Por Diosmar Filho[1], no Correio Nagô
Se analisarmos o Brasil pela totalidade da população e compará-lo com outros Estados Nacionais, somos contagiados pelos avanços em direitos ocorridos na chegada dos anos dois mil. Porém, a sociedade brasileira ainda consegue nesse século conviver com as estruturas mais perversas do processo social e histórico da formação do Estado.
Existe aqui uma sociedade amante dos privilégios, da submissão, do autoritarismo e tudo mais possível para a manutenção do patrimonialismo hereditário.
O que faz desse diálogo uma Encruzilhada ao Humanismo[2], pautado por textos que abordaram osconsensos e concessões para a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2025) da ONU[3] e a efetivação do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2015 a 2025. Ambos refletem as condições postas pelo Estado aos Movimentos Negro na realização de concessões e omissão do consenso, portanto, ficam ignorados os acordos realizados com os movimentos em escala nacional, estadual e municipal.
O ano de 2015 dá sinais de encerramento e os consensos para a Agenda Afirmativa em atenção à totalidade da população brasileira se encontram literalmente ameaçados. Ou seja, não é centralidade no Estado e na sociedade mudanças de formas que alterem estruturas e substitua os direitos das minorias pelo alcance da maioria. Se o Brasil é um Estado demograficamente negro, cabe a este prover o desenvolvimento integral dos 52% de mulheres e homens negros, conforme determina a Constituição Federal de 1988.
Em atenção à maioria, o PNE é a principal agenda nacional, que estabelece objetivos e metas para a República no prazo de dez anos. Um desafio da sociedade – uma possibilidade de efetivação da agenda progressista e se sonhar com algo ainda não alcançado em 500 anos.
A efetivação do plano nacional comunga com a agenda da Década dos Afrodescendentes, em relação ao seu tempo de dez anos para a execução, e o desafio será efetivar ações no Estado marcado por índices elevados de desenvolvimento regional desigual. Os compromissos impactaram em escalas desiguais com percepções diferentes e as unidades federativas são responsáveis pela consagração ou não desse desafio nacional. Estamos falando de 26 Estados, 01 Distrito Federal e 5.570 municípios[4], que marcam a complexidade das diferenças em territórios e lugares no alcance da maioria populacional negra.
Segundo Milton Santos (2012) termina sendo difícil alcançar a noção de totalidade sem rompimento com os princípios da universalidade, mantenedor dos conceitos escravos da metodologia dogmática.
A noção de totalidade, tomada em si, sempre foi possível de apresentar-se como abstrata e confusa, a menos que a noção concomitante de sua divisão estivesse também presente. A perversão da ideia de totalidade, se não adaptarmos nossos aparelhos analítico. (SANTOS, 2012, p. 212-213)[5]
Importa no processo as posições adotadas pelos governos na análise dos compromissos com a população negra nesta década. Aí se dar a encruzilhada humana para o século XXI. O Brasil tem a oportunidade de realizar ações públicas e privadas que no mínimo reparem os danos morais e éticos do maior crime humanitário dos últimos mil anos: o tráfico e a escravidão dos povos africanos. Aqui aportaram só oficialmente quatro milhões de povos africanos traficados e colocados em regime de escravidão.
E o Estado brasileiro precisa honrar os compromissos com a Década dos Afrodescendentes e tornar o PNE um instrumento de sua realização, como bem explica a socióloga e militante do Movimento Negro e de Mulheres Negras, a ex-ministra Luiza Bairros.
Um dos maiores desafios que se colocam para a inclusão social no Brasil, hoje, tem a ver com a capacidade de as políticas públicas levarem em conta a diversidade da sociedade brasileira. Indicadores sociais calculados por instituições governamentais e acadêmicos de pesquisas demostram de forma inquestionável o que o momento negro vem denunciando desde o final dos anos 70: mulheres e homens negros morrem mais e mais cedo; têm diferenciais de escolaridade em relação aos brancos – que permanecem inalterados, apesar da ampliação da escolarização em todos os grupos sociais. (BAIRROS, 2006, p. 139)[6]
A construção dos Movimentos Negros e de Mulheres Negras possibilitou condições para que em 2001, o Brasil assumisse compromisso com a Declaração de Durban[7]. Passados dois anos veio o Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, base legal para o Programa Brasil Quilombola. Uma estratégia interministerial e transversal de política pública em escala nacional para a população negra quilombola, com a finalidade de reconhecer o sujeito, as comunidades e realizar a titulação dos territórios.
O Decreto 4.887/2003 revela a espacialização da população negra quilombola no território nacional. Segundo Clóvis Moura[8], por meio da Quilombagem os sujeitos fazem valer sua condição política étnica-racial e o Quilombo, em sua materialidade, assume nesse século seu caráter geopolítico no acesso ao Estado e ao seu maior patrimônio, à terra.
A implementação do PNE e da Década ocorrem em escalas e espaços diferentes e é fundamental conhecer o que fazem os governos. Não pode ser ignorada as competências dos Estados, conforme as Constituições esses têm responsabilidades para e com a população negra quilombola. Seguindo o Art. 68 dos Atos das Disposições Transitórias Constituições (ADTC) na Constituição Federal, o Estado da Bahia sancionou o Art. 51 dos Atos das Disposições Constitucionais (ADC) na Constituição Estadual de 1989.
