Por Roldão Arruda, Estadão
Para o procurador da República Marlon Weichert, o sistema interamericano de direitos humanos ficará ameaçado se os responsáveis por crimes como tortura e desaparecimento forçado, apontados no relatório da Comissão da Verdade, não forem punidos. Ele diz que os juízes desconhecem os avanços na internacionalização dos direitos humanos
Depende do Judiciário o cumprimento de uma das principais recomendações feitas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, para que o Estado brasileiro responsabilize os agentes públicos envolvidos com as graves violações de direitos humanos ocorridas na ditadura. Até agora os juízes têm sido bastante refratários à ideia.
De um conjunto de dez denúncias contra esses agentes apresentadas na Justiça pelo Ministério Público Federal desde o início de 2012, sete foram paralisadas. Apenas três seguem ativas.
Os juízes argumentam que os agentes – apontados como autores de crimes como tortura, violência sexual, execução sumária, sequestro e desaparecimento forçado de opositores da ditadura – também foram beneficiados pela Lei da Anistia de 1979. É comum ainda a argumentação de que os crimes prescreveram.
Na avaliação do procurador da República Marlon Weichert, essas decisões são incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte. Ele acredita que as sentenças se devem sobretudo à ignorância sobre a internacionalização dos direitos humanos e ao medo dos juízes de se opor ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2010, validou a anistia para autores de graves violações de direitos humanos.
Na entrevista abaixo, Weichert fala sobre a retomada do debate após a divulgação do relatório da Comissão da Verdade e os desafios que o País tem pela frente. Ele acredita que, no caso de o STF sustentar a posição de que graves violações podem ser anistiadas, todo o sistema interamericano de direitos humanos ficará ameaçado.
Weichert tem se destacado na defesa dos direitos humanos desde que ingressou no Ministério Público Federal, em São Paulo, em 1995. Já foi procurador regional dos direitos do cidadão, participou da intervenção do MPF para que o exame das ossadas encontradas na vala comum do Cemitério de Perus não fosse paralisado e assinou uma ação pioneira solicitando a responsabilização civil do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) no período de 1970 a 1974. Também funcionou como testemunha no processo Gomes Lund, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2010.
Naquele processo, que está no centro dos debates de hoje no Brasil e envolve a questão dos mortos na Guerrilha do Araguaia, o Estado brasileiro foi declarado responsável pelos desaparecimentos forçados e condenado a identificar e punir judicialmente os responsáveis pelos crimes.
A seguir, os principais trechos da entrevista com Weichert:
Como analisa o fato de juízes, especialmente os de primeira instância, terem recusado a maioria das ações proposta pelo MPF para responsabilizar judicialmente os acusados de terem cometido graves violações de direitos humanos na ditadura?
Enquanto o Supremo Tribunal Federal não tomar uma decisão reconhecendo a força obrigatória da sentença da Corte Interamericana no julgamento do caso Gomes Lund, na qual se determinou a responsabilização dos autores das violações, os juízes brasileiros vão continuar com dificuldade de aplicá-la. Eles se sentem temerosos diante da decisão do Supremo no julgamento da ADPF 153 (a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental na qual a Ordem dos Advogados do Brasil pediu a revisão da interpretação da Lei da Anistia).
O assunto vai retornar ao debate no STF.
Sim. Já estão na pauta do Supremo dois processos para definir essa matéria. Um é a ADPF 320, apresentada pelo PSOL; e outro é a reclamação proposta no caso Rubens Paiva.
O ministro Teori Zavascki suspendeu a ação penal contra os cinco militares acusados de terem participado da morte do deputado. Os advogados de defesa disseram que eles foram anistiados.
O ministro deu uma liminar suspendendo o julgamento. Agora terá que remeter o processo para o procurador-geral da República dar o seu parecer; e depois levar a julgamento.
O senhor falou do temor dos juízes diante da decisão do Supremo. Mas não acha que as decisões deles também se devem ao fato de nosso Judiciário ser muito conservador?
Temos aqui a combinação de dois fatores. Existe a questão de um Judiciário conservador à qual você se referiu, que se soma à questão do desconhecimento teórico do direito internacional e de direitos humanos. Esses fatores se retroalimentam.
A que atribui esse desconhecimento?
Essas questões que envolvem o direito internacional público, o relacionamento entre Estados, a necessidade de um diálogo entre o direito internacional e o direito interno são relativamente recentes. O fortalecimento da figura do direito internacional em direitos humanos é dos anos 80 para cá e se deve especialmente à criação de tribunais especiais, como os que julgaram os crimes cometidos na ex-Iugoslávia e o genocídio em Ruanda. Foi onde se retomou, após o fim da guerra-fria, os ideais do Tribunal de Nuremberg (no qual foram julgados os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial). Isso significa que praticamente todos os juízes que estão hoje nos tribunais tiveram uma formação acadêmica na qual não se ouvia falar disso. O assunto era desconhecido.
Falta conhecimento teórico?
Sim. Há uma falta de conhecimento teórico, que alimenta preconceitos. Como acontece em tudo na vida, o preconceito é alimentado pela ignorância. Estou falando de ignorância no sentido de desconhecimento teórico. Em depoimentos de juristas sobre essa matéria, você percebe que não conhecem nada. Ficam repetindo preconceitos sobre a questão da soberania nacional, como se o fato de reconhecer a autoridade de um tribunal internacional afetasse a soberania brasileira. Isso é uma bobagem sem tamanho. A Constituição de 1988 definiu que o Brasil deve fazer parte de tribunais internacionais de direitos humanos. Em outras palavras, aderir a esses tribunais faz parte do nosso pacto constitucional.
E isso significa aceitar a decisão da Corte Interamericana?
A decisão daquela corte seguiu preceitos constitucionais. Não há, portanto, nenhuma ameaça à soberania. O Brasil, soberanamente, decidiu aderir a esses tribunais internacionais. E agora precisa reconhecer a força vinculante das suas decisões. Quem fala de soberania nesses casos confunde tribunal internacional com tribunal estrangeiro – duas coisas completamente diferentes. Felizmente, alguns tribunais começam a quebrar isso. Já temos duas decisões de tribunais regionais federais – no Rio e em São Paulo – que aceitam as iniciativas do Ministério Público para responsabilizar os autores de graves violações de direitos humanos. Há alguns anos isso era impensável.
A que atribui a mudança?
O MPF e outros atores fundamentais nessa área estão insistindo na necessidade de realizarmos esse diálogo entre o direito internacional e o direito interno. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade vai dar mais força a essas iniciativas. Estou otimista. Tenho convicção de que o Supremo vai, ali na frente, fazer esse diálogo.
E se ele não fizer?
O Brasil vai se tornar um pária na comunidade internacional. Vamos colocar em risco todo o sistema interamericano de direitos humanos. Se o Supremo disser, em algum momento, que a decisão da ADPF 153 é a que interessa e que a decisão da Corte Interamericana no caso Gomes Lund não serve para nada, vai rasgar tudo que existe sobre o sistema, com consequências para o futuro. Vai significar que, a partir de agora, qualquer vítima de violações de direitos humanos não poderá recorrer ao sistema interamericano, porque ele não serve pra nada. Diante da importância regional do Brasil como principal articulador do sistema, uma decisão do STF vai repercutir em todos os outros países da região. Seria um desastre impensável no atual estágio das relações internacionais. Não posso acreditar que as cúpulas do Judiciário e do Executivo possam ficar desatentas a isso e agir de um modo que não seja o modo responsável, tanto jurídica quanto politicamente.