Essa é a segunda parte de uma série de quatro artigos sobre a Zona Portuária do Rio de Janeiro.
Por Eduarda Araujo, em RioOnWatch
Como vimos no primeiro artigo desta série, a Zona Portuária foi continuamente moldada por projetos urbanísticos que construíam uma cidade fundamentada na exploração do trabalho negro, e que ao mesmo tempo reafirmavam o não-pertencimento dessa população às suas áreas privilegiadas através das práticas governamentais de remoção e extermínio, presentes até os dias de hoje. A Zona Portuária e a sua população negra, alvo tanto de remoções (quando classificados como “invasores”) quanto de extermínio (quando classificados como “criminosos”, “traficantes”, etc.) podem nos ajudar a entender essa cidade em que a população negra é marginalizada e exterminada, mas que tem certos elementos de sua cultura utilizados como fontes de atração da indústria turística. Afinal de contas, como explicar uma região onde o circuito da Herança Africana se tornou um dos maiores atrativos turísticos, mas onde, ao mesmo tempo, as ocupações urbanas, com uma maioria de habitantes negros e negras, foram removidas ou despejadas?
Na verdade, por décadas depois das tentativas de embranquecimento que ocorreram no fim do século 19 e no início do século 20, o discurso adotado pela Prefeitura e seus planejadores urbanos ainda procurava majoritariamente enfatizar ou valorizar as áreas da região mais associadas com as raízes europeias e com o catolicismo. Mesmo depois do reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal como patrimônio material do Estado do Rio de Janeiro em 1987, o Morro da Conceição (do qual a Pedra do Sal faz parte) foi continuamente retratado como um pequeno Portugal no Rio de Janeiro, cujos moradores “legítimos” e “desejáveis” eram descendentes de portugueses ou espanhóis. Essas definições excluíam moradores de origem nordestina, e/ou aqueles que haviam ocupado espaços abandonados, que eram por sua vez vistos tanto por determinados moradores do local quanto por planejadores urbanos como “indesejáveis” e “descartáveis”. De acordo com essa história eurocêntrica da região, as casas de cômodo e cortiços eram formas de habitar insalubres, e sua população “poluía” um espaço “branco” e “de respeito” com o tráfico de drogas, usualmente associado à favela da Providência.
Os valores ou qualidades associados às diversas áreas da Zona Portuária fazem parte, portanto, de um imaginário que, de acordo com essas classificações hierárquicas de raça, etnia, religião e classe definem o que pode ser modificado, excluído ou soterrado, e aquilo que deve ser enfatizado e celebrado. Essa ordem hierárquica fica bastante clara mais especificamente em 2001, no Plano Porto do Rio, por exemplo, através de três linhas de intervenção que foram estabelecidas de acordo com as “necessidades” e possibilidades associadas a cada área da região. A primeira linha de intervenção previa a atração da classe média e o incentivo ao turismo nos morros da Conceição, do Livramento e do Pinto, já que essas áreas eram associadas com um “alto valor histórico, paisagístico e cultural” desde as patrimonializações feitas no projeto SAGAS (acrônimo para os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo), em 1988.
As áreas não inclusas nesta definição não tinham, portanto, o mesmo valor histórico, paisagístico e cultural, e a elas eram reservadas outras políticas públicas, como as da segunda linha de intervenção. Essas reservavam para a favela da Providência e para o Caju as políticas como as do programa Favela-Bairro que, iniciadas em 1994, promoviam uma série de obras para supostamente “integrar” a favela ao resto da cidade. De acordo com essas políticas, portanto, as áreas não associadas ao passado e à população branca de classe média devem ser adaptadas ao padrão da cidade “formal” -homogeneizadas- através principalmente da entrada das empresas prestadoras de serviços (como os de água e luz) que já existiam informalmente nas favelas.
Finalmente, a terceira linha de intervenção indicava a exploração imobiliária das áreas dos armazéns, que, numa área com um dos menores IDHs da cidade, tinham como público-alvo funcionários públicos que ganhassem em torno de 10 salários mínimos, ou, em outro projeto, famílias com renda superior a três salários mínimos.
É importante lembrarmos que essas tentativas de embranquecer o espaço e a memória nunca foram aceitas passivamente por aqueles “soterrados” a cada projeto urbanístico idealizado para a região. A onda de expulsão de ocupantes de edifícios privados ou públicos foi desafiada através da reivindicação da memória negra e do pertencimento dos ocupantes à região através dessa história. Isso fica evidente, por exemplo, no uso de nomes referentes à história negra de luta em ocupações urbanas (como as ocupações Zumbi dos Palmares, Machado de Assis, Mariana Crioula, Chiquinha Gonzaga e Quilombo das Guerreiras).
Projetos de homogeneização da cidade encontraram resistência também quando, no final de 2005, famílias que enfrentavam uma onda de despejos e realocações ao longo de 2005 por parte da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VoT) pleitearam o seu reconhecimento como grupo étnico-racial da Comunidade de Remanescentes de Quilombo da Pedra do Sal. Desde então, a sua luta por reconhecimento e por permanência ativa na região se tornou um símbolo importante para recriar uma “cidade negra”, como Maurício Hora, membro do Quilombo da Pedra do Sal, deixa claro: “Quem é que construiu isso tudo? Quem trabalhava no porto? Onde era o porto onde chegavam os escravos? Onde é que esses escravos eram vendidos? Onde é que eles eram enterrados? Vamos dizer então que nenhum negro tenha morado no Morro da Conceição, que nenhum negro jamais viveu naqueles sobrados, que nenhum lojista tenha tido nenhum negro, que nenhum negro tenha trabalhado na Pedra do Sal?”