Pelo Art. 51 (ADC) cabe ao Estado realizar a titulação de todas as comunidades que se reconheçam como quilombola em até um ano, a partir da promulgação da Constituição em terras devolutas estadual.
O texto constitucional é o sonho dos Movimentos Negro e de Mulheres Negras, mas a ação pública dar-se pelo parâmetro estruturado no racismo, uma ação política determinista que vigora no cotidiano institucional público e privado do Estado brasileiro.
Tratando o racismo como política estrutural se entende a espera de vinte anos para se olhar os princípios Constitucionais de 1989. O governo, por meio do Decreto Estadual 11.850 de 23 de novembro de 2009, institucionalizou a Política Estadual para Comunidades Remanescentes de Quilombo. E o Decreto 11.850/2009 não passou de um grande fracasso institucional, isso porque seu principal objetivo foi a gestão intersetorial das políticas, programas e projetos, mas esses não contaram com a ética dos gestores públicos do governo progressista do ex-governador Jacques Wagner.
Os gestores das políticas públicas de regularização fundiária, educação, saúde, saneamento, habitação, abastecimento e inclusão sócio-produtiva, pouco se sentiram atribuídos a realizar compromissos acordados em trabalhos intersetorial sob a responsabilidade da Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI).
E o reflexo é notório, só se avalia política pública aos quilombolas na escala estadual a partir do Decreto Presidencial 4.887/2003 – ação federal. A realidade não é pior devido a ação direta da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ) que atuando junto à União, possibilitou a luta quilombola na Bahia, transformando a unidade federativa com maior número de comunidades com Certidão de Auto-Reconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares (FCP).
Em 2012, haviam 421 comunidades certificadas e só seis territórios com o título da terra. O não acesso à terra é o reflexo da formação do Estado brasileiro e a condição social da população negra é base para qualquer análise sobre o ser quilombola. E é preciso reposicionar o papel do sujeito quilombola, a partir da geopolítica, afastando os conceitos que pede a tutela do Estado e da sociedade, produzidos na academia e apropriados pelos governos (SANTANA FILHO, 2015). Entendendo que:
Os Territórios Quilombola são a constituição da população negra na terra e no território, que se reconhece pela sua própria trajetória social e política, dotados de relações comunitárias específicas e diferenciadas pela ancestralidade que os tornaram resistentes à exclusão social e histórica, moderna e contemporânea” (SANTANA FILHO, 2015, p. 465)[9]
Nesse ano a política de espacialização das comunidades e territórios quilombolas é uma realidade sob ameaça principalmente pelo nível de diálogo dos Movimentos Negros, destacando o Conselho Estadual das Associações Quilombolas da Bahia (CEAQ-Ba) e a CONAQ, com os governos (estadual e federal) que tem imposto a esses as concessões como meio e fim da política pública, desrespeitando integralmente os consensos acordados com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
As concessões produzem realidades como a da Bahia que conta com o maior número de comunidades com Certidão da FCP, são 614, segundo o Sistema de Monitoramento das Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SISPPIR)[10] do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Se proporcionalmente comparados os números da Bahia com os do Maranhão, a contradição e a omissão são explicita.
Em onze anos foram certificadas no Maranhão pela FCP – 477 comunidades quilombolas e titulados 43 territórios pelos poderes estadual e federal, representando 17,6%, em escala nacional. Quanto ao Estado da Bahia, das 614 comunidades certificadas, 20 alcançaram a titulação (estadual e federal), em escala nacional representa 8,2%, conforme o gráfico abaixo.
A situação das comunidades quilombola não mudará sem o novo olhar na demografia da Bahia, segundo o Censo Demográfico 2010[11] são 14.016.934 milhões de habitantes e 76,3 % se autodeclaram negras[12].
Mulheres e homens negros são maioria entre os 3.003.328 milhões de beneficiários no Cadastro Único dos Projetos Sociais do Governo Federal (CadÚnico)[13], ou seja, 21% da população estadual se encontra em situação de pobreza e extrema pobreza segunda a renda per capita das famílias.
No mês de setembro o Programa Bolsa Família (PBF) beneficiou 1.800.580 famílias, cobrindo 108,5% da estimativa de famílias pobres na Bahia. Os benefícios têm valor médio de R$ 165,01 e o valor total transferido pelo governo federal em benefícios às famílias atendidas alcançou R$ 297.106.694,00 milhões, pelo Relatório de Informações Sociais do MDS.
Conforme os dados do bimestre, em junho foram beneficiadas 84,2% das famílias, com crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos, são 1.315.967 estudantes que recebem acompanhamento, que em relação ao público no perfil equivale a 1.563.064 pessoas. Quanto aos jovens entre 16 e 17 anos, o percentual foi de 77,9%, resultando em 291.149 acompanhados de um total de 373.788 pessoas.
