Unisinos: Os guarani e a luta pela terra, entrevista com Egon Heck

Política de “enrolação” não define o problema da distribuição desigual de terras no Brasil e só agrava a situação de miséria e exclusão dos índios, pontua Egon Heck. Estratégias fantasiosas foram desenvolvidas para colocar a população contra os povos indígenas

Por: Márcia Junges

A luta pela terra, contra a violência, a dependência, desnutrição e fome são constantes no cotidiano dos kaiowá guarani no Mato Grosso do Sul. Mas entre as diversas batalhas enfrentadas a que se destaca como a mais árdua e desafiadora é a luta por um pedaço de chão para viver com dignidade. Em uma estratégia para negar o direito dos índios à terra, foram desenvolvidas “teses fantasiosas e mentirosas, contrataram os melhores escritórios de advocacia, e não faltaram os antropólogos, arqueólogos e filósofos contratados para essa empreitada contra os direitos indígenas. Essa ampla mobilização foi desde os sindicatos Rurais, municípios, câmara dos vereadores, assembleia legislativa, órgãos de classe rurais e industriais, governador, deputados federais e senadores”.

A denúncia é do coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi do Mato Grosso do Sul, Egon Heck, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. O alto índice de violência é agravado pela marginalização a que são expostos os índios, fadados a viver em beiras de estradas, periferias ou perambulando de cidade em cidade. “Nos últimos cinco anos os kaiowá guarani tiveram a metade, ou mais, de todos os assassinatos indígenas registrados no país, conforme o relatório de violência do Cimi”. Voz estridente contra o verdadeiro Holocausto em marcha contra as populações originárias, Heck explica que os índios continuam sendo uma pedra no sapato do “agronegócio porque não se resolve a questão das terras”. Pequenos avanços são percebidos no reconhecimento de algumas áreas, “cujos processos de regularização têm dado alguns passos com a publicação de portarias declaratórias, como os recentes casos das Terras Indígenas de Buriti (Terrena) e Sombrerito (kaiowá guarani)”.

Egon Heck estará na Unisinos na próxima quinta-feira, 07-10-2010, quando fará uma conferência sobre as lutas dos guarani sul mato-grossenses. A atividade é parte integrante do Ciclo de Palestra Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani. Pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Para conferir a programação completa do evento, clique aqui. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais lutas do povo guarani hoje, no Mato Grosso do Sul?

Egon Heck – Eu destacaria várias lutas, fundamentalmente pela terra, violência, dependência, desnutrição e fome. Vejamos:

Terra

Dentre as diversas lutas enfrentadas pelos povos kaiowá guarani no Mato Grosso do Sul, a que se destaca como a mais árdua e desafiadora é a luta pela terra. É uma luta que vem recrudescendo na medida em que o tempo passa e a agroindústria e o agronegócio se estabelecem e se firmam em cima das terras tradicionais desse povo. Esse processo é agravado pelo fato do poder econômico e político estarem articulados e irredutíveis diante do direito dos povos indígenas às suas terras. Desde que foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, em 12 de novembro de 2007, se desencadeou uma verdadeira guerra contra o reconhecimento das terras kaiowá guarani. Essa campanha, de uma virulência sem precedentes, esteve totalmente baseada em mentiras e com o único objetivo de gerar ódio às populações indígenas, jogando a sociedade contra eles e desencadeando uma onda de violências sem precedentes na história recente desse povo. E as propostas foram as mais absurdas e racistas possíveis, dentre as quais: “não vamos ceder um palmo de terra produtiva para os índios”; “que os kaiowá guarani sejam levados para as terras do Reverendo Moon, para a terra dos kadiwéw, ou para a Amazônia, onde os índios têm bastante terra”; “vamos manter nossas carabinas engraxadas”; “os índios vão inviabilizar o estado do Mato Grosso do Sul”; e “os guarani querem 12 milhões de hectares, vão acabar com 26 municípios, vão tomar 26 cidades…”. Em sua estratégia de negar o direito dos índios à terra, desenvolveram teses fantasiosas e mentirosas, contrataram os melhores escritórios de advocacia, e não faltaram os antropólogos, arqueólogos e filósofos contratados para essa empreitada contra os direitos indígenas. Essa ampla mobilização foi desde os sindicatos rurais, municípios, câmara dos vereadores, assembleia legislativa, órgãos de classe rurais e industriais, governador, deputados federais e senadores. Além disso, tem o apoio mais amplo da CNA, bancada ruralista e representantes do agronegócio em alguns estados.

