Há mais de quatro décadas trabalhando com os guarani, o jesuíta Bartomeu Melià salientou que sua existência pessoal está imbricada até seus meandros pelas vivências e aprendizados com esse povo. “Fui evangelizado pelos índios”, disse à plateia que assistiu à sua conferência A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros, na noite de 26-10-2010, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU: a experiência missioneira: território, cultura e identidade.
Melià contou que nesses 400 anos de missões, os jesuítas sempre procuraram aprender a língua do povo, do lugar para onde eram enviados. Tal aprendizado se tornava uma verdadeira paixão e, às vezes, uma obsessão. Alguns missionários chegaram mesmo a enlouquecer, tamanha a dedicação e exaustão em aprender o idioma no qual estavam inseridos. Além disso, observou, um idioma precisa ser aprendido “apalpando-o”, “cheirando-o”. A língua é a “pele do povo”, e para o missionário deve ser a pele onde irá habitar desde então. A situação torna-se problemática quando se quer aprender o idioma sem viver a sua realidade. Por isso, disse Melià, não bastava traduzir o Evangelho para o guarani, mas era fundamental aprender as particularidades desse povo. No contexto da experiência missioneira a língua serviu como ponte entre missionários e indígenas.
A cosmologia em seu sentido estrito não se efetivou no contato entre padres e índios. Os missionários daquela época não estavam em condições de compreender a palavra dos índios sobre a sua cosmologia. Ademais, praticar uma religião indígena era considerado um grave equívoco pela igreja, basta lembrar da Controvérsia dos Ritos ocorrida na China, cujo protagonista foi o missionário italiano Matteo Ricci.
Padres “xamãs”?
De acordo com Melià, os índios não temem a morte, e sim as almas saídas dos corpos. “Eles não tem medo de morrer, mas medo dos mortos”. A Terra Sem Males já era um horizonte desejado pelos guarani, e a inspiração xamânica de sua religião era evidente. Nesse momento, Melià recordou a experiência do Padre Montoya, que em 1728 fala sobre aspectos da religião indígena como a existência do Curupira e da cerimônia de nascimento, na qual o pai da criança é quem fica de resguardo após o parto, deitado na rede, e recebe os cumprimentos. Outra particularidade é a inexistência de ídolos ou sacrifícios, além da saudação lacrimosa, caracterizada por lágrimas copiosas derramadas pelos guarani quando se cumprimentavam.
Melià recordou, ainda, que entre esse povo ele foi tido como uma espécie de xamã, já que tinha “profetizado” que suas matas seriam destruídas, que era preciso cuidar delas e preservá-las. Com o passar o tempo, o homem branco tornou esse alerta uma triste verdade. O próprio padre Montoya era tido como a reencarnação de um xamã guarani, e seu nome sagrado significava Sol Resplandecente. Essa estreita imbricação entre padres e índios demonstra o quanto suas culturas e crenças se enriqueceram mutuamente. A antropofagia foi outro dos temas trazidos pelo jesuíta à conferência. “Graças a essa prática os adultos trocavam de nome e as crianças podiam receber um”.
Religião, palavra inspirada
Entretanto, o aspecto mais importante destacado por Melià foi a estreita imbricação entre religião e palavra para os guarani. A religião é inspirada na palavra, e na palavra inspirada. Considerados “finos ateístas”, os guarani não acreditavam em ídolos e compreendiam a religião como palavra inspirada, sacramentada pelo canto e pela dança. Dentro do contexto de importância da palavra, o jesuíta recordou que entre os guarani uma das saudações matinais mais comuns é perguntar “o que você viu em seus sonhos?” Segundo Melià, é através dos sonhos que vem a palavra. É através dos sonhos que essa palavra se “deposita” no ventre de uma mulher e traz a vida. Para que uma criança nasça, é preciso que ela venha em forma de palavra aos sonhos de seu pai e de sua mãe. Só aí é que acontecerá a entrada da pessoa em forma de palavra no corpo da mãe. “O guarani sabe sonhar. Sonhar é dizer palavras, e as palavras são a história do povo guarani”. Essa é uma das razões por que a escola do homem branco não ressoa positivamente entre os índios: “não pode haver um professor de palavras. As palavras se recebem”.
Finalizando sua conferência, Melià mencionou a verdadeira amizade que se formou entre inúmeros missionários jesuítas e índios. Caciques, pajés e xamãs criaram estreitos laços de afeto com os padres vindos da Europa. Nesse sentido é fundamental a escuta do Outro, o respeito por sua palavra, apontou. Uma homenagem nominal a inúmeros índios selou o agradecimento do pesquisador a tudo que aprendeu com os guarani, “autores de um discurso cosmológico próprio e instransferível”.
Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don, la venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Ele esteve na Unisinos em 2006, por ocasião do Seminário Internacional A globalização e os jesuítas.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37729