por Beatriz Pasqualino e Maíra Kubík Mano
Entre os pilares do MST sempre estiveram a educação e a formação política. Por isso, a construção da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que completou cinco anos em 2010, foi comemorada como uma conquista histórica da classe trabalhadora. A história da ENFF começou nos idos de 1996, quando surgiu no MST a necessidade de se ter um espaço de formação da militância, de troca de experiências e de debate sobre a necessidade de transformação social. Localizada em Guararema (SP), a escola tem o objetivo de ser um espaço de formação superior plural nas mais diversas áreas do conhecimento não só para os militantes do MST, como também de outros movimentos sociais rurais e urbanos, do Brasil e de outros países da América Latina. Por ela, já passaram já mais de 16 mil educandos, cerca de 500 professores voluntários e quase 2 mil visitantes de todo o mundo. Para contar um pouco dessa história da ENFF, a Revista Sem Terra conversou com Adelar João Pizetta, integrante da coordenação pedagógica da escola e dirigente do MST. Confira a seguir.
Revista Sem Terra: Quais são as principais conquistas da ENFF?
Adelar Pizetta: O funcionamento da Escola – de forma ininterrupta e com a quantidade de educandos que tiveram possibilidade de estudar e professores que nela passaram – se transforma numa importante conquista dada a situação econômica e política que estamos vivendo. Não é fácil, nessas condições de refluxo dos movimentos e das lutas sociais, de crise econômica mundial que atinge a todos, de crise ideológica que afetou e afeta boa parte dos partidos e movimentos de esquerda, manter uma Escola com essa envergadura. Dessa maneira, as conquistas não são méritos da ENFF em si, mas do conjunto da classe trabalhadora, de amigos, apoiadores, militantes que participam desse importante processo de educação da classe, em especial dos camponeses. A conquista dos movimentos sociais é tornar a Escola em uma ferramenta transformadora para além dela.
Além disso, a ENFF tem a tarefa de contribuir com a reflexão, com a qualificação da práxis de dirigentes e militantes de diversos movimentos sociais do Brasil e de outros países, com o intuito de manter viva a chama da transformação social. Ou seja, não podemos continuar com essa lógica de desenvolvimento capitalista que está destruindo o planeta, as pessoas, a natureza. Por meio do estudo e das lutas, vamos entendendo que continua válida a ideia e a necessidade de transformar a sociedade e construir uma nova civilização. Por isso, outra conquista é a de ser um espaço onde se alimentam sonhos, se aspira liberdade e vincula teoria com a prática numa perspectiva emancipatória, com base nos valores socialistas e nas premissas políticas de uma sociedade de fato, democrática, fraterna e igual, como sustentava Florestan Fernandes.
RST: Ela vem cumprindo o papel para que foi pensada? Em que medida?
AP: De uma maneira geral, sim, ela cumpre um papel importante no processo de formação de lideranças e dirigentes de diversos movimentos sociais do Brasil e da América Latina. É por meio dela que muitos trabalhadores, camponeses conseguem ter acesso a elementos que os permitem entender como, historicamente, vem funcionando a sociedade e que medidas devem ser adotadas, de acordo com cada contexto, para superar as amarras que nos prendem e consolidar um processo, de fato, transformador. Já aprendemos na história que sem conhecimento sobre a realidade, a história, a economia, a organização, os processos de libertação e as perspectivas de futuro, é difícil construir novas alternativas. Assim também Florestan nos ensina que, em um país como o Brasil, se a gente não conseguir criar um senso crítico generalizado das possibilidades de mudança (e, para tanto, o estudo – com intencionalidade política – é fundamental), os trabalhadores não serão capazes de construir instrumentos organizativos, de coletividade e de lutas capazes de implementar essas mudanças na sociedade.
Então, na medida em que os trabalhadores economicamente pobres na perspectiva do capital vêm para a Escola, passam a ver o mundo de uma forma diferente e se colocam diante dele como sujeitos capazes de transformar essa realidade de opressão e injustiça no qual estão vivendo.
Desde o seu início da conformação dos trabalhos da Escola, tínhamos claro que essa estrutura física não seria uma propriedade do MST, mas, sim, estaria a serviço da classe trabalhadora.
RST: Como a ENFF ajuda a luta pela Reforma Agrária e pelas outras bandeiras de movimentos sociais?
