“Põe-se em questão, daqui por diante, qual a capacidade e com que estratégias essas coalizões vencedoras poderão impactar as formas de poder, na fugidia e vacilante franja entre instituições e mobilizações”, afirma o pesquisador
As eleições municipais espanholas do último final de semana, que elegeram a nova prefeita de Barcelona, Ada Colau, foram “a primeira expressão eleitoral de um ciclo de lutas iniciado com as revoluções árabes em dezembro de 2010 que foi bastante intenso na Espanha, a partir do Movimento do 15 de Maio (15M) de 2011”, comenta Bruno Cava em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação do pesquisador, Ada representa “o rosto dessa geração de militantes e novos movimentos” que se opõem ao PSOE e ao PP. A nova prefeita, pontua, não tem “um discurso cidadão em prol do social, algum tipo de populismo raivoso e oportunista, mas de toda uma estética e uma lógica organizativa que são de novo tipo em relação às forças partidárias existentes, e que por isso contagiaram cidades inteiras com a força do comum. Existe então uma grande expectativa pelas inovações que o Barcelona em Comum, sob os signos de Ada e da PAH, vai ousar nos próximos anos”, frisa.
Se de um lado os movimentos Barcelona em Comum e do Ahora Madrid alcançaram um número significativo de votos nessa eleição, o Podemos, em contrapartida, “aponta para o lado exaurido desse processo”, menciona Cava, ao lembrar das relações do partido espanhol com governos da América Latina e ao chamar atenção para o fato de que o partido não se apoia diretamente no 15M. “É por isso que, paradoxalmente, qualquer refundação do Podemos a fim de se reenergizar para as eleições do final do ano precisaria passar não apenas pela retomada do sentido comum do 15M(e das revoluções árabes), com uma revalorização dos círculos autônomos e novos movimentos; como também por uma reconsideração de sua referência sul-americana”, adverte.
Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sites; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação você faz das eleições municipais espanholas? Qual é o significado político da eleição de Ada Colau em Barcelona?
Bruno Cava – Foi a primeira expressão eleitoral de um ciclo de lutas iniciado com as revoluções árabes em dezembro de 2010 que foi bastante intenso na Espanha, a partir do Movimento do 15 de Maio (15M) de 2011. Há uma relação direta entre o 15M e as frentes cidadãs que conquistaram resultados extraordinários nessas eleições. Ada Colau, do Barcelona em Comum (antigo Guanyem), venceu na capital da Catalunha, com 25% dos votos; enquantoManuela Carmena, do Ahora Madrid, obteve um resultado percentual ainda maior (31%), ficando em segundo lugar por apertada margem na maior cidade da Espanha.
Coalizões cidadãs semelhantes venceram em La Coruña e ficaram em segundo lugar em Cádiz e Zaragoza, além de outros bons resultados noutras cidades pequenas e médias. Os dois partidos tradicionais que se revezam no poder, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o Partido Popular(PP), juntos desabaram de 80% para 50% dos votos válidos. O PP perdeu as maiorias absolutas nas 10 comunidades que governava. Portanto, são resultados históricos que sinalizam a abertura de um novo ciclo institucional, sinalizando uma tendência de esgotamento do sistema político representativo conhecido por “Régimen de 1978“, isto é, o regime da redemocratização pós-ditadura franquista. O significado extrapola o cenário espanhol ao demonstrar como é possível, transpor o ciclo de lutas para a ocupação de instâncias de poder, com alto poder de contágio no resto da Europa e no mundo. Põe-se em questão, daqui por diante, qual a capacidade e com que estratégias essas coalizões vencedoras poderão impactar as formas de poder, na fugidia e vacilante franja entre instituições e mobilizações.
IHU On-Line – Pode-se dizer que essa eleição é fruto das mobilizações que ocorrem na metrópole, ou seja, é fruto do comum?