O número de famílias quilombolas beneficiarias são 37.764 mil – pensando numa média de cinco pessoas por familiar, somam 188.820 mil quilombolas vivendo no território estadual.
Quanto ao acesso à educação pelas famílias quilombolas, segundo o Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (INEP) [14], em 2013, na Bahia são 474 estabelecimentos de ensino que atendem as crianças, os adolescentes, os jovens e os adultos do fundamental, no médio e superior. E estavam matriculados 67 mil estudantes no ano.
Portanto, a diferença é de conhecimento público e tem necessidades especificas, em 2014, o governo estadual com onze anos de atraso aderiu ao Programa Brasil Quilombola por meio de Cooperação Técnica com a União para o planejamento integrado e sistêmico – fortalecendo a responsabilidade federal, estadual e ações a serem desenvolvidas com os 417 municípios.
A cooperação foi assinada em 08 de agosto, porém, a publicação ocorreu no Diário Oficial da União em 10 de setembro de 2014. Os compromissos dos governos estão organizados em quatros eixos temáticos do PBQ: Acesso à Terra; Infraestrutura e Qualidade de Vida; Desenvolvimento Local e Inclusão Sócio-Produtiva; e Direitos e Cidadania.
No mesmo ano a SEPROMI entregou o Plano de Ação estadual a ser pactuado com as políticas federais, como coordenadora do PBQ-Bahia (2015-2019) – pois, o plano tem como perspectiva alcançar 200 mil famílias quilombolas e prever investimento estadual na ordem de R$ 132.561.944,00 milhões.
O PBQ é uma das maiores estratégias política institucional elaboradas pelo Estado brasileiro, em atenção aos quilombolas, sendo que na Bahia é reforçado pela Lei 13.182 de 06 de junho de 2014 – o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa. Na Lei o principal instrumento é o Fundo Estadual de Combate à Pobreza, que regulamentado no Art. 88 – parágrafo primeiro destina 10% do orçamento anual para as políticas antirracistas, financiando os programas e projetos intersetorial e transversais de desenvolvimento da população negra.
Mas, o mês de novembro chegou e as mobilizações são para as celebrações à população negra no Mês da Consciência Negra, mais um ato público de reconhecimento. Na Bahia se celebra a assinatura da Década Internacional dos Afrodescendentes e não se fala do PNE e do PBQ, que juntos são realidade e compromisso com mudança nas estruturas racistas.
O PNE segue cuidado pela burocracia administrativa, longe do olhar do controle social sobre os princípios, objetivos e metas a serem aprovadas em negociatas políticas, assim, o governo segue com seu Pacto pela Educação descolado da Década que apresenta como compromisso com a população negra.
A Bahia do Brasil Quilombola segue provedora das concessões no desenvolvimento da população negra. Até o momento não se tem notícia de finalização do PBQ pelas atuais gestões estadual e federal, passados um ano de assinado e já alcançando o mesmo tempo de elaborado o plano estadual. Os órgãos de controle e fiscalização – Ministérios Públicos (federal e estadual), não dão a devida atenção aos processos e contribuem com a omissão de governos e governantes.
Por fim, cabe aos Movimentos Negros acompanhar a Marcha das Mulheres – Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, como ação pública e política contemporânea que expressa em forma e estrutura seu repudio às concessões, afirmando o caráter racista e desigual do Estado Nacional. Se as mulheres e homens negros não alcançam o direito mínimo de consenso na agenda pública do Estado, esse está distante da ideia de Nação.
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[1] Geógrafo, professor e pesquisador. Militante dos Movimentos Negro. Membro do Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito (GPHED – UFBA/CNPq). E-mail: [email protected]
[2] http://correionago.com.br/
[3] Organização das Nações Unidas.
[4] Segundo a publicação Pesquisa de Informações Básicas – Perfil dos Municípios Brasileiros 2013. Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), 2014. p. 18.
[5] SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. – 6 ed., 2. reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. 285p.
[6] BAIRROS, Luiza Helena. Indicadores Sociais e Políticas Públicas. In.: 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil = 25 years of the black movement in Brasil / Concepção, organização e fotografia Januário Garcia. – 1 ed. – Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 139-140.
[7] III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do Sul.
[8] MOURA, C. Formas de resistência do negro escravizado e do afrodescendente. In: MUNANGA, K. (org.). O negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição. História do negro no Brasil. Brasília: [s.n.], 2004, p.9-61. v.1.
[9] SANTANA FILHO. Diosmar M. A Territorialidade Quilombola no Território Brasileiro. In.: II Congresso Internacional SETED-ANTE – Seminário “Estado, Território e Desenvolvimento”. O GOVERNO DOS TERRITÓRIOS. Grupo de investigación Análise Territorial (ANTE GI-1871) Universidade de Santigo de Compostela – USC, 2015. p. 463-475.
[10] Disponível em: http://monitoramento.seppir.
[11] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
[12] Conforme a agregação das categorias preta e parda.
[13] Conforme o Relatório de Informações Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), atualizado no mês 09/2015.
[14] Disponível em: http://monitoramento.seppir.
Destaque: Território de Baixão Velho. Foto: Mauricio Reis.