AP: A Escola é um espaço aberto para a reflexão, para o estudo, para a elaboração de novas ideias. É um espaço onde se busca compreender com mais profundidade as contradições da nossa sociedade, dos processos em curso na América Latina. Hoje, como tem sido na história de maneira geral, organizar a força transformadora da sociedade e construir a unidade na diversidade são grandes desafios. A Escola busca ser esse espaço de construção da unidade na interpretação da realidade e fortalecer as iniciativas, as bandeiras de lutas comuns por sua transformação social. Por exemplo, nesse novo contexto da luta de classes, em que continuamos no processo de acúmulo de forças, tendo em vista a luta pela Reforma Agrária, a articulação com outros setores da sociedade, com a Via Campesina, com os movimentos urbanos é fundamental. Compreendemos que sozinhos (os Sem Terra) não teremos força suficiente para enfrentar o agronegócio, as transnacionais, o capital como um todo. Essa leitura e esse sentimento se concretizam nas iniciativas de formação que se desenvolvem na Escola Nacional. Assim, a luta pela Reforma Agrária ganha outro sentido e requer a participação dos trabalhadores urbanos, dos intelectuais progressistas, da juventude que almeja outras perspectivas que não a marginalidade e o desemprego. Por isso, continuamos defendendo que a Reforma Agrária deve ser uma luta de todos.
RST: Qual a diferença, na prática, da ENFF com relação a uma escola/universidade tradicional?
AP: Procuramos na Escola, trabalhar com sujeitos, não com indivíduos. Aqui, todos e todas possuem nome, não números. Possuem aptidões, que devem se transformar em compromissos coletivos, na construção do ambiente educativo da vida cotidiana. Esses sujeitos assumem tarefas de manutenção da escola, limpeza, lavação de louças, trabalho na produção, enfim, uma série de ações com as quais os estudantes das universidades não precisam se preocupar. Aqui, o funcionamento da Escola exige a contribuição dos educandos, pois não existem funcionários para deixar tudo limpo e organizado. Logo, a coletividade é responsável pela sua existência, manutenção e continuidade. Portanto, o trabalho é uma dimensão pedagógica, educativa fundamental na ENFF.
Outro diferencial está relacionado à forma organizativa dos educandos. Todos participam dos Núcleos de Base, com divisão de tarefas e responsabilidades internamente, como forma de garantir o cumprimento das atividades práticas, de estudo, cultura. Enfim, essa organicidade é fundamental e também passa a ser uma dimensão pedagógica da ENFF.
Na sua grande maioria, os estudantes que comparecem aos cursos na Escola (camponeses e filhos de trabalhadores pobres) vêm com intencionalidades e integram a parcela da classe que entende a real necessidade de qualificação na efetivação de uma práxis emancipadora. Portanto, as questões disciplinares, de dedicação ao estudo, à pesquisa e a própria elaboração se desenvolvem de forma consciente, sem necessidade de mecanismos como provas, lista de presença, professores autoritários etc.
RST: E no projeto político-pedagógico?
AP: Ainda do ponto de vista metodológico do plano político-pedagógico, a ENFF se diferencia em vários aspectos de uma escola convencional. Primeiro porque todos os cursos são intensivos, isto é, os educandos vivem por um determinado período na Escola. Isso faz com que a convivência seja mais intensa, as relações sociais mais presentes e, ao serem desenvolvidas ao longo do dia, evidenciam uma distribuição politicamente planejada entre tempo de estudo, tempo de manutenção de uma práxis transformadora que cuida do ambiente ao mesmo tempo que potencializa o ir além dos sujeitos na formação. Segundo: todos os professores são militantes, isto é, nenhum professor recebe para dar aulas na Escola. Esta composição de uma escola centrada na unidade da esquerda, aliada à concepção do intelectual orgânica, nos tem permitido, na pedagogia do exemplo, contar com um grupo de sujeitos políticos que ao se comprometerem com o processo de produção do novo, nos ajudam a romper com uma das cercas da exclusão: o conhecimento formal universitário do país.
Terceiro: o processo de aprendizagem não se restringe às aulas expositivas, mas os estudantes são desafiados a pesquisar, a apresentar seminários, debates, sínteses, que os fortaleçam nos processos de aprendizagem. Quarto: utiliza-se com frequência outros recursos pedagógicos, principalmente os audiovisuais e as visitas de estudo, como forma de auxiliar na aprendizagem e na elaboração de novos conhecimentos.
Por último e, não menos importante, aqui, tanto a produção como a socialização de conhecimentos, os conteúdos estudados, visam atender ao crescimento cultural individual e coletivo (organização), mais do que se preocupar com um canudo, com um diploma que os habilitam a trabalhar para o capital. Aqui, o conhecimento serve para libertar as consciências e auxiliar no processo de transformação da realidade.
