Alice Pires, Jornal Vias de Fato
Nessa segunda-feira (18), lideranças indígenas dos povos Gamela e Krenyê, além de agentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), estiveram no Ministério Público Federal do Maranhão, requerendo adoção, em caráter de urgência, de medidas que garantam os direitos destes povos.
De acordo com os indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), não vem cumprindo os acordos estabelecidos, a exemplo da decisão judicial expedida em 2013 pelo Juiz Federal José Carlos Madeira, que obriga a Funai a comprar uma terra para o povo Krenyê, construir um poço artesiano e fornecer cestas básicas. Posteriormente, o Juiz também impôs à Funai “Constituir um Grupo Técnico para destinação de meios necessários para assistência de alimentação, água potável, saúde e moradia ao grupo, para que possam aguardar com segurança a conclusão dos trabalhos de demarcação”. Até o momento, foi criado o GT, o relatório circunstanciado foi produzido, entregue à Funai em Brasília, mas não foi publicado. Poucas cestas foram entregues, estas quando chegam, duram em média 15 dias e depois o povo se vira como pode e, a situação do fornecimento de água não foi regularizada. Os indígenas têm que dar um jeito de comprar.
Em audiência realizada na 5ª Vara de Seção Judiciária do Maranhão, em abril de 2014, a Funai alegou que era complicado construir o poço por não ser competência dela e pelo fato da Chácara Krenyê não ser terra indígena. O Juiz deliberou que: “Fica reconhecida a Chácara Krenyê até a instalação da Reserva Indígena Krenyê, como área legalmente indígena de sorte a merecer integral proteção por parte da Funai e dos demais órgãos de proteção aos índios.” Mas, segundo os indígenas, o que tem acontecido, é que eles estão abandonados à própria sorte, vivendo em situações precárias, sem condições mínimas de sobrevivência. Denunciam ainda que o Coordenador Regional da Funai, de nome Daniel Cunha, sequer os atende. “Ele nunca atende se a gente telefona, e se vamos pessoalmente pra conversar, nunca encontramos ele, ele já conhece os nossos números, para atender só se a gente ligar de um número diferente”. Diz revoltado o Krenyê Raimundo Nonato.
Apesar disso, os órgãos competentes continuam descumprindo a decisão judicial e não atendem os Krenyê. Diante da inércia da Funai, o próprio povo arriscou sua vida para procurar a terra e por pouco não foi enganado. Na audiência ocorrida no dia 29 de agosto de 2014, a Funai se comprometeu em publicar um Edital para compra de terra dos Krenyê, o que não foi feito até o momento. Os indígenas estiveram em Brasília, por ocasião do Acampamento Terra Livre, ocorrido em abril deste ano e ouviram do Coordenador do Departamento de Proteção Territorial (DPT) da Funai que não há recurso garantido no orçamento para a referida compra. Os indígenas alegam que funcionários do órgão diziam a eles que era mais rápido comprar a terra, do que lutar pelo território tradicional. Depois de tanto esperar, entendem que estão sendo enganados.
A situação do abastecimento de água para o povo nunca foi regularizada e nem o poço artesiano foi construído. Contudo, no parecer técnico da Advocacia Geral da União (AGU), do dia 6/8/2014, em resposta à AGU, o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Maranhão respondeu que o abastecimento de água havia sido regularizado. Nesse mesmo parecer a Funai informou dispor de R$ 20 mil e se comprometeu em passar este recurso para o Dsei, que tinha a obrigação legal de construir o poço. No entanto, os indígenas não têm informação se esse repasse aconteceu de fato, o que sabem é que o poço artesiano nunca foi construído. “Se não fosse o Cimi e a Pastoral Indigenista de Grajaú, não sei o que seria de nós, estamos morrendo de fome e sede, vivemos em apenas 1 hectare de terra, não dá para tirar o sustento do chão. O que plantamos e colhemos é muito pouco, precisamos de mais espaço.” Lamenta Genecy Timbira.
Outra luta travada pelos Krenyê é para conseguir uma vaga no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi). Vaga essa, que é um direito enquanto povo específico, garantido pela Constituição Federal e pela Legislação da Política de Saúde Indígena. Mas, até agora, este direito também lhes foi negado. O Dsei/MA é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o controle social se dá por meio do Condisi, que garante, ao menos no papel, a participação dos indígenas na elaboração da política de saúde indígena no âmbito do Dsei. Mas o que ocorre na prática é que a relação dos indígenas com esses gestores é muito tensa, permeada por problemas na gestão e aplicação dos recursos.
O povo Indígena Krenyê, originário da Pedra Salgado, hoje município de Vitorino Freire, mora na Chácara Krenyê, Aldeia São Francisco, localizada a 6 km do município maranhense de Barra do Corda, em 1 hectare de terra, comprado com recursos próprios. Durante muitos anos, viviam perambulando pela periferia da cidade, sem nenhuma assistência dos órgãos públicos responsáveis em dar atendimento aos indígenas, sendo vítimas de todo tipo de preconceito e discriminação.
