Na maloca, uma câmara na mão, por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Não sei se o Wewito Piyâko ainda se lembra. Já faz tempo, numa aula do curso de formação de professores indígenas no Acre, contei a história do funcionário que no ano 3.000 é transferido compulsoriamente para outra galáxia. “O exílio é de-fi-ni-ti-vo” – lhe advertiram. Desesperado com a viagem que não tinha volta, arruma na mala tudo aquilo que pode matar as saudades do planeta terra: objetos, cheiros, sabores, sons, imagens. No final, por sugestão da autora, a museóloga Blanca Dian, indaguei:

– Se os desterrados fossem vocês, o que levariam na bagagem para não esquecer a maloca?

– Uma câmera e o que ela já registrou – respondeu Wewito de bate-pronto, no meio de tantas outras respostas dadas por seus colegas indígenas. Argumentou que numa câmera cabe todo o mundo ashaninka: gente, bichos, floresta, beleza, canto, poesia, dança, festa, histórias, saberes, reza, toda a água e todos os peixes dos rios Amônia e Juruá, o tracajá cozido no casco e a banana verde ralada, mas cabem ainda as cidades, a humanidade inteira, o céu, as estrelas, o universo. Cabem o riso, os sonhos, a memória.

E o que é o que já coube na câmera do Wewito? Com 22 anos, esse professor e cineasta documentou o cotidiano dos ashaninka em “Shomõtsi” (2001), considerado uma obra-prima por Eduardo Coutinho e “No tempo das chuvas” (2000). O manejo dos recursos naturais está em “A gente luta, mas come fruta” (2006) e o universo das crianças No tempo do verão” (2013). Além disso roteirizou “Floresta Viva“, “Aprendizes do futuro” e “Caminho para a vida” (2004) e participou com outros de “Uma aldeia chamada Apiwtxa”.

Portanto, ideias na cabeça ele já tinha, e muitas, mas quem foi que colocou a câmera em suas mãos? Foi Vincent Carelli, um documentarista franco-brasileiro de 63 anos, criador, em 1986, do projeto Vídeo nas Aldeias(VNA) com sua mulher, a antropóloga Virgínia Valadão (1952-1998), que nos deixou na saudade.

Vídeo nas aldeias

A vida continua. O Video nas Aldeias formou Wewito em três oficinas realizadas nas aldeias do Acre, permitindo que documentasse o universo ashaninka, mas também outros mundos. Com Zezinho Yube, um hunikui da mesma escola de cinema indígena e sua esposa Jarlene, eles viveram mais de um mês na favela do Pereirão, no Rio de Janeiro, filmando o cotidiano de seus moradores que está no documentário “Troca de Olhares” (2009), exibido nas universidades cariocas.

Índios de diversos povos participaram das oficinas, cada uma com duração intensiva de um mês. A formação deles é dividida em quatro etapas: roteiro, captação de imagens, avaliação das imagens e edição. Depois, cada aluno cria um projeto de realização, que é acompanhado pelo núcleo de produção do VNA, em cuja sede situada em Olinda (PE) se faz a produção, a finalização e a distribuição dos vídeos, que circulam entre os índios e não-índios: escolas, televisão, centros culturais, universidades, museus.

Agora, o criador dessa escola de cinema, Vincent Carelli, que colocou a câmera nas mãos dos cineastas indígenas, será homenageado nesta segunda (16) na abertura do 6º Festival Internacional do Filme Etnográfico do Recife, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Virginia, certamente, há de lá estar.

A homenagem é merecida, porque o VNA, que já recebeu 70 prêmios nacionais e internacionais, permitiu que os índios se apropriassem da câmera filmadora para valorizar seu patrimônio cultural e territorial, ressuscitando formas de vida esquecidas que eram dadas como mortas. O seu acervo tem cerca de 7 mil horas de imagens, com mais de 80 documentários, metade de autoria indígena, com uma estética e uma linguagem próprias, que mostram o ponto de vista deles.

– O olhar externo sobre os índios sempre teve a tendência de focar e pontuar o que é exótico. Já a produção indígena traz um sentimento oposto. Isso humaniza os índios, aproxima as pessoas – disse Vincent em entrevista a Fabio Ferron e Sergio Cohn.