RST: Para promover os cursos, a ENFF faz parcerias com universidades. Como isso se dá na prática na sala de aula?
AP: Atualmente, existem aproximadamente 25 cursos de graduação em andamento, em diferentes Estados, com mais de 20 universidades públicas do país. E, quase uma dezena de cursos de Especialização (Pós-Graduação) e Extensão Universitária, possibilitando que filhos e filhas de camponeses que vivem do seu trabalho entrem na universidade de forma coletiva, organizada e com o propósito de continuarem vinculados às suas comunidades de origem, no campo.
Os cursos se desenvolvem por meio da distribuição do tempo na Alternância, isto é, de forma modular contemplando um período intensivo de aula e outro período de estudo, pesquisa e elaboração (vinculando o conteúdo estudado e realidade social), quando o educando convive em sua comunidade. Esses períodos formam parte de um mesmo processo pedagógico, isto é, o curso, a capacitação se realiza durante o tempo todo, normalmente são quatro anos de estudo.
Nos processos de negociação desses cursos, buscamos dialogar com a universidade no sentido de potencializar nossa experiência educativa. Discutimos a necessidade e importância de ir além do que é estabelecido pela universidade no currículo formal do curso. Esses conhecimentos são importantes e garantidos durante o curso, mas acreditamos serem insuficientes para a capacitação que almejamos. Por isso, a Escola complementa com uma série de saberes em diferentes áreas do conhecimento, cujo acesso é importante para os estudantes. Com isso, reforça sua intencionalidade política de ter como fio condutor em todos os cursos a herança dos clássicos brasileiros, latinos e internacionais, como referências históricas de um processo de luta que não começou agora, nem pretende se encerrar no imediatismo da lógica atual de não priorizar a história, os sujeitos, e a luta de classes como motor daquilo que se tem e do que se quer.
RST: A ideia de se ter Sem Terra na universidade, em cursos superiores, não é bem acolhida por setores conservadores da sociedade, que tentam barrar novos cursos e chegam a dizer que a escola é doutrinária etc. Como vocês respondem a esse discurso?
AP: A classe dominante não aceita que pobres, Sem Terra, possam frequentar a escola. No máximo as séries iniciais, mas, quando essa coletividade luta para ultrapassar as barreiras e romper as cercas que os impedem de ter acesso ao ensino superior, aí, a coisa complica, pois se trata também de manter a propriedade privada do conhecimento.
Na nossa proposta, o acesso ao conhecimento é uma maneira que os camponeses pobres – que se entendem como integrantes da classe que vive do trabalho – conquistaram para buscarem alternativas de libertação. É uma maneira de ver melhor a realidade, de se perceberem como sujeitos com potencialidades e capacidades para sair da opressão, por meio da construção de caminhos alternativos, construídos por suas próprias mãos e reflexões.
Esse é o temor da classe dominante, que trabalhadores pobres possam ser arquitetos de seus próprios destinos e passem a exigir participação nos rumos políticos e econômicos do país. Por isso, a discriminação por ser Sem Terra e por ser pobre. Mais que tudo, por tentar entrar nas universidades de forma coletiva, organizada, exigindo que de fato a universidade seja para todos, numa sociedade em que apenas uma minoria insignificante de jovens tem acesso a ela e, essa minoria na sua grande maioria é juventude de classe média. Mas a teimosia, a persistência do MST faz que uma parcela importante da juventude que mora nos assentamentos tenha acesso à universidade, de uma forma diferente. Defendemos e lutamos pelo direito à educação em todos os níveis. Quando parcelas significativas de trabalhadores exigirem esse direito sagrado que é o estudo, então poderemos romper barreiras, derrubar muros e pintar as universidades com as cores do povo.
RST: A construção da estrutura física ENFF foi diferenciada, feita pelas mãos dos próprios Sem Terra e todos estudando “ao mesmo tempo”. Como foi esse processo?
AP: Recordar esse processo, depois de praticamente dez anos desde o início da construção, é um exercício ímpar. É sabido que iniciamos esse processo sem que nenhuma experiência desse porte tivesse acontecido antes. Já tínhamos muitas experiências do trabalho em mutirão, tanto nos assentamentos como também em processos de construção habitacional no meio urbano. Mas esse da ENFF se diferenciava de todos eles. Por isso, o grande desafio foi articular essa nova experiência, sem experiência. Mas é assim que os processos inovadores se constituem, os trabalhadores sendo sujeitos de sua própria história, de seus próprios projetos, lateralmente: de construção!
