por Inocência Mata, em Buala
Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!
(Última prece de Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas.)
No dia 6 de Dezembro de 1961[1], morria em Maryland, Washington[2], Frantz Fanon. Soubera um ano antes, em Túnis, que sofria de leucemia e que teria menos de um ano de vida. Ainda assim, empenhara-se por acabar a tarefa que tinha entre mãos, Os Condenados da Terra, livro que escreveu entre Abril e Julho de 1961, com um ritmo febril, nas palavras de Homi Bhabha[3], e que acabaria por ver publicado. Morreria dias depois, aos 36 anos, sete meses antes da proclamação da independência da Argélia (5 de Julho de 1962), a pátria adoptiva a que chegara em 1953[4] (e de que seria expulso em 1957), depois de oito longos anos de uma guerra de libertação que ceifou centenas de milhares de vidas humanas.
Frantz Omar Fanon nasceu no dia 20 de Junho de 1925, na ilha da Martinica, numa numerosa família da classe média, cujos oito filhos puderam frequentar o liceu. Embora Fanon fosse muito mais novo que o seu compatriota Aimé Césaire (1913-2008), foi durante o seu tempo de estudante liceal que Fanon conheceu, enquanto aluno, e se tornou amigo do ideólogo da négritude, poeta, dramaturgo e ensaísta, com uma carreira política como deputado à Assembleia Nacional francesa pelo círculo da Martinica e como presidente da Câmara de Fort-de-France (Césaire retirar-se-ia da vida pública em 2001). Fanon admirava o intelectual defensor da valorização das raízes africanas da identidade antilhana, já então figura pública na ilha, sobretudo com a fundação, em 1934, de L’étudiant noir, em Paris, e da revista Tropiques, quando já de regresso à ilha natal.
Apesar da admiração pelo seu antigo professor (chegou a participar na sua campanha eleitoral para deputado à Assembleia Nacional francesa), Fanon viria a discordar do autor de Discurso sobre o Colonialismo (que Fanon confessaria tanto ter apreciado e que escolheu para epígrafe da sua primeira obra, Pele Negra, Máscaras Brancas), anos depois, quando Césaire apoia o estatuto de département d’outre-mer atribuído à Martinica (e a outras ilhas do «Caribe francês» e a Reunião, ilha na costa oriental de África) através de uma lei de que o próprio Césaire seria relator, em 1946; diferenças que se acentuariam quando Césaire faz campanha pelo «sim» da departamentalização no referendo organizado pelo general de Gaulle, em 1958.
Fanon discordaria ainda dos pressupostos da négritude, que consideraria uma «miragem», começando por afirmar, logo no início, que iria tenazmente questionar as duas metafísicas, o branco e o negro, e ver que elas são frequentemente muito destrutivas[5], e criticando aquilo que considerava serem os esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma civilização negra[6]. E mais adiante: «De fato, a negritude aparece como o tempo fraco de uma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco e a tese; a posição da negritude como valor antitético e o momento da negatividade.»[7]
Trata-se de um tema caro a Fanon – não na perspectiva dos intelectuais africanos das colónias britânicas, sintetizada na metáfora da tigritude de Wole Soyinka, expressando a perversidade da négritude. Para Fanon, a négritude era o resultado da lógica de internalização da dominação, porque funcionava como uma «antítese afectiva, senão lógica, do insulto que o homem branco fazia à humanidade»[8]. Mais:
Essa negritude, votada ao desprezo do branco, revelou-se, em certos sectores, a única capaz de levantar proibições e maldições. Uma vez que os intelectuais guineenses deparavam, antes de mais, com o ostracismo global, com o desprezo sincrético do dominador, a sua reacção foi admirarem-se e cantarem-se. À afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultural africana. Em geral, os cantores da negritude irão opor a velha Europa à jovem África, a razão enfadonha à poesia, a lógica opressiva à natureza agitada; por um lado, dureza, cerimónia, protocolo, cepticismo, por outro, ingenuidade, petulância, liberdade e até exuberância. Mas também irresponsabilidade.[9]
