Há alguns dias, falei no Twitter que estava indo entrevistar uma artista muito especial – para uma reportagem que acaba de ser publicada pelo iG. Era Gal Costa, uma das artistas mais importantes da história deste Brasil.
A certa altura da entrevista, Gal contou um episódio que não vou detalhar aqui , sobre uma briga em que se envolveu no trânsito, no auge do frêmito tropicalista, 1968, 1969, não sei exatamente. Ornada com o cabelo black power e o figurino exuberante da época, Gal (que afirma ser exímia motorista) entrou em conflito com um homem que, a partir de um gesto (obsceno) dela, desceu do carro, perseguiu a cantora, deu um tapa na cara dela e arrematou: “Ponha-se no seu lugar de mulher!”. Era 1968, 1969.
Como já cantou à mesma época outro tropicalista (negro, por vezes black power), muita coisa sucedeu daquele tempo pra cá. O Brasil aconteceu, é o maior, que é que há?
Hoje é 2010. Vivemos num outro século, no qual descendentes de árabes proclamam que não somos racistas, neodefensores (defensores?) dos direitos humanos denunciam o advento da “heterofobia”, neopregadores antiaborto brotam dos esgotos, neofeministas (feministas?) vencem eleições defendendo a integridade física das mulheres contra candidatos (negros) que já praticaram violência contra mulheres. Não somos mais misóginos. Em uma mulher como Gal Costa não bateríamos nem com uma for. Agredir Dilma Rousseff?, Marina Silva?, nem pensar! Mas aí acontece uma campanha eleitoral e de repente minhas vistas ficam turvas.
Na televisão, vejo a cervejaria Brahma fazer gracinha com o fato consumado (fato?, consumado?) de que homens (machos, daqueles que coçam o saco) gostam muito mais de futebol (e de outros homens) – e de cerveja, é óbvio – do que de mulheres.
Na “grande” mídia, leio uma famosa e formosa atriz convocando esses mesmos machos (que gostam de coçar o saco) a arrasar Dilma Rousseff nas urnas, quiçá violentamente.
No Twitter, por fim e não menos chocante, ouço um chapa dizer que viu “uma patricinha imbecil” fazer “uma conversão tão estúpida com sua Pajero que merecia uma surra”. Uma surra, entendeu? Um chapa esclarecido, percebeu? É 2010, e há gente disposta, ao menos retoricamente, a fazer com uma “patricinha estúpida” o mesmo que velhos pitbulls faziam com Gal Costa em 1969, 1968.
O monstro da misoginia mudou de cara, mudou mil caras, mas ele segue habitando o mesmo pântano em que sempre morou, e está disposto a arreganhar os dentes diante do primeiro indício de se sentir ameaçado. O monstro da misoginia odeia o sexo feminino mais que tudo na vida dele (talvez odeie ainda mais o sexo masculino, mas essa é outra parte do assunto) – e o monstro da misoginia, por ter mil caras, ocorre em forma de homem heterossexual, de mulher heterossexual, de homossexuais em geral, de minorias sexuais as mais variadas. Ocorre em todos os formatos, cores e tamanhos.
No início de 2010, homens e mulheres elegeram Marcelo Dourado o herói (ignorante, tosco, misógino, homofóbico) do Big Brother Brasil. Em outubro de 2010, mulheres (e homens) tomam, nas ruas brasileiras em campanha ensandecida, o mesmo tapa na cara que Gal tomou em 1968, 1969, multiplicado por milhões.
O monstro da misoginia tem mil faces – às vezes se disfarça de bicho-papão da homofobia, outras de dragão da xenofobia, depois de jaguadarte do racismo. O mostro de mil caras é um torturador nato, manja tudo de choque elétrico, pau-de-arara, telefone, bastão introduzido na vagina e/ou no ânus de quem ele diz mais detestar (há sempre algo de sexual no ódio do monstro de mil caras).