O antropólogo Lévi-Strauss, fascinado com o filme “O amendoim da cutia” dos índios Panará (Mato Grosso), elogiou seus realizadores Paturi e Komoi em carta a Carelli:

“Esse é de longe o melhor filme que já vi sobre índios da América do Sul. Tudo é acertado: a escolha dos temas, das locações, o enquadramento. A qualidade das imagens é notável. Temos a sensação de ver a vida indígena de dentro”.

vincent carelli

É do Carelli

Carelli seria Vicente, se sua mãe não fosse francesa, já que o pai é brasileiro. Nascido em Paris, já era Vançã quando veio para São Paulo aos cinco anos. Fez ciências sociais na USP, trabalhou na Funai, publicou reportagens e fotos em revistas brasileiras, colaborou com o Centro de Documentação (CEDI) e com o Instituto Socioambiental (ISA), fundou com outros antropólogos o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), andou de ponta à ponta por esse Brasil, percorreu aldeias, realizou oficinas, capacitando e equipando as comunidades indígenas com novas tecnologias.

Neste caso, em casa de ferreiro, o espeto é mesmo de ferro. Os métodos de trabalho nas oficinas foram documentados em 16 curtas realizados por Vincent, entre outros “Video nas Aldeias” (1989), que mostra como os Nhambikuara, Gavião, Tikuna e Kaiapó incorporaram o uso do vídeo aos seus projetos culturais e “O Espírito da TV” (1990) sobre os impactos da televisão nos Waiâpi(Amapá). O seu documentário “Corumbiara” (2009), um longa metragem que investiga o massacre ocorrido no sul de Rondônia, é de tirar o fôlego e conquistou o título de “Melhor Filme” no Festival de Cinema de Gramado.

É um privilégio os índios terem o Vincent, o Brasil ter o Vincent. O que ele fez já justifica a passagem de alguém pelo planeta (além de alimentar minhas aulas na universidade). A homenagem a ele é extensiva a toda equipe do VNA que em diferentes momentos contribuiu para formar os índios, entre os quais Virgínia Valadão, Mari Corrêa, Ana Carvalho, Amandin Goisbault, Altair Paixão, Dominique Gallois, Ernesto Carvalho, Fábio Menezes, Gabriel Mascaro, Leonardo Sette, Marcelo Pedro, Tatiana Almeida, Tiago Torres, Sérgio Bloch, Tutu Nunes, Olivia Sabino  e outros.

Em Rio Branco (AC), onde na última quarta-feira (11) participei do Simpósio sobre Línguas e Literaturas Indígenas organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Acre, a homenagem a Carelli foi saudada com alegria. Lá procurei Wewito, mas não o encontrei. Queria saber dele se a homenagem ao Carelli é mesmo do Carelli. Seus colegas confirmaram: é do Carelli.

P.S. – Está lá na página do VNA http://www.videonasaldeias.org.br/2009/ mas não será demais concluir essa homenagem a Carelli com os nomes dos cineastas indígenas que ele formou:  Zezinho Yube Kaxinawá,  Maru Kaxinawá, Tadeu Siã Kaxinawá, Josias Maná Kaxinawá, Vanessa Ayani Kaxinawá, Amunegi Kuikuro, Asusu Kuikuro, Mahajugi Kuikuro, Maricá Kuikuro, Takumã Kuikuro, Araduwá Waimiri, Kabaha Waimiri, Iawysy Waimiri, Sanapyty Atroari, Wamé Atroari, Sawá Waimiri, Ariel Guarani-Mbya, Patricia Keretxu Guarani-Mbya, Germano Benites Guarani-Mbya, Jorge Morinico Guarani-Mbya, Benki Pinhanta Ashaninka, Isaac Pinhanta Ashaninka, Wewito Piyãko Ashaninka, Caimi Waiassé Xavante, Divino Tserewahu Xavante, Jorge Protodi Xavante, Jaime Llullu Manchineri, Kambrinti Suya Kisêdjê, Kamikia Kisedje, Kokoyamaratxi Kisêdjê, Whinti Kisêdjê, Yaiku Kisêdjê, Karané Ikpeng, Kumaré Ikpeng, Natuyu Ikpeng,  Kasiripinâ Waiãpi, Komoi Panará, Paturi Panará.

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