Fanon crescera num ambiente tão estimulante intelectual e politicamente (para além da figura de Césaire, a Martinica era, à época, palco de acções culturais e políticas de intelectuais como René Ménil, Georges Gratiant, Thélus Léro ou Léopold Bissol) que, aos 17 anos, já com a Martinica sob jugo alemão, conseguiu chegar à ilha Dominica, então colónia britânica, para se juntar às Forças Aliadas e combater contra a Alemanha nazi, tendo actuado no Norte de África (Marrocos e Argélia) e em França (em várias frentes), numa altura em que o nacionalismo argelino começava a convencer-se da improbabilidade de um diálogo com as autoridades coloniais com vista à independência, apesar da «promessa» de emancipação da metrópole, caso os argelinos participassem na guerra pela libertação da França ocupada pela Alemanha nazi.[10] Esta missão em África, em que o jovem militar presenciou uma outra face do racismo colonial, diferente do tipo de discriminação que vivenciara na sua Martinica natal, viria a marcar de forma absoluta o percurso de vida de Frantz Fanon. Afinal, viveu uma dupla experiência difícil, o colonialismo e o nazismo, e dessa dolorosa aprendizagem dá conta o seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952):
Quando éramos estudantes, discutíamos durante horas inteiras sobre os supostos costumes dos selvagens senegaleses. Havia, em nossos discursos, uma inconsciência pelo menos paradoxal. Mas é que o antilhano não se considera negro; ele se considera antilhano. O preto vive na África. Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco. Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. Que conclusão tirar de tudo isso?[11]
O encontro com a fria realidade da metrópole organizará o tecido da sua experiência de discriminação. Com efeito, depois da guerra, e por causa da sua participação nela, em 1946 Fanon ganha uma bolsa de estudo e parte para França, onde se inscreve no curso de medicina dentária, que viria a trocar pelo de psiquiatria, e que conclui em 1951, em Lyon, com uma tese sobre «Distúrbios mentais e síndromes psiquiátricas em degeneração espino-cerebelar hereditária. O caso de um doente de Friedrich com delírio de possessão»[12] – a segunda, pois a primeira tese fora recusada pela crítica feroz que o jovem médico fazia à psiquiatria positivista, antes propondo uma psicoterapia institucional, envolvendo a comunidade, defendida pelo psiquiatra espanhol François Tosquelles, seu mestre e sob cuja supervisão publicaria os seus primeiros ensaios sobre psiquiatria. O tema revelava já a preocupação de Fanon com os traumas e distúrbios mentais que vira no Norte de África e que motivaria os inúmeros escritos sobre psiquiatria que publicou, entre 1951 e 1959, em revistas de especialidade em França, na Argélia, na Tunísia e em Marrocos.[13]
Por isso, embora seja evidente a anterioridade da expressão «os condenados da terra» que compõe os primeiros versos de A Internacional («Debout, les damnés de la terre/ Debout, les forçats de la faim»), julgo mais verosímil que o título escolhido por Frantz Fanon (e não pelos editores, como nos seus outros livros) venha do sentido de um verso do poema «Sales nègres» do livro Bois d’ébène (1945), de Jacques Roumain (1907-1944), poeta haitiano e fundador do Partido Comunista haitiano que, juntamente com Nicolás Guillén, constitui uma das referências da ideologia estética do negrismo caribenho, uma das matrizes da négritude[14]:
(…)
Et nous voici debout
tous les damnés de la terre
tous les justiciers
marchant à l’assaut de vos casernes
et de vos banques
comme une forêt de torches funèbres
pour en finir
une
fois
pour
toutes
avec ce monde
de nègres
de niggers
de sales nègres.[15]
Por outro lado, para além dessa visível homenagem, não é fácil fugir à forte sugestão bíblica (apesar do assumido agnosticismo de Frantz Fanon) para a qual remete a expressão. Esse eco bíblico acentua a metáfora que traduz o estado de contiguidade da exploração quotidiana, no corpo e no espírito, na pele e na alma, da opressão e da repressão (sobretudo porque a escrita deste livro releva de uma gestação muito vivencial, nos anos 50 do século xx, numa Argélia a ferro e fogo), e os efeitos fracturantes desse estado, resultando não apenas na baixa auto-estima do sujeito negro-africano colonizado devido ao preconceito e à discriminação racial e etnocultural próprios da situação colonial, à sujeição a estruturas políticas e sociais numa situação de confrontação, mas ainda nos traumas causados pela guerra, as «psicoses reactivas» e as «psicotizações secundárias», que estuda no último capítulo.