O jaguadarte que venceu a Alice de Lewis Carroll (mas foi vencido pela Alice de Tim Burton) é pedófilo, mas nunca ninguém vai ficar sabendo disso. Misturando-se com a paisagem de cada ocasião, ele se traveste de fanático religioso, beata castiça, padre ou pastor que usa e abusa de Deus para cuspir no mundo seus ódios internos e segredos guardados. Ele é a favor da vida, desde que não seja a vida da mãe que acabou de abortar um pedaço de si própria – o jaguadarte é sempre, sempre, sempre misógino.
Há poucos dias, disse a brava psicanalista Maria Rita Kehl, em entrevista à revista “CartaCapital”: “A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater, e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto. Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que ‘a favor da vida’ é esse?”.
Mas, ora, se é preciso ceder à pauta do monstro de mil caras e começar pelo beabá, façamos: todo bebê é concebido por uma mulher em associação com um homem. Todo aborto é feito por uma mulher com a participação (e/ou omissão) de pelo menos um homem. Bebês abortados são utilizados para demonizar e inculcar toneladas de culpa nas mentes femininas – exclusivamente das mentes femininas, como se os homens não participassem da concepção e do nascimento, ou do aborto. O abominável homem das florestas demoniza o aborto, mas não é porque queira defender a vida – ele quer é atentar contra ela, por intermédio do controle dos corpos (e das mentes) das mulheres.
Os homens da cervejaria Brahma que gostam mais de cerveja e de futebol que de mulher são os homens que não assumem o pedaço de gente que injetam no corpo de “suas” mulheres – e preferem ir ao futebol com uma cervejinha na mão a acompanhá-las até a clínica clandestina de abortos.
O dragão da misoginia (ele é macho, mas por vezes se disfarça sob o apelido de Mônica, Sônia ou, mais exótico, Weslian) não quer que ninguém saiba disto, mas todo ser humano carrega sua cota de responsabilidade pelos abortos que a humanidade comete, os físicos, ou políticos e os ecológicos. A mulher arranca um pedaço do seu corpo. O homem se omite, nos mais variados estágios: não assume o bebê, rotula de “vaca”, “vagabunda”, “puta” e “exploradora” a mulher que abortou, vez ou outra assassina e retalha o corpo da mulher que pariu. No mínimo, simula que o assunto não é com ele.
O religioso celibatário, que para todos os efeitos nunca entrou no corpo de uma mulher (embora tenha saído de um, de uma) nem nunca concebeu nenhum bebê (e quantas mulheres do padre e quantos rebentos-bastardos-errantes de religiosos há por aí, Nossa Senhora Desaparecida!), tenta enlouquecidamente controlar o corpo feminino e a mente feminina, demonizando a mulher que abortou, supostamente sozinha. O monstro de mil caras da misoginia adora o disfarece da batina do padre, do hábito da freira, da bíblia do pastor.
O(a) homossexual, frequentemente misógino(a), sente-se, ele(a) próprio(a), um aborto. O dragão da homofobia é irmão gêmeo da garatuja da misoginia, e os homossexuais são, por sinal, tanto quanto as mulheres, espezinhados e refugados por diversas religiões, mesmo por sobre a evidência simplória de que TODO homosseuxal (exceto os de proveta) foi concebido por uma relação sexual, heterossexual – por um homem (geralmente homofóbico) e por uma mulher (muitas vezes misógina). Diariamente, heterossexuais concebem homossexuais, apenas para no futuro abandoná-los à deriva.
Se esses homossexuais ficarem mais propensos ao suicídio e levarem a cabo o desespero, religiosos pisarão em seus caixões, vociferando feito cães raivosos contra o “pecado” do suicídio, a infâmia da sodomia, o horror ateu do amor homossexual. Para todos os efeitos, nenhum religioso jamais tocou sexualmente o corpo de outro homem – nem o corpo de um menino (ou menina) que, menos forte do que ele, não conseguiria jamais contar lá fora o que se passou nas alcovas de território “sagrado”. A cruzada antiaborto e anticasamento gay jamais aceita o desafio de debater a pedofilia e o abuso sexual.
