Reforma agrária em bom português. Uma história premiada

Prêmio da Olimpíada de Português recebido por estudante do Assentamento 8 de Abril, em Jardim Alegre, no interior do Paraná mostra a importância da formação e integração da comunidade

Por Vitor Nuzzi
Da RBA / MST

Não é fácil chegar ao Assentamento 8 de Abril, em Jardim Alegre, na região norte do Paraná. Ao sair da estrada, o visitante encara quilômetros de um caminho de terra esburacado e sinuoso, que nos dias de chuva, segundo contam, se torna uma passagem quase intransponível – os moradores reivindicam melhorias na estrada e restabelecimento de três linhas de ônibus cortadas pela prefeitura. Imagine para quem pega o ônibus todos os dias para dar aulas. Ou para assistir aulas. Mas a vista do vale ajuda. E, com toda a dificuldade de acesso, a escola é um centro de referência para aquela comunidade, formada por 555 famílias, cada qual no seu lote, com 622 estudantes no total. É também exemplo do desenvolvimento que o local obteve nos dez últimos anos.

Em dezembro, o assentamento ganhou notoriedade porque uma estudante de 15 anos, Valdirene Prestes dos Santos, foi premiada na Olimpíada da Língua Portuguesa, no gênero “memórias literárias”, por um texto sobre a história do assentamento, resultado de um movimento iniciado em abril de 1997 (na data que dá nome à área), com uma longa ocupação na então Fazenda Corumbataí, à beira da BR-466, entre Jardim Alegre e Ivaiporã. Uma briga que chegou a bater às portas do Supremo Tribunal Federal, com uma reclamação do antigo proprietário, e que acabou em 2004, depois da compra da área pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Paranaense da cidade de Ponta Grossa e segunda de quatro irmãos – os demais são meninos –, Valdirene colheu depoimento de sua avó Elena Vieira e relatos de pessoas que participaram das ações para narrar a trajetória da ocupação e do assentamento. Os sustos, os tiros, as alegrias da conquista. Com uma preocupação de dar forma mais literária ao texto, descrevendo sensações. A olimpíada teve várias fases, regionais e estadual, até chegar à última, reunindo estudantes de todo o país.

“A história é muito presente na vida dos alunos”, diz a professora Flávia Figueiredo de Paula Casa Grande, que orientou Valdirene em sua redação e a acompanhou na entrega do prêmio, em Brasília. “Qualquer criança sabe, alguns mais, outros menos.” Há uma preocupação geral no sentido de não se esquecer como aquela terra foi obtida. “Tem aluno que nasceu em barraco de lona. Eles acabam vivenciando o que é ser sem-terra.”

O assentamento 8 de Abril, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocupa uma área extensa, de 14 mil hectares. Corresponde a quase 40% do total de Jardim Alegre, município com 12 mil habitantes, a 380 quilômetros de Curitiba. Depois da compra pelo Incra, em 2004, pondo fim a um longo período de conflitos, começou a ser feita a distribuição de lotes e a ser formatada a organização dos assentados. Uma trajetória que traz muitas lembranças – algumas engraçadas, como a de um avô de uma aluna que, assustado ao ouvir tiros, saiu do banho do jeito que estava. Outras tristes, como a da morte da mãe de um estudante. Tudo remete à terra e ao movimento.

Segredo

“Eu esperava algo melhor, não pensava que seria complicado começar a fazer parte de um momento social”, conta Valdirene, no início de seu texto, cujo título é Um Segredo Revelado. Uma história que também é dela e não aparece nos noticiários, mas que agora seria contada. “Não havia energia elétrica, usávamos vela. Não havia água encanada, buscávamos em um riozinho”, descreve.

Ela também fala sobre a comemoração com a notícia da conquista definitiva da terra: “Pássaros voando sem cessar entre uma quina e outra dos barracos pareciam estar fazendo parte da festa”. No salão de reuniões, os músicos. “Lá fora, os grilos tritinavam e as cigarras cantavam cada vez mais alto, acompanhando nossa alegria!”

No final de 2013, a reinauguração da escola estadual do assentamento, que leva o nome de José Martí, foi motivo de festa e orgulho para a comunidade. Logo na entrada, se destaca um mosaico com frase atribuída ao político e revolucionário cubano: “Só o conhecimento liberta”. A antiga sede ficava em uma casa simples, a quilômetros dali. Em breve, deve começar a funcionar o prédio da Escola Municipal do Campo José Clarismundo Filho (primeiro prefeito de Jardim Alegre), bem ao lado – por enquanto, ela fica nas mesmas instalações da estadual. Do outro lado da rua de terra, há uma Unidade Básica de Saúde (UBS).

“A escola era um barracão”, lembra a professora Carla Orzekovski, coordenadora do setor de mulheres no assentamento e no MST do Paraná, lembrando dos tempos iniciais – quando, conta, as pessoas cavavam buracos no chão para escapar dos tiros. “Era uma borracharia que tinha na fazenda”, relata, feliz com a “formosura” da Escola Estadual do Campo José Martí, toda nova, com suas 17 salas e um entra-e-sai de jovens. “Professor é formador de consciência”, diz Carla, catarinense de Cantagalo que fez Magistério com apoio do MST e preserva a história do 8 de Abril, área antes ocupada extensivamente por gado. “A gente não queria boi, queria terra”, resume.