Bruno Cava – Todos os temas de protesto do 15M reapareceram com força nesta eleição: “Não pagaremos pela sua crise”, “Não nos representam”, “Democracia real já”, “Não somos mercadoria nas mãos de banqueiros e políticos”… As campanhas de Barcelona em Comum (BC) e Ahora Madrid (AM), apenas para ficar nas duas principais cidades, foram construídas com o apoio entusiasmado de redes, mídias e coletivos que, nas palavras do pesquisador Bernardo Gutiérrez, compõem o “ecossistema do 15M“. Ou seja, sem a estrutura tradicional de financiamento dos partidos tradicionais, BC e AM funcionara quase que exclusivamente devido a uma rede de alta intensidade que ocupou as redes sociais, as assembleias de bairro e as tertúlias (grupos de discussão na cidade), gerando um efeito de escala. Foi uma ação do tipo “multicamada“, em que dinâmicas moleculares (redes transversais de singularidades) sustentam um efeito molar (tomada do poder), ao mesmo tempo que a vontade de vencer o Régimen no plano eleitoral (as campanhas) realimentam uma agitação no nível molecular (novos agenciamentos). Nisso, o processo de mobilização tocou um nervo positivo do trabalho metropolitano contemporâneo, ao fomentar uma disputa no tecido biopolítico em que funciona a metrópole hoje, onde molar e molecular são duas dimensões articuladas e indissociáveis das formas de produção e controle.
IHU On-Line – Como as eleições municipais espanholas são interpretadas à luz do conceito de comum?
Bruno Cava – O “comum” é um conceito que explica o ciclo de lutas das revoluções árabes, 15M, Occupy, Gezi Parkna Turquia, mobilizações na Islândia, no Iêmen, na China, jornadas de junho no Brasil, praça Maidan na Ucrânia, e um longo etcétera de novos coletivos, ocupações e lutas. O comum, declinado no singular (e não ‘commons’) explica porque essas não são lutas unicamente políticas, como se fossem apenas um antagonismo ao capitalismo globalizado e integrado. São lutas que exprimem também uma nova composição do trabalho vivo, com múltiplas dimensões simultâneas: são políticas, econômicas (o comum é produtivo), biopolíticas (produzem formas de vida), cosmológicas (trazem outras concepções de natureza, de humano, da Terra). Antonio Negri, por exemplo, quando fala do “comum em revolta”, aponta como mesmo as revoltas mais destrutivas e antagonistas trazem, atrás do “não”, um “sim” maior, uma positividade de reexistência e novos arranjos produtivos e de vida.
Barcelona em Comum e Ahora em Madrid, mais do que grupos que aspiram a tomar uma esfera política, exprimem um complexo de fatos de vida que estão muito além de uma vontade de poder: está em questão toda uma forma de organizar a vida, de viver a democracia, a organização, a produção social e colaborativa. Essa multiplicidade não pode ser reduzida a mero multiculturalismo, como se fossem apenas plataformas voltadas a exprimir a diversidade de pautas. Não. A indignação que as impele contra o sistema político existente, o Régimen, é baseada nessa multiplicidade.
O comum é antagonista, porque as formas existentes de exploração e dominação não podem admitir uma alternativa capaz de produzir governamentalidade e, efetivamente, destituir e substituir o poder. Isto exprime o grau de aposta, e de desafio, dessas plataformas. O “poder do Podemos“, como explica o pesquisador madrilenho Raúl Sánchez Cedillo, consiste nessa multiplicidade criativa e conflitiva do comum. E é essa a única força capaz de, efetivamente, mudar a “correlação de força” e impedir, daqui por diante, uma reocupação pelas instâncias do Régimen montado sobre a farsa bipolar entre PP e PSOE.
IHU On-Line – Ada Colau, ao longo dos últimos anos, atuou como porta-voz da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca – PHA. Por que e em que medida Ada Colau se torna uma alternativa política em relação aos demais representantes políticos espanhóis?
Bruno Cava – Ada Colau é uma militante e co-organizadora do principal movimento autônomo da Espanha, que foi um dos maiores protagonistas do 15M. A PAH existe desde 2009 com um programa contra os despejos pelo não pagamento de prestações da casa própria. Mas não só. É um programa de resgate cidadão, em meio a medidas de austeridade fiscal e repressão de movimentos adotadas indistintamente pelas forças políticas nos governos. Mais do que reivindicar ações diante dos governos e suas falsas polarizações, a PAH constitui ela própria redes de solidariedade, com foco na moradia, endividamento, ajudando os imigrantes sem documentos e acesso à saúde, exercitando o autogoverno e a cooperação transversal. A PAH se desenvolveu bastante, quantitativa e qualitativa com o 15M de 2011, se desdobrando em mais de 150 núcleos pelo país, com concentração na Catalunha.
Ada é o rosto dessa geração de militantes e novos movimentos, em total contraposição aos burocratas cínicos do PSOE ou do PP. Não se trata apenas de um discurso cidadão em prol do “social”, algum tipo de populismo raivoso e oportunista, mas de toda uma estética e uma lógica organizativa que são de novo tipo em relação às forças partidárias existentes, e que por isso contagiaram cidades inteiras com a força do comum. Existe então uma grande expectativa pelas inovações que o Barcelona em Comum, sob os signos de Ada e da PAH, vai ousar nos próximos anos.
IHU On-Line – Quais os desafios que ela enfrenta no sentido de governar mantendo o apoio às lutas populares contra as hipotecas?
Bruno Cava – A hipótese municipalista se baseia na avaliação que é preciso primeiro tomar o que é mais próximo, mais concreto, mais rápido. É preciso começar de algum lugar e a escala da cidade é entendida, segundo essa hipótese, como o primeiro terreno para medir forças com a classe dominante e a sua armadura de consensos e polícia.
No entanto, esse municipalismo não pode ser confundido com um localismo romântico, como se fosse possível construir um enclave de comum em meio à devastação da crise política-econômica. Isso já não funcionou com a Comuna de Paris, no século XIX, que dirá no momento em que a metrópole é imediatamente atravessada por processos globais de financeirização, que fagocitam com grande facilidade áreas de “autogestão” e/ou “sustentabilidade”.
A hipótese municipalista só tem vigor, portanto, quando dotada de força de propagação, quando puder ser exercitada em muitas cidades, de maneira disseminada. Por isso, é fundamental que não haja ilusões de que enclaves ou localismos resolverão qualquer problema, mas uma preocupação estratégica em concatenar governos municipais entre si e com forças para além dos limites territoriais e noutras escalas.
IHU On-Line – Quais as diferenças das eleições e dos movimentos que ganharam expressão em Madri e Barcelona?
Bruno Cava – Ambos têm uma dimensão tática declarada: ganhar as eleições de 2015. São, por isso, abertamente “eleitoralistas”. O primeiro tabu que esses grupos enfrentaram foi dizer: precisamos e podemos ganhar eleições. Nisso, tiveram que romper com dogmatismos movimentistas ou anarquistas, que são os primeiros a condenar a organização eleitoral como “projeto de poder” ou “oportunismo”. Pois é, de fato, um projeto de poder e é oportunista: como tem de ser, num momento em que os movimentos e ativismos vivem uma sequência de impasses, derrotas e autofagias (devorando-se uns aos outros, culpando-se, desmobilizando-se).
É uma saída fácil? Certamente que não, e só quem participou desses processos sabe do grau de cerco midiático, político e afetivo que seus ativistas e articuladores enfrentaram. O sucesso veio, em meio a tudo isso, graças à capacidade de dosar a indignação incontornável com a composição de diferentes, o que significa deixar de lado tabus, dogmas, símbolos sagrados. Nenhuma dessas plataformas venceu apenas dizendo seu nome, como se defendesse uma ideia ou uma bandeira.
Barcelona em Comum foi um espaço de confluência, preenchido por novos movimentos como a PAH e as Mareas (como a Marea Branca, ligada à pauta da saúde), mas também setores ambientalistas e esquerdistas, inclusive vindos de setores críticos de partidos pequenos como a Esquerda Unida (IU) e Equos, e uma capacidade fina de compor com pessoas que não participavam de nenhum ativismo ou movimento mais organizado, e que estavam indignadas com a crise econômica, a corrupção e a falta de perspectiva.
O Ahora Madrid vem de um processo semelhante, um pouco menos estruturado, de confluência entre grupos de contestação do consenso bipartidário PP-PSOE sem deixar de lado a inovação organizativa, tais como o “EnRed” e o “Alternativas desde Abajo“. O Ahora Madrid não tinha uma figura como Ada, mas mesmo assim fez uma campanha envolvente a partir da criatividade em rede.
IHU On-Line – Quem são os ativistas do Guanyem e do Barcelona em Comum? Em que eles se diferenciam do Podemos?
