O que leva um torcedor de futebol a preparar, armazenar e carregar um composto químico até um estádio a fim de lançar em jogadores do time adversário?
Poderíamos discutir horas sobre os elementos que estão por trás disso. Mas, mesmo realizada por uma única pessoa, ela não é uma ação individual de um lunático mentecapto. Existe um processo de construção e validação social sobre isso.
Afinal de contas, quantas vezes um bastardo inútil que matou um torcedor no Brasil após uma briga de torcidas uniformizadas não deve ter recebido tapinhas nas costas de outros bastardos tão inúteis quanto ele? “Parabéns, você matou um corintiano, um sãopaulino, um palmeirense.” Deprimente…
Da mesma forma que não é a mão de pastores ou deputados fundamentalistas que seguram a faca ou o revólver que atacam gays, lésbicas, travestis, mas são o discurso deles que torna a agressão uma necessidade para restabelecer a ordem das coisas. O mesmo se aplica a jornalistas da linha “Espreme que sai Sangue”, sua luta pela audiência e linchamentos de pessoas culpadas ou inocentes.
Como os casos de mulheres atacadas por ácido no rosto no Paquistão. Em Islamabad, capital do país, conversei com uma coordenadora de uma organização que atuava no apoio e acolhimento dessas vítimas. Por manterem o rosto descoberto, o que seria um ultraje para alguns seguidores de uma interpretação tacanha do Corão, são vítimas desses ataques.
Não eram líderes que jogavam o ácido, mas são eles e a comunidade por eles instruída, que transformam o ato de queimar um desejo de Alá. Sendo que a Alá foi apenas usado como justificativa e não tem culpa nenhuma.
Ninguém nasce com o ódio, ele é aprendido e fomentado. Seja através da ação sistemática de um grupo social, que produz e difunde discursos contra o outro, seja pela sistemática injustiça cometida contra alguém ou um grupo e o rancor vingativo decorrente disso
Como já relatei aqui, foi extremamente pedagógico uma experiência antropológica pela qual passei quando um espécime, dirigindo um carro grande e bonito, me reconheceu, parou ao meu lado na rua, me cuspiu, gritou “Volta para Cuba” e elogiou de forma contundente minha progenitora.
O que a mulher simpática a fazer isso? Algumas pessoas que operam no nível “Rodapé” de profundida intelectual decerto dirão que foi “a raiva que estava contida por anos de ditadura do proletariado no Brasil”. Ahã. Ditadura do proletariado. No Brasil. Com esse governo entreguista que está rifando os direitos dos trabalhadores em nome de uma concepção equivocada de desenvolvimento? Vai, Claudia, senta lá.
Falta amor no mundo. Falta interpretação de texto. Mas falta Lexotan na água desse povo.
O fato é que a cuspidora colocou em prática o discurso que deve ter ouvido por um bom tempo: que é necessário fazer justiça com as próprias mãos, que a coletividade vai lhe agradecer por esse ato (se ela pudesse, certamente teria usado um pau de selfie no momento em que o catarro deixou sua boca e postado no Instagram) e que, portanto, seu ato não é criminoso, mas divino.
Diálogo para a construção coletiva da sociedade, sem xingamentos ou ofensas? Imagina! Isso é coisa de bicha asquerosa que merece morrer!
O problema é que discursos de repressão não são fruto de geração espontânea. Há sempre alguém que organiza esse processo no intuito de influenciar a narrativa e manter ou conquistar a hegemonia. Aqui ou em qualquer parte do mundo.
Em alguns locais da África, senhoras idosas tradicionalmente detém o controle de parte das terras de sua comunidade. Não estou falando de latifúndios improdutivos brasileiros, mas de pequenas áreas. Há casos em que tiveram que deixar suas casas e ir para centros de acolhimento para não serem mortas após acusadas injustamente de “bruxaria”. Com o assassinato delas (alguns cometidos com a ajuda do poder local), as terras passam para as mãos de outras da comunidade.
Qual das histórias fica para a posteridade: a luta contra a bruxaria e pelo que é bom no mundo ou uma população que se transforma em massa de manobra em uma disputa de terras?
Se não pararmos para pensar antes de compartilhar, retuitar, curtir ou difundir qualquer mensagem de ódio, de qualquer lado do espectro político, estaremos ajudando em processos como esse. E tornando o mundo um lugar pior para se viver.
Daí, qual seria o próximo passo? Acabar com todos com os quais não concordamos?
Não era bom marido?
Mau pagador de impostos?
Trapaceava nas cartas?
Vendia bebidas vencidas ou não lavava os copos com decência?
As porções servidas no bar não eram dignas?
Era avarento, invejoso, preguiçoso?
Lançava-se à luxúria?
Entregava-se à bebida?
Não ia à missa todos os domingos?
Era econômico nos elogios?
Dava “bom dia” de dentes cerrados? – ah, os dentes cerrados…