Marcelo Freitas e Ricardo Borba/CB/D.A Press
O sociólogo português Boaventura de Souza Santos acompanha de perto a evolução do cenário brasileiro. Ele começou a fazer pesquisas sobre o Brasil nos anos 1970, durante a ditadura militar. Conhecido por suas posições de esquerda, Boaventura considera que, ao longo desse tempo, o país passou por uma evolução das mais significativas, especialmente naquilo que é a materialização de uma de suas principais ideias: a de que é preciso ampliar a democracia formal, com a implantação de outros mecanismos de representação política, não formais, que constituem o que ele define como a teoria da “democracia sem fim”. Boaventura Santos considera a experiência brasileira do Orçamento Participativo um desses possíveis mecanismos e não esconde seu sonho de que possa vir a ser implantado, no Brasil, a nível federal.
Embora faça uma avaliação extremamente positiva dos oito anos do governo Lula, ele é cético em relação à continuidade da “onda de esquerda” na América Latina. Boaventura Santos enxerga na deposição do presidente de Honduras, Manuel Zelaya, e na tentativa de golpe contra o presidente do Equador, Rafael Correa, sinais de que as forças conservadoras estão à espreita. No Brasil, isso teria se dado, segundo ele, por meio das críticas dos evangélicos à candidata do PT, Dilma Rousseff, durante a campanha eleitoral.
Boaventura Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal; e da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos. É autor, entre outros livros, de Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade e A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, ambos publicados no Brasil. Abaixo, a entrevista:
O senhor acompanha a realidade brasileira há pelo menos quatro décadas. Ao longo desse tempo, o que mudou no Brasil que mais lhe chamou a atenção, tanto positiva quanto negativamente?
Comecei a fazer pesquisas no Brasil em 1970, durante um dos períodos mais violentos e repressivos da ditadura militar. Aprendi, então, a respeitar todos aqueles que, por diversas formas, se opunham à ditadura. A minha admiração por Dilma Rousseff vem daí, porque só em contextos desse tipo se pode avaliar verdadeiramente a qualidade moral de um dirigente político: quando defender os ideais democráticos e de justiça social significa pôr a vida em risco. Durante as décadas de 1980 e 1990, o Brasil continuou a ser o que sempre fora: o país mais desigual do mundo e, aparentemente, condenado a ser, para sempre, um país do futuro. Com a eleição de Lula, tudo mudou. O futuro começou a ser parte do presente para as classes populares do Brasil. O mesmo se passou no plano internacional: uma sábia política internacional transformou o Brasil num dos países mais influentes do mundo. Ao longo desses 40 anos, o que mais me impressionou negativamente foi a persistência da corrupção. Daí a importância da Lei Ficha Limpa, sobretudo por ser um ato de maturidade política do povo brasileiro que, nos últimos anos, aprendeu as vantagens de a democracia ser levada a sério, com participação popular ativa e sem corrupção.
Qual a avaliação que faz do governo Lula? Em que pontos houve avanços, em quais deixou a desejar?
Uma avaliação, sem dúvida, muito positiva, sobretudo por Lula ter conseguido diminuir significativamente a distância entre governantes e governados, uma distância que mina a credibilidade da democracia. Houve avanços muito importantes no plano social e aí estão as estatísticas da redução da pobreza a demonstrá-lo. Mas, o governo de Lula foi muito para além disso: incentivou a democracia ativa dos cidadãos, com os Orçamentos Participativos, conselhos populares setoriais, conferências nacionais com a sociedade civil organizada e maior pluralismo político; direitos para quem trabalha e novos direitos para os pobres; reconstrução das funções públicas do Estado, inclusive na área ecológica, e combate inédito à corrupção; novos direitos para negros e mulheres; retomada da soberania nacional e novo diálogo internacional, pela paz e contra a pobreza e pelo acordo de sustentabilidade internacional. O governo de Lula podia ainda ter ido mais longe na promoção de um modelo econômico ambientalmente sustentável. A minha esperança é que a aliança natural e desejada entre Dilma e a minha amiga Marina Silva venha a dar um novo impulso a esta área no governo da Presidente Dilma.
