Vale do Ribeira se organiza para defender direito à água e preservar mananciais

Em seminário, povos tradicionais da região, no extremo sul de São Paulo, debatem futura transposição de rios da região e questionam modelo de desenvolvimento do estado, considerado insustentável

Por Giovani Gioconco, do Jornal Brasil Atual, na RBA

Reunidos no último sábado (16), população, movimentos sociais, autoridades, técnicos e políticos debateram propostas para contornar possíveis impactos sociais e ambientais da crise hídrica que atinge São Paulo sobre o Vale do Ribeira, região que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado.

O seminário “Aprendizados para a Crise Hídrica no Brasil”, realizado em Registro, principal município do Vale, debateu a importância da participação da sociedade civil organizada nas instâncias de decisão sobre o futuro da água, além de esclarecer detalhes sobre a transposição das águas da bacia hidrográfica do rio Ribeira de Iguape para a região metropolitana da capital paulista, dentro do sistema de produção São Lourenço.

A obra, de responsabilidade da Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo (Sabesp), pretende captar até 6,4 m3/s do Ribeira, dentro da represa Cachoeira do França, em Ibiúna. O objetivo é abastecer cerca de 1,6 milhão de pessoas que atualmente dependem do sistema Cantareira em cidades da região oeste da Grande São Paulo. O projeto, orçado em 2,21 bilhões de reais, deve entrar em operação em 2017.

“Se conseguirmos levar essa água para São Paulo, nós vamos resolver o problema de fato ou apenas retardar a morte?”, questionou o agricultor Pedro Oliveira, em sua participação no seminário de Registro. Morador da zona rural do município de Barra do Turvo, Pedro diz ter aprendido a “plantar água” quando passou a trabalhar a agricultura em equilíbrio com a floresta, sem impactos negativos. “A gente consegue viver e deixar um ambiente melhor do que ele estava”, explica.

Oliveira acredita que a transposição é uma obra inevitável, mas questiona se a educação e a consciência das pessoas vão ser diferentes. “Não adianta nada se os nossos hábitos e o nosso consumo não mudarem. Está na hora de pensarmos nossos erros”, afirmou.

O vereador Raul Calazans (PT), de Registro, um dos organizadores do seminário, concordou com o agricultor. “Nós queremos discutir as origens da crise e saber quais compensações ambientais o Vale do Ribeira poderá receber por ter mantido intactos os seus mananciais e agora servir sua água à região metropolitana de São Paulo.” O parlamentar apontou que outras regiões do estado são consideradas mais “ricas” que o Vale do Ribeira, mas que para alcançarem esse patamar devastaram totalmente seus recursos naturais.

Também organizador do evento, o ex-coordenador do Instituto Socioambiental e atual deputado federal pelo PT de São Paulo, Nilto Tatto, explicou que a transposição do Sistema São Lourenço traz à tona o debate sobre o envolvimento da população nas decisões sobre o uso da água. “O Estado só chama a população para falar de consumo, escassez. Mas ela precisa estar presente para decidir sobre o planejamento, o investimento, pois até hoje permanece distante dessa realidade”, ressaltou.

Para Vicente Andreu, presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), nesse aspecto entra em cena a estratégica “cobrança pelo uso da água”. O mecanismo, previsto em lei, permite que o Comitê de Bacias Hidrográficas de determinada região estabeleça valores a serem pagos pelos consumidores da água local e defina qual o destino do dinheiro arrecadado com a cobrança.

“É preciso priorizar as bacias doadoras, como é o caso do rio Ribeira”, afirmou Andreu, que considera que a cobrança pelo uso da água “é o principal instrumento da política de recursos hídricos”. O montante arrecadado pode ser aplicado tanto em obras quanto em projetos de recuperação de mananciais ou mesmo em educação ambiental, segundo explicou. “Mas é uma decisão política, por isso urge a presença de toda a população dentro dos comitês”, alertou.

Comitês

O Comitê de Bacias Hidrográficas é um órgão colegiado vinculado ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e que funciona no Brasil desde 1988. Cabe ao comitê, dividido em macrorregiões, “arbitrar conflitos pelo uso da água, em primeira instância administrativa; estabelecer mecanismos e sugerir os valores da cobrança pelo uso da água”, entre outras funções.

O maior problema envolvendo os comitês em todo o país, segundo Edson Aparecido da Silva, membro do Comitê Técnico de Saneamento do Conselho Nacional das Cidades, é a não paridade entre integrantes do Estado e da sociedade civil. “Desde que foram criados, os comitês mantém dois terços de seus integrantes oriundos do poder público (um terço das prefeituras e um terço de autarquias do estado), e só um terço cabe à população comum.

Na opinião de Silva, que também coordena a Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, antes de rever essa paridade, em primeiro lugar é preciso ocupar o espaço disponível. “Devemos conversar com nossos representantes e preparar nossas demandas para essas reuniões, debater entre nós a pauta para que essa pessoa defenda o que é do interesse coletivo, além de lutar também fora dos espaços institucionais”, ressaltou.

Ney Ikeda, diretor do Departamento de Águas e Energia Elétric (DAEE) e secretário-executivo do Comitê de Bacias Hidrográficas do Ribeira de Iguape e Litoral Sul, afirmou que o comitê “é um espaço democrático, onde toda discussão é bem-vinda”. Em sua intervenção, ele disse ainda que, até o fim deste ano, será debatido o destino dos recursos provenientes da cobrança pelo uso da água do rio Ribeira.

Pressão popular

Carla Galvão, do Quilombo João Surá (que fica no município paranaense de Adrianópolis) e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), contou que o que mais impede a participação dos quilombolas nas decisões sobre a água é a forma como as informações sobre o tema chegam até a zona rural. “Mesmo essa transposição, que afeta diretamente a nossa comunidade, não tínhamos ideia de como ia acontecer. Então nós temos tentado criar alternativas de comunicação para mudar essa perspectiva.”

Membro da ONG Aliança pela Água, Mauro Scarpinatti constatou que a presença maciça do público no seminário mostrou que “o Vale do Ribeira não está para brincadeira”, e que é preciso seguir o modelo da periferia de São Paulo e batalhar, nas ruas, pelo direito à água. “O MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) já levou 20 mil pessoas em um ato que foi até o Palácio dos Bandeirantes para mostrar a indignação dos mais pobres, que são quem mais sofre com a falta de água na cidade. Portanto, é preciso fazer pressão para ser ouvido. Água é um direito humano, não se vende, se defende.”

Imagem: Bacia do Ribeira, incluída em plano de obras para abastecer a capital paulista, no centro do debate sobre hábitos de consumo (CC / LUCIANO FAUSTINO / WIKIPEDIA)

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