Bruno Cava – O Podemos está concentrado na disputa da eleição nacional espanhola, marcada para o segundo semestre. O Podemos não participou diretamente das eleições municipais, concorrendo apenas nas regionais (ou “autonômicas”). Nelas, tiveram um resultado modesto, com uma média nacional de 12% dos votos. Depois de conquistar 8% dos votos nas eleições ao Parlamento Europeu em maio de 2014, o Podemos impressionou ao tomar a dianteira nas pesquisas eleitorais, ultrapassando PP e PSOE, oscilando na faixa entre 20 e 30% das preferências. Além de aderir às coalizões de Barcelona em Comum e Ahora Madrid, o Podemos contribuiu na medida em que sua emergência no último ano gerou uma onda de otimismo sobre a possibilidade de concorrer e vencer contra os grandes partidos. Existem semelhanças e diferenças entre o processo Podemos e os de Ahora Madrid e Barcelona em Comum, mas nenhum dos três existiria sem o 15M, que produziu o “comum” a partir do que cada um dos projetos hoje se apoia.
Alguns analistas traçam uma dicotomia apressada entre Podemos e as plataformas municipalistas, a fim de fazer a apologia ou a condenação de um ou outro aspecto, segundo as várias estratégias de composição (ou crítica) desses processos.
Em linhas gerais, basicamente, o Podemos teria uma linha verticalizante e centralista, operando com uma cúpula de expertos comunicadores, em busca de uma ligação sem mediações com o “cidadão comum”, com maiorias sociais, com aqueles que, para além dos signos de esquerda ou direita, querem uma renovação da política que reconduza a economia a sua função social.
Então, a verticalização seria necessária, para aproveitar a oportunidade histórica das eleições de 2015: sem uma alternativa de poder, o Régimen não teria como ser destituído somente pelos movimentos de luta. Além disso, não é possível uma “síntese horizontal” dos movimentos e redes, sendo necessário um tipo de “cadeia de equivalentes” para servir de guarda-chuva ao espírito do 15M.
O hegemonismo do Podemos, com essa superconcentração comunicativa na cúpula, seria um mal necessário a fim de derrotar eleitoralmente o bloco bipolar PP e PSOE e ocupar o poder. Já Barcelona em Comum e Ahora Madrid seriam mais horizontais, mais movimentistas, mais fiéis à utopia do 15M, e por isso menos dependentes da ocupação dos grandes meios de comunicação e da ação conjunturalista de cúpulas estratégicas, a quem deveríamos conceder um mandato excepcional e temporário, quase um tipo de “ditadura comissária” da multidão, a fim de não deixarmos passar a “janela histórica” de tomada do poder.
Essa contraposição, no entanto, tem limitações claras, a situação é mais complexa do que isso. As relações entre Podemos e as plataformas municipalistas são sobretudo de interpenetração e não de separação. Assim como Pablo Iglesias do Podemos, Barcelona em Comum e Ahora Madrid necessitaram de um rosto expressivo (Ada Colau e Manuela Carmena) para fazer convergir a indignação e o desejo de mudança. Todos os três convergiram num programa mínimo de resgate cidadão, sem se deixarem rotular pelos discursos, signos e tradições já existentes, à direita ou esquerda. E ambas as plataformas municipalistas souberam driblar rótulos, evitar teses defensivas, para afirmar uma síntese de indignações e desejos numa nova força.
A diferença, talvez, esteja no fato que nem Ada nem Manuela contrapuseram estratégia hegemonista x tática de movimento, teoria do discurso hegemonista x militância “grassroots”, conseguindo assim uma síntese mais ampla e mais potente. Por isso, o Podemos precisa aprender com o 24M eleitoral para reorientar seus rumos na direção do que é mais potente, com vistas à eleição nacional no segundo semestre. O “poder do Podemos” é o 15M em seu manancial de vitalidade política e organizativa, e não uma “máquina de guerra eleitoral”.
IHU On-Line – Quais as implicações de o Podemos se inspirar nas visões políticas do “comum” que surgiram na América Latina, como Bolívia, Equador e Venezuela?
Bruno Cava – O Podemos reivindica a experiência de governos na América do Sul, como Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela, por onde passaram os membros de sua cúpula, na qualidade de pesquisadores e consultores governamentais, ao longo da década passada. O antropólogo argentino Salvador Schavelzon, num artigo recente, escreveu essencialmente que o Podemos faz uma tradução cultural enviesada dessas experiências. Para ele, o que há de mais inovador e democrático nas experiências constituintes sul-americanas consiste num novo paradigma de desenvolvimento endógeno e pluridimensional, assentado sobre as lutas e modos de vida indigenistas: o “bem viver”; bem como a capacidade não de criar um poder indígena, mas de indigenizar o poder, por exemplo, com a matriz boliviana da plurinacionalidade.
