Líder político e ativista Ailton Krenak critica modelo de desenvolvimento apoiado em extração abusiva de recursos naturais
Por Dandara Tinoco, O Globo
A face que ficou conhecida pintada com tinta preta de jenipapo em protesto durante a Assembleia Constituinte, em 1987, carrega as marcas das três décadas de militância por direitos indígenas, mas a eloquência do discurso continua a mesma:
— Vamos confirmar nossa vocação para um país extrativista? Estamos no século XXI e continuamos lotando navios e mandando para fora — critica o líder político indígena Ailton Krenak, afirmando que o país tem associado seu crescimento econômico a um modelo de desenvolvimento que esgota recursos naturais.
A proteção de tais recursos, e não interesses políticos e econômicos, motiva a incessante briga pela demarcação de territórios indígenas, assegura:
— Quando os índios insistem nessa demarcação, estão insistindo em preservar áreas naturais para gerações futuras — defende.
A história do líder político, nascido na baía do Rio Doce, se entrelaça com a de organizações como a União das Nações Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta. Aos 61 anos, Krenak tem agora entrevistas e depoimentos reunidos em livro. O volume, da série “Encontros”, da Azougue Editorial, será lançado hoje, às 18h, no Parque Lage, Zona Sul do Rio.
Os krenaks foram expulsos de seu território e muitos ficaram sem saber as suas origens. Como foi a redescoberta desse povo?
Esse caso reflete uma realidade histórica do Brasil inteiro. Os tupinambás, que viviam no litoral, foram considerados extintos na virada do século XIX. Mas, na década de 90, houve um grande ressurgimento dessa população em Olivença, na Bahia. Eles reivindicavam sua autonomia, seus direitos territoriais, e isso causou uma verdadeira indignação nos políticos em geral. No caso dos krenaks, não foi muito diferente. Quando Dom João VI chegou ao Brasil com a família real, foi estimulado pelos colonos a editar uma declaração de guerra contra os botocudos, nossos antepassados. Houve política de extermínio contra o povo indígena de Norte a Sul. A ocupação do Brasil é feita em cima das terras indígenas, com o argumento recorrente de que os índios não promovem o progresso dessas regiões e que eles precisam ceder seus territórios para o progresso. Essa é uma visão que está no núcleo da ideia do Brasil, da ordem e do progresso.
O senhor começou a militar na década de 1980. Qual a maior conquista dos povos indígenas de lá para cá?
O grande momento foi a Constituição de 1988. Os povos indígenas conseguiram cravar, no texto, um capítulo que fala dos direitos dos índios e, pela primeira vez, a Constituição brasileira afirmou a presença do povo indígena como uma possibilidade perene. Na década de 1990, diante do risco que se abateu sobre os direitos dos povos indígenas, fiz uma profecia dizendo que, quando não houver mais lugar para os índios na Terra, não haverá lugar para mais ninguém. A crise climática que o planeta vive hoje é um atestado disso.
E o pior momento de lá para cá?
Para os indígenas, acho que o pior momento é agora. Eu me pergunto se vamos transformar o Brasil num garimpo. Vamos confirmar nossa vocação para um país extrativista? Estamos no século XXI e continuamos lotando navios e mandando para fora. Diante de uma crise, a única esperança que nossos administradores enxergam é vender o país em troca de uma melhor posição no ranking das economias mundiais.
Como se situa, neste momento, a PEC 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a aprovação de demarcação de terras ocupadas por indígenas?
A PEC 215 é uma caricatura do momento político que o Congresso está vivendo. Junto com ela, há um elenco de umas 90 propostas de emenda à Constituição que dissertam sobre o mesmo tema: acabar com os direitos sociais. As pessoas não entendem a demanda que os índios têm pela demarcação de suas terras, acham que os índios têm uma demanda econômica, política, mas não é. Quando os índios insistem na demarcação dos seus territórios, estão insistindo em preservar áreas naturais para gerações futuras. Não só para os índios, mas para todas as pessoas, que vão continuar tendo água, floresta e rios.
Relatório recente da ONG Global Witness mostrou que cerca de 40% dos ambientalistas assassinados no mundo são de origem indígena.
Os chamados povos indígenas guardam os últimos redutos de florestas, de água, de recursos naturais. Hoje, é como se estivéssemos experimentando um novo ciclo de renovação das economias globais, que está sendo feito na forma do saque. Diante desse saque, os primeiros que morrem são os guardiões da natureza: povos indígenas, seja na Ásia, na Oceania ou nas Américas.
Com frequência, discute-se a existência de uma identidade indígena. É possível e desejável a construção dessa identidade, uma vez que o Brasil tem mais de 300 etnias?
Os portugueses chamaram as pessoas que encontraram aqui de “índios” porque pensavam que estavam indo para a Índia. Mas não existem índios. Esses povos têm designação própria. Os krenaks se chamam “burun”, que significa “seres humanos”. O povo xavante é “a’uwe uptabi”, que tem significado parecido. Todos esses povos se autodesignam “seres humanos”. Quando penso na possibilidade de diálogo e de respeito à demanda dessas populações, não penso num punhado de gente querendo a mesma coisa. Penso numa imensa pluralidade, em estágios diferentes de relação com o mercado, com a tecnologia, com a língua portuguesa. Essa é uma variedade que, se fosse percebida em sua potência, poderia contribuir muito para sermos uma sociedade mais rica.
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Imagem: O líder indígena Ailton Krenak no Parque Lage, onde livro com entrevistas e depoimentos será lançado – Guito Moreto / Agência O Globo