Os Condenados da Terra é, neste contexto, uma explicação radical das consequências do processo de internalização da dominação ante a violência colonial (e a antevisão da que se seguiria no período pós-colonial), a alienação e suas artimanhas no mundo dominante que modifica e subverte a comunidade e os sujeitos. E neste sentido Frantz Fanon tanto pode considerar-se um dos epígonos da geração dos nacionalismos africanos, quanto um dos primeiros teóricos do que se chamaria depois «estudos pós-coloniais». Com efeito, na pauta dos estudos pós-coloniais está não apenas a ruptura com as noções essencialistas de identidade, um dos núcleos conceptuais dos estudos culturais (com as contribuições dos celebrados Stuart Hall, Homi Bhabha, Edward Said, Kwame A. Appiah, Walter Mignolo, Néstor García Canclini, entre outros), mas uma epistemologia que propõe a (re)leitura do colonialismo a partir de paradigmas que consideram experiências de alteridade, racializadas e culturalizadas, nas sociedades contemporâneas no jogo social e político das relações de poder – campo de que realmente é pioneiro Fanon, que valoriza as perspectivas da subjectividade e da cultura a par das dimensões da economia, da política e da história no estudo da violência colonial e seus desdobramentos interiores – «A densidade da Historia não determina nenhum de meus atos»[16], dissera Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas.
Outra «herança» fanoniana aos estudos pós-coloniais seria, precisamente, esse cruzamento de epistemologias para o estudo do sujeito da situação colonial. É que, em Lyon, Fanon não estudou apenas medicina: estudou também literatura, filosofia, história e sociologia. E essa transversalidade de conhecimentos é igualmente visível na sua obra e, particularmente, em Os Condenados da Terra. O próprio Fanon parece ter consciência dessa abordagem transdisciplinar, não frequente naquela época, quando, no capítulo V do mesmo livro, sobre «Guerra colonial e perturbações mentais», afirma:
Vamos abordar aqui o problema das perturbações mentais provocadas pela guerra de libertação levada a cabo pelo povo argelino.
Talvez se considerem inoportunas e singularmente deslocadas, num livro como este, tais notas sobre psiquiatria. Nada podemos contra isso.[17]
Mais conhecido como revolucionário argelino do que enquanto intelectual antilhano produtor de (uma) teoria, Fanon teve, a par dos seus escritos, uma existência muito tumultuosa. Estes, por exemplo, antes de se afirmarem hoje como seminais dos estudos sobre as sociedades contemporâneas, seja na perspectiva dos estudos culturais, pós-coloniais, seja nos estudos de sociologia, de antropologia política ou de politologia, foram apreendidos em França, censurados nos Estados Unidos e, obviamente, em Portugal[18] (onde a tradução da Ulisseia de Os Condenados da Terra foi censurada e apreendida «a bem da nação», em 1967).
Por sua vez, uma citação de Fanon por um professor ou um cidadão[19] comprometido com causas emancipatórias era um passaporte para um rótulo ostracizante, o de radical, eufemismo para racista – atributo que, naqueles tempos e nestes, dimensionados numa visão pastoral do colonialismo, à direita e à esquerda, empurrava o autor da citação para o campo do maniqueísmo, que caracterizava a cena mundial durante a Guerra Fria, com repercussão nas opções ideológicas (socialismo vs capitalismo) dos países do, então chamado, Terceiro Mundo.
Descobri Frantz Fanon relativamente tarde nos meus estudos sobre África, sob a urgência de Mário Pinto de Andrade. E o que me surpreendeu nessa descoberta foi a «desconfiança» de que muitos falavam de Fanon sem nunca o terem lido na verdade, pois Frantz Fanon implode precisamente a «epistemologia» do maniqueísmo de que era acusado, ao afirmar que «o maniqueísmo primário que regia a sociedade colonial permanece intacto no período de descolonização»[20] – uma consideração bem ao jeito das formulações pós-coloniais sobre relações de poder no âmbito da cultura, classe, etnia, do género, da orientação sexual e outras categorias que compõem o xadrez das relações de poder internas à sociedade «descolonizada». Portanto, nessa altura (finais dos anos 80-princípios dos anos 90), Fanon era, no mundo da língua portuguesa – um mundo em que a teoria do luso-tropicalismo moldou mentalidades e a visão paternalista do colonialismo, de forma explícita ou implícita, na análise histórica ou na percepção do presente –, considerado radical.