O Podemos levaria à experiência espanhola pós-15M, em vez dessa riqueza cosmológica e biopolítica, apenas o foco no “social”, segundo uma tradição histórica populista e hegemonista da América Latina. Isto aparece, por exemplo, na ausência de proposta plurinacional para Catalunha, País Basco e Galícia, assim como numa visão econômica essencialmente keynesiana de seu programa econômica.
Como escrevi com Alexandre Mendes ao Le Monde Diplomatique de maio, eu concordo em parte com essa análise. O esgotamento do ciclo constituinte na América do Sul não se dá, me parece, apenas pelo esgotamento da abertura aos movimentos indigenistas, sindicalistas de novo tipo ou altermundistas (como defendem, por exemplo, a boliviana Raquel Gutiérrez ou o uruguaio Raúl Zibechi); como se os governos “progressistas” deixaram de sê-lo a partir de um determinado ponto. Esse esgotamento se dá, sobretudo, pela incapacidade de os governos lidarem com uma mutação na composição de classe que foi contemporânea aos próprios governos e que não estava, portanto, apenas no ciclo insurgente que determinou a tomada do poder.
Para além de movimentos e identidades subalternas, que tiveram o seu papel parcial nesse esgotamento, este está associado também à transformação da produção social nas condições do subdesenvolvimento, a uma transformação que excedeu as instituições políticas e econômicas com que os governos constituíram uma governamentalidade (na acepção de Foucault). Essa mutação, exprimida por exemplo no levante brasileiro da multidão de junho de 2013, é a mesma das revoluções árabes. Aqui não há nenhuma “ideia fora do lugar”, nenhum nivelamento despropositado, mas a compreensão que a dimensão global do ciclo de lutas deriva de uma nova composição de classe que é global – de resistência e êxodo de um capitalismo, que há 40 anos, se apresenta globalizado e financeirizado. É fácil acusar generalizações e exigir respeito à diferença geográfica: o difícil é apreender a dimensão global no local e vice-versa, o que o capitalismo aliás faz muito bem desde pelo menos os anos 1970.
O tecido biopolítico ultraconectado da metrópole energizou as revoluções árabes, revoluções já de novo tipo e que não podem ser explicadas, em chave colonialista, como meras revoltas pelo pão ou, em tom liberal, pela democracia contra arcaicas ditaduras. O 15M espanhol já é, de fato e de direito, essa nova composição de classe mundial, contagiada desde a Praça Tahrir e a insurreição de Túnis. Por isso, hoje sucede um grande quiproquó interoceânico: os indignados do Podemos fazem referência aos governos “progressistas” na América do Sul no exato momento em que estes se esgotam enquanto poder constituinte, mas o esgotamento tem a ver, antes de qualquer coisa, com a afirmação de uma nova positividade do trabalho na metrópole, uma nova composição de classe frente ao capitalismo global. Esta positividade biopolítica é a mesma que, irrompida das revoluções árabes, catalisou o ecossistema do 15M de 2011, e que viria, por sua vez, com quatro anos de desdobramentos, impasses e encruzilhadas, propiciar a existência de algo como o Podemos.
O enigmático aqui é que o Podemos discursivamente aponta para o lado exaurido desse processo (governos na América do Sul, especialmente o venezuelano), em vez de se apoiar diretamente no 15M, que já seria um passe qualitativo aos impasses das lutas globais (e do próprio Podemos). É por isso que, paradoxalmente, qualquer refundação do Podemos a fim de se reenergizar para as eleições do final do ano precisaria passar não apenas pela retomada do sentido comum do 15M (e das revoluções árabes), com uma revalorização dos círculos autônomos e novos movimentos; como também por uma reconsideração de sua referência sul-americana.
A recente saída de Juan Carlos Monedero, o podemita da cúpula mais ligado ao chavismo, não pode ser encarada apenas como uma concessão aos ataques difamatórios, um reconhecimento de fraqueza diante da campanha de “desconstrução”, promovidos pelo status quo PP-PSOE, mas como uma oportunidade, antes que seja tarde demais, para uma refundação. Nisso, está em jogo não apenas o “poder do Podemos” e sua desejada eficácia no voto. Mas o devir de um inteiro ciclo global que, num tempo crítico de embates e reviravoltas, aguça os corações de quem deseja mudar o mundo e a sua própria existência nele.
Nota: A fonte da imagem acima é: odia.ig.com.br