Uma brasileira candidata a presidente tem sido apedrejada em praça pública, acusada de todos os vilipêndios – “abortista!”, “lésbica!”, “corrupta!”, “bígama!”, “assexuada!”, “homofóbica!”, “terrorista!”, “assassina!”, “inimiga da ditadura civil-militar!”… 99,99% de seus não-eleitores nem sequer suspeitam (ou será que fingem que não, qual cabeças de um monstro de milhões de bocas arreganhadas?) que são misógino(a)s praticantes, do dia da concepção até a noite que morrerão.
Nalgum momento da década de 1970, essa mulher foi “barbaramente torturada” por aquela ditadura, como ela mesma já atirou no rosto liso de um político do partido que se autobatizou DEM, tantando se travestir de “democratas”, mas aproximando-se em ato falho freudiano do “demo”. José Serra é do bem (ou do dem, do DEM, do demo?). À fogueira, quem deve ser remetida é a BRUXA que espelha nela todas as nossas mazelas e algumas mais.
Talvez ela seja uma ou algumas ou muitas daquelas coisas que os apedrejadores a acusam de ser. Talvez nem seja.
(A propósito, aqui no Brasil artistas empenham prestígio ligando para Lula quando querem evitar o apedrejamento de uma mulher iraniana, mas não exibem nem longinquamente a mesma indignação quando o apedrejamento é na esquina ao lado, ou dentro da própria casa. Aqui e agora, onde há fumaça, não há fogo – no máximo há fogo-de-palha. Como cantava Gal Costa em 1968, 1969, atenção, menina, precisa ter olhos firmes para esta escuridão. Porque tudo é perigoso. Tudo é divino. Maravilhoso. É preciso estar atenta e forte. Não temos tempo de temer a morte.)
Talvez Dilma seja uma ou algumas ou várias das coisas de que os apedrejadores a acusam de ser. Mas não é só ela. Eu também sou. Você também é (mesmo que seu nome seja Reinaldo Azevedo ou Otavio Frias Filho). Um mundo onde os indivíduos não encaram e menos ainda enfrentam suas próprias idiossincrasias e suas próprias responsabilidades é o mundo de indivíduos que vão buscar “abrigo” nos diversos fanatismos religiosos (ou no fanatismo ateu, futebolístico, musical, televisivo, jornalístico, cinéfilo, corruptor, ladrão, matador-de-aluguel, acumulador de dinheiro – tanto faz).
O desafio que aguarda Dilma Rousseff é gigantesco. Assim como Weslian Roriz, Mônica Serra e Soninha Francine despontam como paradigmas lastimáveis da submissão feminina aos humores machistas e misóginos de “seus” homens, maridos, patrões e chefes, cá entre nós, o mesmo perigo ronda a própria Dilma Rousseff, em relação a Luiz Inácio Lula da Silva. A postura e a atitude que ela tiver ao cabo deste magnífico (embora escabroso) segundo turno norteará seu futuro de independência (ou não) em relação ao(s) seu(s) mentor(es). E em relação a nós. E a ela mesma, Alice brasileira de 2010, acima de qualquer outro indivíduo.
Eu votarei em Dilma Rousseff, com o mais profundo dos meus entusiasmos e das minhas convicções. E aposto todas as minhas fichas em que, ao cabo de tanta luta, tanto esforço, tanto sangue, tantas lágrimas, teremos o, ou melhor, A presidente da república mais INDEPENDENTE da história deste país. E saberemos honrar a independência dela com a nossa própria, como já começamos a fazer em relação ao seu antecessor.
Abolição de escravatura é um negócio formidável, que não tem retorno. Ao futuro (e obrigado, dona Gal, pela bela, triste e violenta história que a senhora desenterrou de seu armário de ossos, e que a ajudou a ser quem é como artista; não se canse nunca, por favor, dona Gal, nós precisamos de você).
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