Há 30 anos, país vivia a ‘semana sangrenta’ da era Pinochet, com a morte de outros dois estudantes; oficiais punidos pelo crime estão presos até hoje
Victor Farinelli | Santiago – Opera Mundi
As crianças estavam entrando na escola naquela manhã de quinta-feira. Era o dia 28 de março de 1985, e o sociólogo José Manuel Parada deixava sua filha Javiera na escola quando foi interceptado por dois homens armados que saltaram de um carro sem número de chapa. A menina, que entrava no colégio, começou a gritar e chorar, mas foi agarrada pelo braço por um dos pais que correram para dentro do estabelecimento, com medo de que se produzisse um tiroteio. O acadêmico foi jogado dentro do carro, que se perdeu pelas ruas de Santiago.
Em outros dois pontos da cidade ocorriam cenas parecidas. Na sede da AGECH (Associação Gremial dos Educadores do Chile), dezenas de professores foram detidos pelos Carabineros (polícia militarizada), mas um deles, Manuel Guerrero, desaparece enquanto os demais tentam resistir. Em outro lugar, o artista plástico e também membro da AGECH, Santiago Nattino, é sequestrado minutos depois sair de casa.
Enquanto os parentes e colegas dos três membros da AGECH buscavam seus desaparecidos, na tarde de 29 de março, um confuso incidente colocou um grupo de estudantes em confronto com os Carabineros, na favela de Las Rejas, zona leste da capital. Vários jovens são presos pela polícia, mas dois deles desaparecem durante a detenção, os irmãos Eduardo e Rafael Vergara Toledo, o segundo deles era líder estudantil secundarista.
Somente no final de semana que a população local descobriria o resultado macabro das desaparições. Um grupo de moradores da periferia encontra três cabeças jogadas numa vala comum, perto da estrada que leva em direção ao Aeroporto de Pudahuel. A polícia civil tenta isolar a zona e abafar a descoberta, mas entidades de defesa dos direitos humanos se fazem presentes, já imaginando — o que viria a ser confirmado posteriormente — que as cabeças encontradas seriam as dos professores Parada, Guerrero e Nattino.
1ª condenação a militares: presos até hoje
O Caso dos Degolados golpeava uma ditadura que, por um lado, enfrentava um desequilíbrio econômico que causava revolta nas regiões mais pobres, e, por outro, já não conseguia mais esconder seus crimes. Tanto assim que nem mesmo a Justiça conseguiu mais fazer vista grossa às violações contra os direitos humanos.
Quatro meses depois de encontrados os corpos, a Corte Suprema do Chile anunciou a primeira sentença condenatória a militares no país durante a ditadura, contra dois coronéis dos Carabineros: Guillermo González e Florentino Fuentes, e também do comandante Alejandro Sáez, além de outros quatro oficiais menores. Atualmente, os sete continuam cumprindo pena na penitenciária de Punta Peuco – Sáez, porém, têm o benefício de saídas dominicais vespertinas.
Além disso, o caso também abalou a Junta Militar de governo, por se tratar de um crime realizado pela polícia e não por agentes da repressão. A renúncia de César Mendoza, o general diretor dos Carabineros que apoiou o golpe de Estado em 1973, e que ocupava desde então um cargo na Junta Militar de governo, fragilizou ainda mais o regime, levando-o a uma crise institucional que, junto com a pressão internacional, teria colaborado para que o ditador Augusto Pinochet aceitasse, posteriormente, a realização do plebiscito, que, em 1988, colocaria fim a seu governo.
Legado da ditadura
No sábado (28/03), diferentes organizações de direitos humanos realizaram homenagens aos professores assassinados, no aniversário do dia em que foram sequestrados. Na ocasião, os filhos dos três professores, a engenheira Patricia Nattino, o filósofo José Manuel Guerrero e a atriz Javiera Parada traziam cartazes em favor do movimento Marca AC.
Javiera Parada é uma das porta-vozes do movimento que, desde 2013, luta pela instalação de uma Assembleia Constituinte que produza uma nova carta magna para o Chile, substituindo a atual, que foi imposta pela ditadura, em 1980. “Esse é o principal legado da ditadura, que nos castiga diariamente, e tem sido desde sempre o maior inimigo da democracia no país. Enquanto não for derrubado, a transição para a democracia não estará completa”, afirmou a atriz durante o evento.
Dia do Jovem Combatente
Dias depois da descoberta das cabeças degoladas dos professores Parada, Guerrero e Nattino, a imprensa estrangeira desvendava outro escândalo, ao encontrar, através de uma denúncia anônima, os corpos mutilados dos irmãos Vergara Toledo. Os dois casos quase simultâneos marcaram o que foi conhecido no país como uma das mais sangrentas semanas da ditadura de Pinochet (1973-1990), e despertaram uma nova revolta em diversos bairros pobres de Santiago, lideradas por estudantes secundaristas.
A primeira Comissão da Verdade realizada no Chile (Informe Rettig, em 1990) estabeleceu que embora os estudantes tenham sido presos pela polícia, os responsáveis pelo assassinato foram quatro agentes da CNI (Central Nacional de Informação, órgão da repressão da época): Marcelo Muñoz, Francisco Toledo, Jorge Marín e Alex Ambler. Entretanto, somente em 2008, o caso teria sua primeira sentença por homicídio, e condenação a 30 anos de prisão para os quatro acusados, ditada pela Corte de Apelações de Santiago. Os réus conseguiram, no entanto, liminar para, em prisão domiciliar, aguardar o novo julgamento na Corte Suprema de Justiça.
O assassinato dos irmãos Vergara Toledo institucionalizaria no país uma celebração informal. Todas as noites de 29 de março, jovens das favelas de Santiago se reúnem para armar barricadas e enfrentar a polícia, no que se convencionou chamar o Dia do Jovem Combatente.
Neste último domingo (29/03), se celebrou o 30º Dia do Jovem Combatente, e os enfrentamentos ocorreram em favelas de diferentes cidades. Em Santiago, um carabinero (policial militar) terminou sendo morto por um disparo em seu pescoço. Outros quatro policiais terminaram feridos, além de sete adolescentes, entre os 23 que foram detidos.
–
Foto: José Manuel Parada, Manuel Guerrero e Santiago Nattino: caso dos degolados marcou uma das semanas mais sangrentas da era Pinochet