Tal como o movimento da négritude – e da negritude (de língua portuguesa) – passava por um desmerecimento em que nem sequer a catarse do discurso científico começara ainda a fazer-se. Comentadores e opinion-makers, também os de origem africana, com acesso à comunicação social em Portugal (mesmo em órgãos que se dizem dirigidos às comunidades africanas), dimensionados na ideia de um «colonialismo intercultural», viam em Frantz Fanon um racista que apelava ao ódio entre as raças. Concordo com quem considera que essa «percepção» da obra de Fanon se deve ao célebre prefácio de Jean-Paul Sartre (nome com o qual os intelectuais negro-africanos se haviam habituado a dialogar) a Os Condenados da Terra (como famoso se tornara «Orfeu negro», prefácio a Anthologie de la poésie nègre et malgache, 1948, de Léopold Senghor, texto que há muito ganhou o estatuto de ensaio, passando a circular em publicação autónoma). Com efeito, estou convencida de que muitos leram apenas o prefácio e resumiram o texto de Fanon ao apelo que Sartre encontrou nas palavras do intelectual martinicano:
Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em terror entre os colonizados. Não me refiro somente ao temor que experimentam diante de nossos inesgotáveis meios de repressão como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as armas que apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do fundo do coração e que eles sempre reconhecem: porque não é de início a violência deles, mas a nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses oprimidos é ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa reprovam e que, todavia, é o último reduto de sua humanidade. Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados.[21]
Sartre escreve, em 1961, claramente não para os destinatários de Fanon, mas para os destinadores do seu texto, os agentes coloniais (Sartre afunila o âmbito do seu círculo de destinatários, retirando daquele grupo um segmento a quem se dirige, a esquerda liberal francesa). Todo o longo parágrafo e outros que se lhe seguem podem ler-se como uma interpretação existencialista do texto de Fanon, revestida de uma justificação de violência que Frantz Fanon alegadamente defende, como se de uma violência redentora se tratasse, chegando a pontuar todas as manifestações culturais dos africanos com sinais de revolta (a dança, as manifestações de religiosidade, os rituais que actualizam usos e costumes). Fanon acabaria, pela visão de Sartre, a reificar o colonizado negro africano enquanto sujeito da história – colonial e porventura antes da presença europeia – baseada na violência ao afirmar que «os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para a alienação religiosa. No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas alienações, cada qual reforçada pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os dias, os alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo que os cumprimenta (…).»[22]
A «escolha» de determinado destinatário do texto de Jean-Paul Sartre – cuja leitura terá deixado o próprio Fanon silencioso quando, já no hospital, recebeu o livro[23] – é importante no contexto em que este é publicado: em 1961, a guerra da Argélia tinha atingido o zénite das atrocidades (Fanon fala, ainda em 1961, em genocídio[24] e é assim que muitos historiadores classificam as atrocidades cometidas pela Legião francesa e pelos pieds-noirs). O que Sartre faz é desvelar, para «dentro», o processo de exploração do sistema colonial e as diligências «necessárias» empreendidas pelo colonizador para que o sistema funcione. Vaticina o mal-estar que a sua análise possa provocar mesmo na esquerda, a quem se dirige, e sintetiza que «quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por pouco que lhe demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena.»[25]
David Macey, um dos biógrafos de Frantz Fanon[26] e um dos primeiros estudiosos da sua obra a considerá-lo um dos precursores do que se entenderia, 20 anos depois, por «estudos pós-coloniais», afirma ser Fanon muito mais do que um «apóstolo da violência» e «santo patrono» dos Panteras Negras, como dele disse o «pantera» Stokely Carmichael. Na verdade, não é temerário pensar que esse estatuto foi exponenciado pelo citado prefácio de Jean-Paul Sartre.
É um facto que, no ponto de partida das reflexões de Fanon, a violência é a práxis fundadora da sociedade colonial, estando ela presente em todas as expressões materiais e simbólicas da relação colonial. Por isso é que, segundo Fanon, «para o colonizado, essa violência representa [também] a práxis absoluta (…) A violência é, por conseguinte, compreendida como a mediação real. O homem colonizado liberta-se na e pela violência. Esta práxis ilumina o agente porque lhe aponta os meios e o fim»[27].