Foram mais de mil camponeses, acampados e assentados, na grande maioria jovens, que participaram desse processo. As 25 brigadas de trabalho voluntário, organizadas por estados, possibilitaram esse processo em que vinculou aprendizagem prática com os elementos teóricos, concretizando um dos nossos princípios pedagógicos dos processos educativos.
Durante o período de construção, a Escola proporcionava também espaços e tempos para os processos de formação como: alfabetização (essas aulas eram ministradas por companheiros das próprias brigadas de construção que tinham mais conhecimento escolar, durante as noites). Os demais companheiros/as que integravam as brigadas tinham aulas nas noites, para o estudo de temas organizativos, da história, política com a finalidade de conhecer a realidade, a sociedade que vivemos e entender por que precisamos nos organizar e lutar para transformá-la.
Além desses espaços mais formais de educação, o processo de construção também se constituiu num importante instrumento educativo. Aqui, os trabalhadores eram organizados em frentes de trabalho que abrangiam: fabricação de tijolos, alvenaria, hidráulica, elétrica, madeira etc. Nelas os companheiros recebiam orientações e explicações técnicas e pedagógicas de como e por que fazer dessa forma. Isso possibilitava que os trabalhadores ao retornarem para seus assentamentos conseguissem construir suas casas e de seus vizinhos e assentados. O efeito multiplicador foi imenso.
RST: Como a ENFF se relaciona com a comunidade ao seu redor, em Guararema?
AP: A ENFF é parte da comunidade, não é uma ilha isolada. É claro que essa relação é uma construção, por isso, leva tempo e exige estratégias de aproximação, de conhecimento da realidade e de ações conjuntas que podem ser desenvolvidas. Nesse sentido, temos uma relação com a Escola Emilia Leite (Escola Estadual) que funciona no bairro, cujos alunos podem acessar o acervo da nossa biblioteca. Existe também um programa no qual os alunos podem frequentar a Escola, todas as sextas-feiras à noite, para assistirem filmes. Imaginem que no município de Guararema o único espaço de projeção é o da ENFF. Ainda, estamos construindo juntamente com a Escola, a realização de cursos de línguas (espanhol e inglês); palestras sobre a África e América Latina, aproveitando os próprios estudantes latinos que vêm para os cursos, onde os estudantes e trabalhadores da comunidade possam frequentar. Além dessas iniciativas, há a contribuição com doações de livros para a escola do bairro, que até o ano passado não tinha biblioteca para seus alunos. Ainda, a ENFF dispõe de espaços de capacitação na área da informática e espaços de lazer, principalmente o campo de futebol, onde jovens do bairro participam.
RST: A ENFF está vivendo uma fase de dificuldades financeiras e pedindo apoio à sociedade. Quais são as formas de ajudar a Escola?
AP: Manter o funcionamento permanente de uma estrutura coma a ENFF não é tarefa fácil. Os estudantes não pagam nada para estudar, ter alimentação, material didático, acesso à internet etc. No entanto, contribuem na manutenção da Escola por meio do trabalho diário, tanto nos serviços domésticos, como também na parte produtiva (horta, pomar, suínos, aves, coelhos, vacas de leite). Uma parte do que consumimos na Escola é produzido aqui mesmo e outra parte da alimentação vem dos próprios assentamentos. Alguns produtos ainda dependemos de comprar no mercado. Mas temos muitos gastos com água, energia, impostos, telefone, gás, manutenção permanente, pois, uma estrutura com mais de cinco anos de uso já requer reparos. Além disso, está posta a necessidade de ampliação da Escola, por meio da construção de novos alojamentos.
Porém o mais importante é a continuidade dos cursos. Para tanto, contamos com a contribuição militante e voluntária dos professores e agora, recentemente, criou-se – por iniciativa de amigos professores, estudantes e militantes sociais de outras áreas – a Associação dos Amigos da ENFF. Portanto, se alguém quiser mais informação e estiver disposto a contribuir e a se somar nessa causa, deve entrar em contato com ela ([email protected]).
ENFF em vídeo
Para conhecer um pouco mais da construção e trajetória da Escola Nacional Florestan Fernandes, há um documentário disponível na internet, produzido pelo Ponto de Cultura da ENFF, em parceria com o Pontão de Cultura Rede Cultural da Terra. O vídeo, de 15 minutos, chama-se “ENFF: um sonho em construção” e pode ser assistido no link www.mst.org.br/node/9047.