Violência

A segunda questão, intimamente ligada à primeira, é o altíssimo nível de violência. O índice de assassinatos é superior a regiões em guerra. Nos últimos cinco anos, os kaiowá guarani  tiveram a metade, ou mais, de todos os assassinatos indígenas registrados no país, conforme o relatório de violência do Conselho Indigenista Missionário – Cimi . Diante dessa altíssima e permanente violência, agravadas cruelmente pelo alcoolismo e drogas, e fragilização dos laços sociais e familiares, as autoridades indígenas perdem o controle do processo e não sabem mais como agir. Os índios se veem compelidos a pedir a intervenção policial, e exigir políticas de segurança nas aldeias. Como consequência, vemos cada vez mais índios enchendo as prisões ou migrando para outras regiões, beiras de estrada ou mesmo periferias da cidade. A causa principal desse quadro é o confinamento e negação da terra. E na luta pela terra é que se revela o aspecto mais violento da ação contra as comunidades que retornam a suas terras sagradas e tradicionais, seus tekohá. Na maioria dos casos a ação é de pistoleiros fortemente armados e seguranças particulares (milícias privadas!) contratadas pelos fazendeiros. E a ação de expulsão violenta dos índios é normalmente imediata, pois conforme expressaram os ideólogos do agronegócio, a justiça é lenta e a presença nas áreas pode significar maior dificuldade para a retirada. Eles têm tanta certeza da expulsão dos índios que mantêm atualizado na internet um quadro onde explicitam o dia da “invasão”, e o dia da “retirada”.

Dependência, desnutrição e fome

Uma das lutas diárias da grande maioria das comunidades kaiowá guarani é pela sobrevivência, em especial pela alimentação. Mais de 90% das famílias depende direta e às vezes exclusivamente de cestas básicas e outros benefícios do governo. São 15 mil cestas básicas distribuídas pelo Estado e um grande número pelo governo federal. As consequências nefastas dessa situação acontecem em diversos níveis: físico, cultural, psicológico. Ter sua sobrevivência determinada de fora gera um permanente estado de sobressalto da fome (atrasos das cestas), acomodação, humilhação. “Nós guarani sempre vivemos bem de nosso trabalho na aldeia, e depois que nos roubaram a terra nos obrigam a essa cruel dependência da cesta básica. Não queremos continuar vivendo de cesta básica, queremos nossas terras…”, declarou recentemente uma liderança desse povo. Isso também os poderia livrar do único espaço de trabalho, que é o trabalho semiescravo nas usinas. Já foram 15 mil indígenas trabalhando na cana. Com o rápido processo de mecanização esse número já diminui para aproximadamente 12 mil, estando previsto um processo de total mecanização do setor sucroalcooleiro para os próximos anos. Isso gerará outro impacto forte sobre muitas comunidades.

Uma das situações mais graves aconteceu recentemente na comunidade Ypo’y, município de Paranhos. Depois de terem dois de seus professores assassinados na primeira retomada, retornaram em 18 de agosto à mesma terra tradicional. Foram cercados imediatamente por jagunços, tendo sido fechadas as estradas, com eles buscando expulsar os índios pela fome. Após gritos e campanhas nacionais e internacionais, a situação ainda persiste de cerco e cerceamento de deslocamento de seus membros. Poderíamos ainda citar várias e importantes lutas na área de saúde, educação, onde conseguiram algumas conquistas e avanços, mas também existem ainda muitas deficiências e lacunas.

IHU On-Line – Recuperando aspectos discutidos em outra entrevista à IHU On-Line, os kaiowá guarani continuam sendo a “pedra no sapato” do agronegócio do MS? Por quê?

Egon Heck – Continuam sendo uma “pedra no sapado” do agronegócio porque não se resolve a questão das terras, fundamentalmente. Isso tem gerado uma certa intranquilidade nos investimentos novos e insegurança nos produtores cujas terras incidem sobre o território tradicional desses povos. Além disso, a mentalidade produtivista e desenvolvimentista, baseado no conceito da terra como simples mercadoria e objeto de produção, é questionada pelo modo de vida, relação com a terra e produção dos kaiowá guarani. Estes não querem suas terras de volta para produzir para o sistema, mas para nela reconstruírem seu modo de viver, seu “teko”. Isso é uma enorme pedra no sapato do modo de produção capitalista vigente.