Em Os Condenados da Terra, Frantz Fanon diagnostica, como resultado dessa violência política, económica, social e cultural do opressor – que resulta em massiva horda de marginalizados com ódio ao outro (também decorrente do «medo ao outro») –, uma reacção incontrolada do oprimido: violência gerada pelo recurso às regressões identitárias e étnicas. Esta é uma das evidências da actualidade da obra de Frantz Fanon, se pensarmos que esta é a situação que (ainda) vivemos hoje, decorrente de comportamentos legitimamente entendíveis como de regressão identitária, porque resultando de «identidades assassinas» (Amin Maalouf) – que também poderia ser «melancolia homicida», conforme analisa o próprio na senda do Professor A. Porot[28]. No seu conjunto, o livro analisa os antagonismos das relações dominado/dominante, no contexto da Guerra Fria, ainda que a terminologia da ciência política tenha tornado inibidora a expressão «Terceiro Mundo» – que, como se sabe, decorre (mas nela não se esgota) da teoria maoista dos «três mundos», hoje sem qualquer fundamentação quer político-económica, quer geopolítica – e tenha optado por uma pretensamente menos judicativa, os países do Sul, ou, simplesmente, o Sul. E quanta actualidade não revela o seguinte excerto da «Conclusão»:
Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar uma terceira Europa? O Ocidente quis ser uma aventura do espírito. (…)
Estamos, hoje, a assistir a uma paralisação da Europa. Fujamos, camaradas, desse movimento imóvel onde a dialéctica, pouco a pouco, se transformou em lógica do equilíbrio.[29]
Não é que se possa inverter o lugar da «condenação», como se vê na provocatória pergunta «Are the Europeans now the damned of the earth?»[30], no artigo em que Neelam Srivastava estuda a recepção de Fanon na Itália. O que a pergunta encerra é, precisamente, a dimensão universal e transtemporal das reflexões de Fanon sobre o poder, tal como a origem da inspiração da expressão «os condenados da terra», que atrás já foi referida. A obra de Fanon ganhou uma projecção tão intensa, que o filósofo camaronês Achille Mbembe considera, no prefácio à obra completa de Fanon, em 2011, que existe agora uma «biblioteca Fanon», uma crítica vibrante e dinâmica inspirada da sua obra, que atravessa quase todas as disciplinas das ciências humanas e sociais, enfim, «uma verdadeira ‘biblioteca Fanon’ nasceu e permitiu, por sua vez, a constituição de um campo de estudos florescente, rizomático e, hoje em dia, de alcance planetário.»[31] Esta visão celebrativa da obra fanoniana pode não ser unânime, se tivermos em conta a resposta, com um travo de pessimismo, de Paul Gilroy à pergunta «O que tem o nacionalismo negro a dizer sobre a situação do mundo agora? Não muito.»[32]embora se possa contrapor a esse pessimismo a proposta testamentária de Fanon e o seu convite à relativização:
Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la. (…)
A nossa missão histórica, a missão daqueles que tomaram a decisão de acabar com o colonialismo, consiste em ordenar todas as revoltas, todos os actos desesperados, todas as tentativas abortadas ou afogadas em sangue.[33]
Continua (…)
*PREFÁCIO a Os Condenados da Terra, edição da Letra Livre.
[1] A data da morte de Frantz Fanon é um dos «problemas» das suas inúmeras biografias: encontram-se três datas – 5 de Dezembro, 6 de Dezembro e 8 de Dezembro. Parece, no entanto, consensual (pela predominância desta data) que a sua morte ocorreu no dia 6 de Dezembro de 1961. Esta é a data que aparece numa das mais completas e concisas notas biográficas de Frantz Fanon, publicada recentemente por Giovanni Pirellia e Rachel E. Love, que teve a colaboração da família de Fanon, a sua esposa, o irmão Joby, colegas vários (do liceu, da faculdade, da vida militar, de profissão, enfim), em vários períodos da sua vida. Giovanni Pirellia & Rachel E. Love «Biographical Note on Frantz Fanon». Interventions: International Journal of Postcolonial Studies – New York University. Published online: 06 Jan 2015. Vol. 17, No. 3, 6394–416, http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.993680 (Fevereiro de 2015).