O país tem apresentando índices de crescimento econômico elevados e, ao mesmo tempo, avanços no sentido da distribuição de renda. O país está no caminho correto? Que papel estaria reservado ao Brasil no cenário internacional nos próximos anos?
Acrescentaria que o que se ganhou nos últimos oito anos está longe de ser consolidado. Por exemplo: a reputação internacional do Brasil como um ator internacional com pensamento próprio pode ser rapidamente convertida na reputação muito mais duradoura de satélite dos EUA, como foi o caso, sobretudo no tempo de Fernando Henrique Cardoso. Se tal suceder, toda a capacidade de intermediação internacional e regional cairá por terra. Será uma perda irreparável para todo o continente.
O senhor tem defendido uma mudança no conceito de democracia, com a inclusão de outras formas de representação, como a democracia direta. O Brasil tem algumas experiências nesse sentido, como a do Orçamento Participativo, por exemplo. Na opinião do senhor, o Brasil está conseguindo avançar no sentido de conciliar a democracia formal com a democracia direta?
É um caminho difícil, sobretudo devido aos problemas de escala, que, sem serem insuperáveis, exigem vontade política para serem superados. Mas, há sinais encorajadores. O governador Tarso Genro, com uma vitória retumbante no seu currículo político, vai implementar o orçamento participativo a nível estadual. Terá um importante efeito de demonstração para o resto do país. Por outro lado, estou certo que uma das intervenções temáticas na construção de uma plataforma progressista para o país vai, certamente, incluir o reforço da democracia participativa a nível federal. Um dia, o Brasil terá um orçamento participativo a nível da União e será o primeiro país do mundo a fazê-lo.
O senhor tem acompanhado o debate em torno da Lei Ficha Limpa? Trata-se de uma contribuição importante para o aprimoramento do sistema democrático ou os avanços que propicia não são tão significativos no contexto geral do país?
É um avanço muito importante, sobretudo por simbolizar a vontade de milhões de brasileiros em levar a democracia a sério, para que ela deixe de ser um campo de protegidos das oligarquias, como sempre foi. Mas, vai ser necessária vontade política para aplicá-la de maneira que altere o panorama da classe política, pela exclusão da parte dela – bem significativa – que é corrupta.
Nos últimos anos, ocorreu na América Latina a ascensão de governos de esquerda, como Lula, no Brasil; Chavez, na Venezuela; e Evo Morales, na Bolívia. Por outro lado, no Chile, com Sebastián Piñera; e na Colômbia, com Juan Manuel Santos, predominou o voto mais à direita. Para onde caminha a América Latina?
Tenho defendido que a década em que estamos a entrar vai ser muito menos brilhante para as forças progressistas do que foi a primeira década do milênio. Uma conjunção de forças, entre as quais se podem mencionar, por um lado, o grande movimento do Fórum Social Mundial e, por outro, o fato de o imperialismo norte-americano ter estado “distraído” no Oriente Médio, ocupado na tarefa de controlar 10% das reservas mundiais de petróleo, o que conseguiu, com pleno êxito, à custa da destruição de um país e de mais de um milhão de mortos. Nesta década que entra, o imperialismo está de volta: o golpe das Honduras, as bases militares da Colômbia, as ações desestabilizadoras no Equador e na Bolívia. Não me surpreenderia se o imperialismo, por meio de um dos seus braços hoje mais ativos, as religiões evangélicas, não estivesse por trás de algumas das agressões da direita à então candidata Dilma. A vitória da esquerda no Brasil é um sinal aos outros países progressistas de que há condições para se continuar a aprofundar as reformas democráticas, e dá, também, sinal ao imperialismo americano de que o continente deixou de ser definitivamente o quintal do império.
ESTADO DE MINAS, 4-12-10 – Caderno Pensar
Enviado por José Carlos.