IHU On-Line – O que já avançou em relação à garantia dos direitos desse povo?

Egon Heck – É possível constatar pequenos avanços no processo de reconhecimento de algumas terras, cujos processos de regularização têm dado alguns passos com a publicação de portarias declaratórias, como os recentes casos das Terras Indígenas de Buriti (terena)  e Sombrerito  (kaiowá guarani). Além das contestações na justiça que sofrem essas ações do executivo, existe uma morosidade em concluir o processo de todas as identificações das terras indígenas, previstas no Termo de Ajustamento de Conduta – TAC e tidas como prioridade no cronograma da Funai. O Ministério Público tem entrado na justiça cobrando os prazos estabelecidos no TAC. Os avanços mais significativos se verificam no processo de educação escolar, com um movimento de professores articulado e buscando cobrar, cada vez mais, escolas indígenas diferenciadas e de qualidade, conforme garante a Constituição. A crescente participação dos professores nos processos de luta pelos direitos das comunidades, especialmente da terra, é um desses avanços.

IHU On-Line – Como avalia a política indigenista do governo de esquerda brasileiro?

Egon Heck – A partir da realidade do Mato Grosso do Sul, pode-se dizer que foi uma política de enrolação, com muita conversa, prioridade, mas pouco avanço efetivo na garantia dos direitos, como à terra.  Na acomodação dos interesses dominantes, os direitos indígenas foram para baixo do tapete. O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC implicou na gradual remoção dos obstáculos, dentre os quais muitas populações indígenas. As grandes obras avançaram na esteira de um modelo de desenvolvimento que, na prática, nega a existência da pluralidade, com mais de 230 povos indígenas no país. O paradoxo maior talvez tenha sido fazer avançar uma política com discurso de esquerda abrindo o campo para ações de direita. A habilidade no diálogo não significou decisões políticas de avanço na construção de novas relações, de respeito e afirmações das autonomias indígenas em seus territórios. Na prática houve alguns tímidos avanços e vitórias do movimento indígena, como a homologação da Raposa Serra do Sol, a criação da Comissão Nacional de Política Indigenistas (a expectativa era a criação do Conselho), a realização de Conferências, Seminários, Consultas, a reestruturação da Funai, em curso.

IHU On-Line – O que tende a mudar para os índios com o resultado das eleições presidenciais?

Egon Heck – Nas atuais tendências, seja quem for o vitorioso, o quadro para os povos indígenas não é nada animador. O crescimento a qualquer preço será o cenário mais provável. Neste jogo os índios, como moeda de troca, sofrerão graves impactos, especialmente no que se refere a seus territórios e recursos naturais. O tempo de acomodação dos interesses vitoriosos sempre tem significado um angustioso e violento tempo de espera (quarentena) para os povos indígenas. Provavelmente, não será diferente agora.

IHU On-Line – Como a luta dos mapuches, do Chile, se irmana às lutas dos guarani e de outros povos indígenas brasileiros?

Egon Heck – Existe uma crescente consciência de solidariedade entre os povos indígenas no continente bem como dos setores aliados a esta causa. A decisiva luta dos mapuches  por seus direitos, especialmente a recuperação de seus territórios e contra as leis vergonhosas da opressão e criminalização, como a “lei antiterrorista”, traz muito presente a prática colonial de mais de 500 anos, no afã de submeter e erradicar a resistência e direitos indígenas na colônia e depois nos estados nacionais. Nesse aspecto a luta do povo guarani, grande povo, presente em cinco países da América do Sul, também é um permanente questionamento às políticas de negação dos direitos aos povos nativos. É uma luta contra a criminalização, uma luta pelos direitos ao reconhecimento da pluralidade das nações, do reconhecimento das diferenças, de novas e necessárias organizações do poder, baseados nos compreensão de bem-viver dos povos indígenas. Esse processo de descolonização encontra resistência nas elites que sempre se locupletaram com os saques e privilégios. A luta dos mapuche, no Chile, é hoje uma das expressões fortes e duras da luta por direitos e mudanças estruturais profundas em Abya Yala, América, ameríndia.

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