinal, se o racismo for culpa de um ou outro racista que pode ser encontrado, apontado, morto, censurado, reeducado, então o problema não é estrutural da nossa sociedade, mas individual dessas pessoas.”
Já Ziraldo se defendeu explicando que, com o seu desenho, apenas quis terminar com a controvérsia.
“Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa
brincadeira de achar que a gente é racista”, afirmou.
A carta-aberta de Ana Maria Gonçalves recebeu críticas ainda por ter se referido a um elemento do carnaval, no caso, os blocos. Alguns comentários sugerem que em época de folia, os limites são mais flexíveis.
“Carnaval é festa do inusitado, momento da liberação. Não cabe ter conotação política nem ser censurado desta forma”, disse ao jornal “O Globo” Hiram Araújo, pesquisador e autor do livro “Carnaval: seis milênios de história”.
O jornalista Arnaldo Bloch, que também mostrou trechos dessas mesmas cartas de Lobato no mesmo periódico, afirma no texto introdutório que “desautorizar os foliões (…) é uma estupidez”.
A autora combate a ideia, porém, de uma liberalidade excessiva durante o período. Para ela, as críticas veiculadas “continuam insistindo na censura, na defesa de Lobato, no deboche ao ‘politicamente correto’ e na ideia de que no carnaval pode tudo, inclusive ignorar a dor de alguns e a longa luta de combate ao racismo nesse país”.
Não é a primeira vez que Lobato é alvo de pesadas críticas. “Há tons autoritários e preconceituosos nas narrativas que criaram os personagens Jeca Tatu e Zé Brasil”, escreve o professor Antonio Luigi Negro, em artigo publicado em outubro de 2009 na “Revista de História da Biblioteca Nacional”. Para ele, os personagens de Monteiro Lobato são salvos da preguiça e da ignorância pela doutorice do autor.
“Os estrangeiros eram, na opinião de Lobato, de ‘raça mais apta’ para progredir e enriquecer. Enquanto isso, o negro, o ‘fator secular da movimentação agrícola’, depois que se viu sem o providencial ‘chicote espevitador dos seus brios’, era um peso morto, uma ‘quantidade negativa’. O resultado disso tudo era: quem fosse brasileiro e não pudesse ser doutor, que se assumisse como indolente.”
Aparentemente, Lobato ainda será tema de muito debate pela frente.
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