Na reunião dessa segunda–feira (19) com o procurador Alexandre Soares, ficou definido que ele vai enfatizar a necessidade de marcar audiência com o juiz Carlos Madeira para reforçar a cobrança aos órgãos que têm a obrigação legal de prestar assistência aos povos indígenas e não o fazem.
Povo Gamela
Problemas semelhantes enfrentam o povo Gamela no município de Viana, Maranhão, que há séculos sofre um processo de negação pelo Estado brasileiro, o que permitiu a invasão e grilagem de seu território. Segundo lideranças do povo Gamela, por volta de 1968 foi efetuada uma fraude cartorial que transferiu a terra como herança a particulares, possibilitando a venda de parcelas do território com registros cartoriais fraudulentos.
Durante décadas, eles resistem contra a apropriação privada do seu território e contra a negação da identidade étnica por parte do Estado brasileiro. Para enfrentar o extermínio, foi preciso silenciar por muitos anos, mas em 2013, o povo insurgiu-se na luta pelo reconhecimento de sua identidade étnica e em 2 de agosto de 2014, realizou a Assembleia de Autodeclaração. A Ata dessa Assembleia foi protocolada junto à Funai em Brasília e na coordenação Regional em Imperatriz. Mas, até agora, o órgão não se manifestou quanto ao registro do povo Gamela no Cadastro de Povos Indígenas do Brasil.
Em audiência realizada em 2014 com a Coordenação Técnica local da Funai em São Luís, a coordenadora prometeu que até o final do ano faria uma visita técnica ao território. A visita foi agendada para os dias 26 a 30 de dezembro. O Povo estranhou a data, mas concordou. No dia 25, Natal, a visita foi cancelada. Naquela ocasião e em outros momentos, a Funai alega que não dispõe de carro para o deslocamento da equipe de técnicos. Enquanto isso, os indígenas são privados da assistência específica e diferenciada de órgãos como Sesai, Secretaria de Estado de Educação do Maranhão (Seduc) e Previdência Social, como determina a Constituição Federal. O mais grave é que enquanto as comunidades esperam a boa vontade da Funai, o povo Gamela tem seu território invadido, os babaçuais e guarimanzais são destruídos, os caminhos são interrompidos com cercas elétricas por grileiros e as suas lideranças são ameaçadas.
“Como se não bastasse a privação dos nossos direitos, a Prefeitura resolveu construir um lixão dentro do território e pretende construir um matadouro. Tudo isso porque a Funai, que deveria nos proteger, não resolve nosso problema, usando sempre a desculpa esfarrapada que não tem carro para vir até nós”, denuncia Cal Gamela.
É vergonhoso como o Estado brasileiro vem tratando os povos indígenas, em especial este povo. Primeiro, pela negação da existência e resistência do povo. Segundo, pela ausência de resposta a uma exigência legítima. “Esse processo de violência sofrido pelo povo Gamela é o mesmo processo que sofrem todos os povos tradicionais, em especial no Maranhão, com constantes ameaças de morte, conflitos fundiários e a impunidade reinante”. Analisa Sandra Araújo, assessora jurídica e agente da Comissão Pastoral da Terra.
Diante da grave situação e do descaso por parte da Funai, o próprio Povo, o Cimi e a CPT estão cobrando do MPF, em caráter de urgência as seguintes medidas:
- Notificação da Funai para a realização imediata do registro do povo Gamela no Cadastro dos Povos Indígenas do Brasil;
- Criação do Grupo de Trabalho para identificação e delimitação do Território Gamela;
- Notificação dos demais órgãos públicos responsáveis pela efetivação das políticas públicas específicas e diferenciadas;
- Notificação dos órgãos fundiários, estadual (Instituto de Colonização e Terras do Maranhão – Iterma), e federal (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra) de processo de identificação e delimitação do território do povo Gamela;
- Agendamento de audiência do povo Gamela com Funai, Sesai/Dsei/Condisi e Seduc/MA na procuradoria.
Para o Conselho Indigenista Missionário, essa negação dos direitos aos povos Krenyê e Gamela é absurda e tendenciosa, uma vez que nem a decisão judicial é cumprida. E se nada for feito, a situação pode perder o controle. “Existe uma má vontade dos órgãos competentes em atender os povos indígenas, sobretudo na questão territorial. Por outro lado, atendem sem medida os ruralistas e fazem vista grossa para os invasores de terra indígena. Se a Funai e o Dsei não tomarem uma atitude de imediato, os indígenas prometem tomar outras providências, pois estão cansados de tanta conversa e já estão perdendo a paciência”, conclui Gilderlan Rodrigues, do Cimi.
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Foto de Vias de Fato.