Foi apenas depois de reivindicações como essa, de reaver a cidade para aqueles que com as próprias mãos a construíram e constroem, que o Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana foi instaurado em 2011, incluindo o Cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos, o Centro Cultural José Bonifácio, o Largo do Depósito, o Jardim Suspenso do Valongo, e a Pedra do Sal. O documento que foi em parte responsável pela definição dos locais a ser incluídos no circuito (a “Carta de Recomendações do Valongo”) cita a tentativa histórica de “apagar traços do tráfico negreiro” na Zona Portuária, mas falha em fazer a conexão essencial entre este passado e os dias de hoje, em que moradores negros ainda são sistematicamente removidos da região em torno ao circuito. Sem essa conexão, é difícil fazer com que essa memória, justamente trazida de volta à tona, seja utilizada para fazer as mudanças necessárias para o alcance da justiça racial.
Como afirmado na “Carta de Recomendações do Valongo”, as entidades administradoras do circuito realmente levaram as ações relacionadas ao circuito além da sinalização com placas, principalmente graças às atividades promovidas por diversos grupos e coletivos ligados ao Movimento Negro no Rio de Janeiro. Porém, ainda podemos ver a promoção da desconexão entre a exploração do trabalho negro e o embranquecimento da cidade ontem e hoje no próprio conteúdo dos murais explicativos dentro do container do Porto Maravilha, estacionado bem ao lado do Cais do Valongo. Neles, o passado de trabalho negro forçado que permeia o passado da Pedra do Sal foi supostamente substituído pelo samba e tornou-se o lugar onde “estivadores reuniam-se para cantar e dançar”. A perseguição policial às rodas de samba, às práticas de candomblé associadas à Pedra do Sal, e as próprias condições de trabalho e discriminação associadas à vida dos estivadores não são mencionadas – isto é, no discurso da concessionária, não há espaço para continuidades entre passado e presente.
Estas memórias são mantidas vivas por moradores como Oswaldo Almeida, de 79 anos, morador da Rua Camerino, que relata como as atividades das casas de candomblé e umbanda da região, das quais sua mãe participava, tinham de ser mantidas em segredo. Segundo ele, os terreiros tinham de ser “todos fechados, tinha que ser escondido. Ninguém podia fazer barulho, porque senão a polícia vinha prender”. Considerando então esta história alternativa, podemos imaginar que o canto e a dança dos estivadores em locais como a Pedra do Sal (seja no século 19 ou no século 20, como lembra Oswaldo), enfrentava uma repressão diária da polícia e estabelecia um papel importante na resistência cultural negra. Sem espaço para estas memórias de luta e repressão no discurso oficial do Circuito da Herança Africana, as conexões que poderiam ser feitas entre este passado e a atual perseguição policial-militar aos bailes funks nas favelas “pacificadas” da cidade são ignoradas, e a injustiça se repete.
Estas “ausências” podem ser explicadas, em primeiro lugar, pelo fato de que, como os murais no container da Porto Maravilha mais uma vez demonstram, a pesquisa arqueológica e seus resultados são vistos como uma forma de “agregar valor” ao processo de revitalização, que revela “tesouros” da história da região. Fica bem claro, na escolha de linguagem nos murais, que projetos como o Circuito da Herança Africana são vistos como produtos (os “tesouros”) que, na lógica do mercado, podem e devem ser vendidos. Como tais, eles podem ser manipulados para dar legitimidade (para “agregar valor”) ao processo de reformas da Zona Portuária que, afinal, não foi majoritariamente planejado para beneficiar as populações mais pobres. Para elas, como já vimos, são reservados planos de integração desigual à cidade através da militarização do quotidiano que é promovida nas Unidades de Polícia “Pacificadora”. Na prática, o estabelecimento do Circuito da Herança Africana não parece ter a intenção de criar uma sociedade mais justa para negros e negras, exceto pelos momentos em que a população negra se apropria desse espaço para reivindicá-lo, como ocorreu por exemplo na comemoração do Centenário de Abdias do Nascimento, no Cais do Valongo, em março de 2014.
É através do reconhecimento das falhas fundamentais no discurso de memória negra promovido pela parceria público-privada Porto Maravilha que podemos entender, por exemplo, o fato de que um lugar tão importante quanto o Instituto Pretos Novos, no Cemitério dos Pretos Novos, anunciou, no dia 3 de dezembro de 2014, que fecharia suas portas devido à falta de auxílio por parte da administração pública. Apenas depois de tomada a decisão por parte da família que administra o instituto, representantes da Prefeitura na região se manifestaram com promessas de maior assistência.
Um projeto urbanístico que se utiliza da cultura e história negra para “agregar valor” a seus empreendimentos, mas que dá pouca ou nenhuma atenção à luta por igualdade e justiça racial demonstra sua verdadeira função quando estudamos, por exemplo, os condomínios fechados de luxo que em breve serão inaugurados na região, como veremos no terceiro artigo da série. Numa cidade onde os 3 milhões de negros e negras que compõem aproximadamente metade da sua população é relegado às periferias com a menor renda familiar, é fácil imaginar quem serão os habitantes desse tipo de empreendimento. É a apropriação da memória negra para apresentá-la de forma seletiva e despolitizada que permite às instituições responsáveis pelas reformas da Zona Portuária utilizá-la como um produto ou agente de valorização de um espaço idealizado para a população branca de classe média/alta. Se no passado os corpos dos negros eram as mercadorias, hoje, parece ser a sua memória.
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Eduarda Araujo é carioca e estudante da Brown University em Estudos da África e da Diáspora. Ela pesquisa sobre o racismo estrutural e resistência negra nos processos de formação do espaço urbano no Rio de Janeiro.