‘A Última Cartada’, por Andressa Caldas e Eduardo Fernandes

STJ

O assassinato do advogado e defensor de direitos humanos Manoel Bezerra de Mattos, em janeiro de 2009, é o ápice, a gota d’água em um histórico de denúncias sobre a atuação de redes criminosas e grupos de extermínio na divisa entre Pernambuco e Paraíba. Desde 1995 – quando o então deputado estadual Luiz Couto ouviu os primeiros relatos nos municípios de Pedras de Fogo (PB) e Itambé (PE) –, pouca coisa foi alterada na região que ficou conhecida como Fronteira do Medo. São pelo menos 15 anos sem que o Estado tenha tomado medidas efetivas para o desmantelamento destes grupos – que têm ampla participação de agentes públicos.

Nesta quarta-feira (27), será retomado o julgamento do processo de federalização do assassinato de Manoel Mattos e de outros crimes atribuídos aos grupos de extermínio. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem nas mãos aquela que pode ser a última cartada do Poder Público para enfrentar de maneira definitiva a livre atuação do crime organizado na divisa entre PE e PB. Em caso de decisão favorável dos ministros, o trabalho investigativo e o processamento judicial destes casos saem da responsabilidade das autoridades locais e passam para a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Justiça Federal.

Juristas, intelectuais e entidades de direitos humanos vêem no julgamento desta semana um momento histórico que pode significar a consolidação em nosso ordenamento jurídico do Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), instrumento que possibilita a federalização. Garantido na Constituição Federal desde 2004, mas até hoje nunca utilizado, o IDC prevê a federalização para casos de grave violação de direitos humanos em que haja o risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil – pré-requisitos presentes no caso em análise.

Ação integrada de investigação

Os últimos relatos de execução sumária, os recentes atentados a testemunhas e as ameaças à mãe de Manoel Mattos, dona Nair Ávila, mostram que os grupos de extermínio continuam ativos e fortes, apesar do acompanhamento de organizações da sociedade civil, das reiteradas manifestações da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da ONU, e, principalmente, do trabalho de documentação e denúncia do próprio Manoel Mattos e de pessoas como a Promotora Rosemary Souto Maior e o deputado federal Luiz Couto (PB). Para estancar este círculo de violência e medo, é urgente que se faça uma investigação que não analise isoladamente cada crime, mas que empreenda uma ação integrada capaz de desarticular a engenharia dos grupos de extermínio, não se limitando à prisão dos executores, mas chegando a seus líderes e financiadores.

Ao envolver os órgãos federais, o IDC é um mecanismo que possibilita este olhar amplo e coordenado. No entanto, para sua plena aceitação, ainda se faz necessário desconstruir algumas críticas que surgiram de forma abstrata entre estudiosos, antes mesmo que o Incidente fosse colocado em prática – e que agora, diante de um caso concreto, se mostram infundadas.

A primeira delas se refere a eventual violação ou quebra do Pacto Federativo. O imediato reconhecimento dos governos estaduais da necessidade de federalização contradiz frontalmente esta tese. Neste caso, não apenas os governadores de Pernambuco e Paraíba se manifestaram publicamente, mas também o Presidente da República, o Ministro da Justiça e representantes de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Secretaria de Direitos Humanos.

Em setembro, uma Carta Pública de Apoio à Federalização foi entregue ao STJ. Entre juristas e intelectuais reconhecidos, como Flávia Piovesan, Dalmo de Abreu Dallari e Frei Betto, dois nomes se destacavam como os mais significativos: Marília Falcone Gomes Locio e Rosemary Souto Maior de Almeida, respectivamente Juíza de Direito e Promotora de Justiça da Comarca de Itambé. É certo que o reconhecimento e o apoio das autoridades locais não podem se tornar pré-requisitos para a instauração do IDC, mas é evidente também que este cenário comprova que o processo de federalização não é antagônico ao Pacto Federativo. Ao contrário, o garante.

Federalização não é medida punitiva

Outra crítica inicial apontava – de novo, de forma abstrata – o Incidente de Deslocamento de Competência como uma medida negativa, de controle e punição, que retiraria de forma arbitrária a competência das autoridades locais. Seja por inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado, o IDC não pode ser observado apenas por este prisma. Se por um lado, certamente há falta de independência de alguns agentes públicos para exercerem suas funções jurisdicionais, por outro, autoridades competentes se colocam em situação de extrema vulnerabilidade ao empreender esforços de investigação e processamento judicial. Neste sentido, o IDC é uma medida reparadora, que corrige incapacidades concretas do Estado, mas é também, principalmente, uma medida de caráter protetivo.

Mais uma vez, é a análise do caso concreto que nos permite extrair conclusões mais precisas. São muitos os relatos de autoridades perseguidas, intimidadas e mortas na divisa entre PE e PB. Houve casos de agentes policiais transferidos arbitrariamente e de parlamentares ameaçados. No momento em que protege a atuação, o trabalho e, principalmente, a vida e a integridade física dos agentes públicos locais, o IDC não lhes desautoriza, mas lhes fortalece. E garante, por exemplo, que a promotora Rosemary, que em dez anos corajosamente levantou mais de 200 casos de execução sumária apenas na comarca de Itambé, saia de lá somente por sua vontade, e não pela vitória e coação do crime organizado.

Com pelo menos 15 anos de atraso, o Estado brasileiro pode finalmente dar o primeiro passo para a responsabilização dos reais articuladores da morte das centenas de pessoas vítimas dos grupos de extermínio na Fronteira do Medo. Com um olho na nossa Constituição Federal e outro na realidade social do nosso país, o Superior Tribunal de Justiça tem hoje nas mãos a possibilidade real, concreta e efetiva de proteger e preservar a vida e a integridade física de outras centenas de anônimos que hoje correm risco de vida naquela região, apenas porque um grupo de pessoas (dotadas de poder político e econômico, de munição letal e da certeza que não serão responsabilizadas) decidiu que eles devem morrer. São meninos de rua, ex-presidiários, homossexuais, trabalhadores rurais, pessoas comuns que não foram citadas em manchetes de jornais ou debates eleitorais. Cidadãos brasileiros “invisíveis”, sem nomes.

Foi na defesa do direito à vida destas pessoas que Manoel dedicou sua vida profissional e pessoal. É na defesa destas pessoas, do Estado Democrático de Direito, que Rosemary Souto Maior tem dedicado e colocado em risco sua vida.

É na defesa da vida destas pessoas, do Estado Democrático de Direito e do fortalecimento das Instituições Judiciárias locais que o STJ é chamado hoje a se manifestar e a decidir.

Andressa Caldas é mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR, mestre em Política Latino-Americana pela University of London e diretora executiva da Justiça Global

Eduardo Fernandes é mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB, membro da Comissão de Direitos Humanos da UFPB e fundador da Dignitatis Assessoria Técnica Popular

http://global.org.br/programas/a-ultima-cartada/

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