[2] Fanon estava hospitalizado no National Institutes of Health em Bethesda, Maryland, segundo alguns de seus biógrafos contra a sua vontade, pois não lhe agradara ter de recorrer àquele «país de linchadores». Ironicamente, Fanon, que se inscreve no hospital como Ibrahim Fanon, é evacuado em aeronave providenciada pela Embaixada dos Estados Unidos em Túnis.
[3] «In a feverish spurt». Homi Bhabha «Foreword: Framing Fanon». Frantz Fanon, The Wretched of the Earth. New York: Grove Press, 2004.
[4] Frantz Fanon chega à Argélia como médico psiquiatra colocado no hospital de Blida, que hoje homenageia esse grande vulto da recente história da Argélia, Hôpital Psychiatrique Frantz Fanon.
[5] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008, p. 26.
[6] Idem, ibidem, p. 46.
[7] Idem, ibidem, p. 121.
[8] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra. Lisboa: Letra Livre, 2015, p. 217.
[9] Idem, ibidem.
[10] Ver, por exemplo, Arthur Jose Poerner. Argélia: o caminho da independência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
[11] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, op. cit., p. 132.
[12] Tradução livre: Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénérescence spino-cérébelleuse: un cas de malade de Friedrich avec délire de possession.
[13] Ver: Claudine Razanajao e Jacques Postel, «La vie et l’œuvre psychiatrique de Frantz Fanon».Sud/Nord, 2007/1 – n.° 22 ( p. 147 – 174).
[14] Fanon também já homenageara Roumain com o título da revista Tam-Tam, editada em 1949: «Trop tard/jusqu’au cœur des jungles infernales/retentira précipité le terrible bégaiement/télégraphique des tam-tams répétant infatigables/répétant/que les nègres/n’acceptent plus/d’être vos niggers/vos sales nègres» («Sales nègres», Bois d’ébène).
[15] Jacques Roumain, Bois d’ébène. Ênfase meu.
[16] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, op. cit. p. 190.
[17] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 257.
[18] Em Portugal, o livro teve duas edições: uma pela Ulisseia, nos anos 60, e outra pela Ulmeiro, nos anos 80; no Brasil, o livro também foi publicado por duas editoras: a Civilização Brasileira, em 1968, e a Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2005.
[19] Lewis R. Gordon afirma que, pelo contrário, na América do Sul o pensamento de Fanon formou muitos intelectuais, a começar por Paulo Freire. «Prefácio» a Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 11. Nem é despiciendo o facto de haver, no seio da comunidade académica, um «Prémio Frantz Fanon por Obras Excepcionais do Pensamento Caribenho», concedido pela Associação Filosófica Caribenha.
[20] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 54.
[21] Jean-Paul Sartre, «Prefácio». Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968, pp. 10-11.
[22] Jean-Paul Sartre, op. cit., pp. 12-13.
[23] Alice Cherki, Frantz Fanon: Portrait. Paris: Seuil, 2000.
[24] «Aqui, é a guerra, é essa guerra colonial que muitas vezes toma aspecto de um autêntico genocídio, essa guerra, enfim, que perturba e despedaça o mundo, que é o acontecimento desencadeante.» (Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 260).
[25] Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 10.
[26] David Macey é autor de Frantz Fanon: A Life (London: Granta Books, 2000) e Frantz Fanon: A Biography (New York: Picador, USA, 2001).
[27] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 88-89.
[28] Idem, idibem, p. 309.
[29] Idem, ibidem, p. 325.
[30] Neelam Srivastava «Frantz Fanon in Italy». Interventions: International Journal of Postcolonial Studies. Published online: 17 Dec 2014 Vol. 17, No. 3, 309–328. http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.991419
[31] Achille Mbembe, «L’universalité de Frantz Fanon». Frantz Fanon Œuvres, Paris: La Découverte, 2011. Existe uma tradução portuguesa deste ensaio, a partir da qual se cita Mbembe: http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=36 (Acesso: 26 de Fevereiro de 2015).
[32] Tommie Shelby, «Cosmopolitanism, Blackness, and Utopia» – a conversation with Paul Gilroy. Transition, nr. 98, 2008, pp. 116-135 (p. 120).
[33] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 211-212.