Perdi a conta das vezes em que – quando morava no Campo Limpo, periferia de São Paulo – fui obrigado a descer do ônibus ou parar na rua e a, humilhantemente, beijar o muro junto com outros rapazes “suspeitos” em batidas policiais. Um dia, um soldado, de pele mais negra que muitos dos meninos presentes, gritou no ouvidos de um deles um sonoro “seu negrinho sujo”, seguido de um elogio à sua progenitora.
Nunca ouvi um policial dizer “seu branquelo asqueroso” ou “seu branquinho fedorento”. Devem dizer, claro, mas nunca ouvi.
Na época, essa cena não fazia o menor sentido para mim.
Hoje, faz todo o sentido do mundo.
Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia.
Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos.
Mas preferimos defender modelos forjados para manter as coisas como estão, modelos que apontam de antemão quem é perigoso e quem não é.
E a polícia não é a única responsável por manter a ordem do povo.
O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia, garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia.
Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível um grupo se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.
Recebi, recentemente, um link de um debate acalorado em rede social. Pelo que pude perceber, na opinião dos participantes, este blog é um dos espaços que mais incita o ódio na internet hoje. A razão: ele inventa que há, no Brasil, racismo, machismo, xenofobia, homofobia, transfobia e preconceitos sociais. Segundo eles, negros, indígenas, mulheres, gays, lésbicas, transexuais, imigrantes e pobres em geral têm os mesmos direitos efetivados que homens brancos, héteros e ricos. Ou seja, tudo está em paz. A culpa é da esquerda que diz que não está.
O que me lembra outra história dos tempos do Campo Limpo. Há uns 15 anos, ajudei um rapaz que havia sido espancado por ladrões na rua. Dei carona a ele, que sangrava muito. Após deixá-lo em uma delegacia, toquei em frente – para ser parado alguns quilômetros depois por três carros de polícia. Com as mãos para cima, repeti a história – à exaustão – reafirmando que aquele sangue na porta não era de nenhuma desova de corpo. Até que chegou a notícia de que a minha versão procedia.
Até aí, tudo bem. O pitoresco foi a bronca que levei do comandante da operação: “essa é para você aprender que dar ajuda pra gente desconhecida pode ser perigoso”.
Querido Leonardo, compartilho de suas reflexões e acredito que estamos num processo de purificação da nossa essência cultural. Não dá mais continuarmos na ilusão de um mundo de faz de conta que nos atrofia a mente, o corpo e o espírito. Oxalá que retomemos a memória de nossos ossos para nos purificar desintoxicar dessa falácia que nós sustentamos até então como normalidade, ou melhor, uma normalidade enfermiça degenerativa. Espero ter sabedoria para continuar firme nos propósitos de clamar aos quatro cantos que aqui e agora podemos mudar e recomeçar um caminho diferente daquele que nos foi oferecido como real. Axé.
Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia