Sete, 1º de maio e soberania nacional, por Antonio Claret Fernandes*

A Sete de Setembro é uma Torre de Babel! Mas Sofia gosta daquela lufa-lufa, quando a pé e, ao menos pra ela, passagem obrigatória da Secretaria do MAB à casa de sua amiga, à margem do Xingu. A confusão a diverte por um lado e, por outro, instiga seu pensamento. Então se a pressa não é muita, costuma parar e ficar, ali, como naquela manhã, reparando uma coisa e outra.

São oito horas – Sofia não lembra o dia -, mas, pelo calor escaldante e o sol tão claro, dir-se-ia meio dia. O chão molhado da chuva à noite aumenta o mormaço. Formam-se poças de água nos buracos do canto da rua. Mas nem se comparam à situação lastimável nas proximidades da UEPA, acesso ao Jatobá, e em tantas outras partes da cidade. A implantação prepotente de Belo Monte sem intervenções estruturais prévias e planejadas em Altamira e região é um equívoco imperdoável cujo nó só poderá ser desatado pela unidade das forças populares.

Um cachorro, de costelas à mostra, toma água de barro, após remexer e derrubar uma sacola de lixo à procura de algo que lhe mate a fome, mas sem sucesso, pois os urubus acordam muito cedo e, no seu apetite, comem tudo, vorazmente, puxando de cá e de lá, e brigando, em gemidos.

Numa olhadela ao lado, Sofia avista uns seus conhecidos, atingidos por Belo Monte. O sorriso lhes sai fácil e sincero. Vão enfrentar fila no Banco, agoniados; porém, mesmo assim, trocam meia dúzia de palavras. Comentam da luta de dia 30 de abril, um ‘trancaço’ na sede da Norte Energia proibindo a entrada dos funcionários. Participam famílias dos Bairros Boa Esperança, Colina, São Domingos, Recanto Sudam e da Avenida Ernesto Acioly. Excluídos do cadastro da empresa, com as mobilizações de Março conquistam promessa de terra e, agora, exigem reassentamento. Denunciam, também, milícia contratada pela empresa para impedir novas construções nas áreas alagadiças.

O Capital, nas suas variadas expressões, prefere gastar rios de dinheiro com relatórios que neguem o direito ao atingido e usar a força bruta a por algum recurso para garantir-lhe o que lhe é devido. A empresa faz assim com os moradores abaixo do muro de Belo Monte, com as famílias de Assurini, com os carroceiros e tantos outros. Quanto menor o número de atingidos, mais lucrativo se torna o negócio. No fim das contas, o Capital desenvolvimentista-neoliberal tem muitas outras barragens pra fazer na Amazônia. Mas feliz é quem, entrando para a organização popular, rejeita ser‘cão’ abandonado, jogado daqui pra lá, entre a Norte Energia, os governos estadual e federal e a Prefeitura, fartos de argumentos falaciosos. Na organização, a gente é mais gente!

A Funerária, com o sugestivo nome Jardim das Flores, está cheia. Certamente vai muito bem! A Norte Energia faz de tudo para camuflar o número real dos trabalhadores vitimados em Belo Monte, enviando os corpos para fora, dispersando-os pelo Brasil, mas, mesmo assim, sobra uma boa fatia desse ‘negócio’ para o mercado local.

Em seu trabalho de conclusão de Curso, uma parceria entre MAB e Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estuda o Conceito de Energia no Capitalismo Contemporâneo, José Geraldo Vidal, padre e missionário no Xingu, aborda o ‘escondimento’ dos acidentes e das mortes de operários como tática sinistra da empresa.

O mercado da Morte em Altamira realmente está em alta. Ali se morre muito facilmente, de qualquer coisa, e de tudo. À antiga pistolagem na região – que ainda subsiste -,se junta a violência, sofisticada ou não, resultado da fina flor do capital, essa máquina de moer gente. Quantos doentes não aguentam esperar a vaga no hospital, aonde desaguam os pacientes de Altamira e cidades vizinhas, todas inchadas pela barragem! Quantos tombam semanalmente pelo poder da bala! Sempre os mais empobrecidos são os mais afetados.

Esse clima de insegurança tem um desdobramento no mínimo curioso: a multiplicação de igrejas! Se as questões estruturais básicas não são resolvidas, se aumenta o sentimento de abandono no povo, cria-se o campo fértil para o anti-milagre. As ofertas estão por todo lado, e crescem da manhã para a tarde. A mesma classe dominante que ‘organiza’ o progresso e abre feridas profundas no seio do povo, arranja, também, o ópio, e transfere, assim, a responsabilidade pra deus.

São Pedro ainda está louco com o negócio da água, responsabilizado pela seca no Cantareira. Os deuses, também, passam seus maus pedaços por causa dos apelativos de todo tipo. Os oportunistas, claro, se aproveitam da boa fé do povo.

Há dias em que, na Sete de Setembro, os templos estão lotados. Naquela manhã, porém, talvez por ser ainda tão cedo, o que se veem são gatos pingados em meio a muitas cadeiras completamente vazias e um homem, de terno, se esgoelando ao microfone.

A placa à entrada da igreja apresenta a programação da semana: 2ª feira, prosperidade; 3ª feira, causas impossíveis; 4ª feira, culto da família; 5ª feira, espírito santo; 6ª feira, cura e libertação; sábado e domingo, culto. Logo adiante, nova igreja, com um cardápio diferenciado e, ainda, mais palatável: 3ª feira, corrente dos 70 apóstolos; 4ª feira, reunião dos filhos de deus; 5ª feira, terapia do amor; 6ª feira, quebra de maldição; sábado, causas impossíveis; domingo, terapia do amor.

Entre as invocações de quebra de maldição, Sofia tem vontade de incluir as manobras por trás da corrupção na Petrobrás, com seu mega-interesse imperialista, mas desiste. Ela bota mais fé na consciência emancipada que nos mitos.

Na Sete, tudo se mistura! Uma Agência de Viagem anuncia que ‘Você sonha com o mundo e a gente leva você’. Alguns quarteirões depois, sobe imponente prédio recém-construído de cinco andares. Um proprietário que embarca no aquecimento temporário da economia, mas agora sobram placas de ‘aluga-se’ e ‘vende-se’. Já é quase ressaca!Na esquina, o som lá nas alturas disputa os passantes, querendo transformá-los em fregueses e consumidores, cada vez mais raros. Na loja chique, com uma família de manequins – duas crianças bizarras -, as funcionárias estão de braço cruzado. Sofia faz que compra, reparando a loja, mas, no fundo, quer apenas desfrutar daquele sopro gelado, com ar condicionado, em contraste com o calor escaldante da rua e, ali, naquele oásis, lembra-se do alerta de Lênin, e o acha apropriado: Não é problema sonhar, mas com os pés no chão.

Dois indígenas perambulam pela rua no seu ritmo peculiar. São inconfundíveis, mesmo jogados na cidade, de tênis branco e camisa social. Alguns ficam na condição de mendicantes, com agravamento do preconceito contra eles. Esse processo é resultado da decisão da Norte Energia e do Governo de quebrar-lhes a resistência a Belo Monte pela tática do espelho, atraindo-os, franqueando-lhes crédito nas lojas, e, nesse contexto, no que pese toda a propaganda e programas, Belo Monte contribui para a extinção desses povos.

Sofia corta a Sete de Setembro de uma ponta a outra e, segue, pensando no 1º de maio. O país inteiro se movimenta e vive um momento ímpar na sua história. Redescobre-se o valor da rua. A ultradireita e forças de tendência à esquerda marcam espaços diferenciados na São Paulo, o pivô do acirramento de classe. Nesse Estado, os professores seguem em greve. Em Curitiba, a repressão é forte contra essa mesma Categoria, respingando ódio e violência até no cinegrafistada Band e no Deputado, atacados por Pitibull da PM, mostrando o assovio do que a burguesia, unida ao imperialismo, quer para o Brasil.

Mas o povo organizado, aglutinado às forças verdadeiramente progressistas desse país, pode fazer da crise um passo adiante, pressionando os governos, criando a oportunidade de sua emancipação e soberania.

*Antônio Claret Fernandes é militante do MAB e contribuiu como missionário na Prelazia do Xingu entre 2011 e 2014. É colaborador de Combate Racismo Ambiental. 

Foto: Antonio Cruz/ABr

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