Futuro

Em uma dessas salas estuda Valdirene, que passa uma hora dentro do ônibus no percurso do lote até a escola. Alguns alunos levam duas horas, conta a menina, que tem três irmãos: Gustavo, 17 anos, Mateus, 13, e Marcos, 10. Gosta de ler, especialmente crônicas – e cita uma biografia da escritora Patrícia Galvão, a Pagu, entre um dos livros que mais gostou. Também escreve poesias, gosta de compor e tocar violão. À tarde, de volta das aulas, ajuda a família a cuidar da casa e do lote, onde mora com irmãos, pais (Gustavo e Irene) e avós maternos (Elena e Vanil).

Ela é daquelas alunas atentas na sala de aula – e também se cobra muito em relação ao seu aprendizado. Vai bem em Português e gosta “bastante” de Artes. Segundo ela, em Ciências “este ano está meio complicado”.

Há cinco anos na região, a professora Flávia vê na presença dos moradores do assentamento um diferencial importante em relação a escolas em áreas urbanas, onde também deu aula. “Os pais participam. Tudo o que envolve a comunidade a escola está no meio. Sempre que tem alguma coisa, as pessoas se envolvem”, diz.

Na cidade, ela diz ter pegado “turmas bem complicadas”, com problemas de disciplina, uso de drogas e falta de participação das famílias. “Chamava a família, ninguém vinha para conversar sobre o comportamento do aluno. Você podia chamar o ano inteiro, o pai e a mãe não apareciam. Passava mais tempo lidando com questões de disciplina.” Ali no assentamento, naturalmente, também existem problemas. Mas Flávia diz que o comportamento dos alunos é mais tranquilo. “Eles são muito críticos, desde pequenos.”

Os vencedores da Olimpíada ganharam medalhas e notebooks – um livro reuniu os textos. As escolas receberam computadores, que no caso do Assentamento 8 de Abril começaram a ser instalados no mês passado, na biblioteca da escola, pertinho da futura agrofloresta e da quadra.

“Preocupada com o estudo e com o futuro”, como diz sua professora, Valdirene pensa em cursar Direito. “Para entender melhor o mundo”, explica. “Por que tá terrível, né?”, completa, sorrindo. Mas antes pretende cursar Psicologia, para tentar entender as pessoas. “Quero saber lidar com elas.” A ideia também é se preparar para quando tiver filhos. E o que a deixa brava? “Quando quero fazer alguma coisa e não consigo”, diz a menina.

Produção com organização

“A gente acorda no clarear do dia e vai atrás do leite”, diz Cleide Teixeira Lopes ao descrever o início de sua rotina diária no lote onde mora com Nereu. Ali, eles cuidam de 34 cabeças de gado, produzem milho, abóbora, moranga, alface, almeirão, chuchu, mandioca, “todo tipo de fruta”. Uma parte da produção vai para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, para distribuição em escolas, hospitais e creches, entre outros locais. O que sobra é vendido no comércio da região. Eles mesmos fazem a ração das vacas, usando mandioca, cana e milho.

Cleide e Nereu são catarinenses – ela de Concórdia, ele de Itá. O filho, Carlos Alberto, de 14 anos, vai para a escola, onde também treina vôlei, e ajuda no serviço. São mais de seis quilômetros do lote até a José Martí. “Eu posso dizer que aqui sou feliz”, afirma Cleide. “O que a gente planta, dá.”

O leite é o forte da economia do 8 de Abril, conta Valdemar Batista da Silva, o Nego, da coordenação do assentamento, há 15 anos no local e ele mesmo um filho de assentado. “É o que dá a renda mensal. Dá para dizer que 90% do assentamento estão envolvidos na atividade do leite.” Apenas a Cooperativa de Comercialização Camponesa Vale do Ivaí (Cocavi) pega em torno de 10 mil litros por dia. Dos 27 sócios iniciais, a cooperativa tem agora 250, diz o seu presidente, Digerson Santos da Silva.

Outra cooperativa, em Arapongas, também no norte do estado, processa o produto, em forma de bebida láctea, iogurte e queijo. É a Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), criada em 1997 e que há pouco mais de dois anos inaugurou a sua agroindústria, com a presença da presidenta Dilma Rousseff (PT) e do governador Beto Richa (PSDB). A Copran fica no Assentamento Dorcelina Folador, homenagem a uma ex-prefeita de Mundo Novo (MS) e líder sem-terra, assassinada a tiros em 1999.

Só a produção mensal de leite no Assentamento 8 de Abril supera 1 milhão de litros por mês. Na recente safra de soja, plantada entre outubro e novembro e colhida agora, foram 112 mil sacas (de 60 quilos cada). O milho já começou a ser colhido, e a previsão é atingir 190 mil sacas. Também se estima a venda de 2.500 cabeças de gado para frigoríficos e compradores autônomos.

Contando tudo, entre compras e vendas, Nego calcula que o assentamento movimente R$ 1,5 milhão por mês. “Sem contar quanto emprego cria”, acrescenta. Ele acredita que a produção irá se concentrar mais no leite. “O pequeno agricultor está olhando que a atividade (agrícola) é um plantio de risco. Tem veneno, custo de frete. A tendência é ir cada vez aumentando mais o leite.”

O Assentamento 8 de Abril é dividido em 11 brigadas, com 50 famílias cada. Periodicamente, todas se reúnem para discutir questões como produção e escola. A professora Carla Orzekovski ressalta a importância da organização para o funcionamento do local no dia a dia. “Se não fosse organizada da forma que foi e é, jamais seria assim.”

Valdirene colheu depoimentos da avó Elena e de pessoas que participaram das ações para narrar a trajetória do assentamento. Foto: OLGA LEIRIA

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