Grupos populacionais são tragados pela força econômica do cimento e lutam para se manter vivos nos grandes centros
Por Mauricio Duarte na Revista da Cultura
Mas essa gente aí, hein, como é que faz? O compositor Adoniran Barbosa (1910-1982) fez essa pergunta no samba Despejo na favela, que narra a história da desapropriação de uma comunidade por força de uma “ordem superior”. Ainda hoje, muitos anos depois da indagação do sambista, a especulação imobiliária é um terror com o qual as cidades e seus habitantes precisam conviver constantemente.
Segundo cálculos do Ministério das Cidades, o Brasil tem um déficit de 5 milhões de habitações. De acordo com os especialistas, o número é alarmante e somente a construção de moradias populares já não é suficiente. É necessário barrar o avanço indiscriminado da especulação imobiliária e preservar comunidades tradicionais em seus locais de origem. Somente em São Paulo, a valorização imobiliária passou dos 130% nos últimos cinco anos. No Rio de Janeiro, chegou aos 200%, e as demais grandes cidades do país seguem na mesma toada. Dados do Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que o país tem 6,1 milhões de imóveis vagos. Por isso, chega a parecer ilógico que comunidades sofram pressão para sair de suas regiões e dar lugar ao ávido interesse de empreiteiras. No entanto, essa é a evidência mais elementar de que a política pública de moradias ainda está submetida ao mercado.
Esse fenômeno provoca diferentes mudanças em um espaço. O mais importante é, sem dúvida, a substituição de um grupo por outro. A comunidade que antes vivia naquele local cede espaço a quem agora passa a ter condições de habitar a área e, principalmente, de arcar com os preços após a valorização sofrida pela região. Há outros efeitos, mais colaterais e nem sempre tão notados: a reorganização espacial de indivíduos com determinados estilos de vidas e características culturais; a transformação do ambiente construído com serviços adaptados àquela população, entre outras.
“O mercado imobiliário, desde 2009, está muito dinâmico. A diversificação de fontes de recursos disponíveis para financiar o desenvolvimento urbano e imobiliário, como, por exemplo, a ampliação das fontes de financiamento, permitiu que mais gente adquirisse imóveis, colaborando com este dinamismo. E novas unidades habitacionais, para acontecerem sobre bairros já consolidados, terminam por destruir casas para construir prédios. A consequência que se tem visto na cidade consolidada é a verticalização distribuída pelo município e, como reação a este processo, por parte dos moradores, tem ocorrido a tentativa de preservar bairros através de tombamento dos imóveis, ou da luta pela não modificação dos padrões urbanísticos”, explica Paula Freire Santoro, arquiteta e urbanista, professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP).
O lado assustador da questão é que, com o crescimento sendo feito de forma desordenada e sem uma regulamentação eficiente do poder público, inevitavelmente, as camadas mais pobres são deslocadas, constituindo um tipo de urbanismo excludente. Moradores são expulsos ou obrigados a sair de suas casas devido aos altos custos dos serviços e despesas. Quando vendem suas moradias para uma empreiteira interessada no terreno, muitas vezes, não conseguem adquirir outro imóvel na mesma região por conta dos valores elevados, que são justamente reflexo do trabalho dessas mesmas empreiteiras na região. Assim, o espaço se transforma em um mecanismo de poder. As comunidades estabelecidas em bairros, que vivem seu cotidiano tendo como referência as coisas que estão ali (uma igreja, uma escola, um clube etc.), se diluem ou simplesmente desaparecem.
“O morador não tem condição de enfrentar esse trator que é o interesse imobiliário, fica uma briga de Davi e Golias. Ele perde seu bairro, sua casa, sua referência social. O acúmulo de prédios sem contrapartida urbanística vai acabando com as cidades. Elas vão se perdendo e ficando todas iguais. Os moradores são jogados aos leões. O processo é muito perverso. Por um lado, você tem o investidor imobiliário com toda a infraestrutura, inclusive com equipes treinadas para coagir pessoas a se desfazer de seu imóvel, supostamente por um bom preço”, afirma Lucila Lacreta, arquiteta e urbanista, diretora do Movimento Defenda São Paulo. Para ela, comunidades tradicionais que vivem em torno de um “bem comum” em bairros residenciais estão sendo desfeitas e as cidades estão cada vez mais homogêneas, no sentido de perderem características peculiares.
Segundo Ana Paula, coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), as cidades estão se tornando cada vez mais mercantilizadas. A especulação imobiliária não permite que comunidades tradicionais resistam às suas investidas, tornando-as espaços privados e segregados. “Os efeitos são devastadores, pois acontecem despejos forçados e violentos sem nenhuma saída para as famílias ou ainda são oferecidos ‘cheques-miséria’ com o intuito de indenizar, mas que não pagam o valor real do imóvel e muito menos o valor afetivo. Tem ainda as famílias que vão sendo expulsas de forma silenciosa, que se rendem ao alto custo de vida e aos elevados preços dos aluguéis”, aponta.
GENTRIFICAÇÃO
A palavra soa estranha e seu uso, que era positivo e de revitalização em meados dos anos 1980, se tornou um pesadelo para comunidades que tentam manter suas raízes em meio à avalanche das grandes construções. Gentrificação vem do inglês, gentrification, e é o nome dado ao processo de mudança imobiliária, nos perfis residenciais e padrões culturais de um bairro ou cidade. Como já dito, o principal efeito disso é a troca de um grupo por outro, com maior poder aquisitivo, em uma região que passa a ser vista como mais atrativa ao capital financeiro. É assim que comunidades são desmanteladas, graças a uma palavra pouco pronunciada, mas muito praticada.
Esse processo pode ser observado em diversas localidades por todo o Brasil. No centro da cidade de São Paulo, onde pessoas estão saindo por conta da alta de preços e indo para a periferia; nas obras da zona portuária em bairros como Flamengo e Botafogo, no Rio de Janeiro; nas combatidas construções de uma série de prédios no cais Estelita, em Recife, ou no bairro Isidoro, em Belo Horizonte. Os exemplos são inúmeros.
Existem dois casos semelhantes em duas das principais cidades do país que servem como modelo para o que ocorre em todo o território nacional. No Rio de Janeiro, na favela do Vidigal, em que moradores não estão conseguindo arcar com os aluguéis depois que a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) foi instalada, a segurança aumentou e a área valorizou, atraindo o interesse das grandes construtoras, que, por sua vez, estão de olho na bela vista que a região tem da nobre Ipanema e quanto ela pode custar. Já em São Paulo, a interminável discussão sobre a demolição do Minhocão e a revitalização preocupa moradores do entorno do viaduto, que temem ter que sair de suas casas, seja por desapropriação ou pela alta dos aluguéis. “Já sabemos que as construtoras estão interessadas em saber o que vai acontecer e investir aqui, construir edifícios com padrão mais alto. Existe um medo da população”, relata Jaime de Ricco, que habita um dos prédios de frente para o elevado.
Conforme Rosana Denaldi, professora do Programa de Mestrado em Planejamento e Gestão do Território da UFABC (Universidade Federal do ABC), as comunidades estão desamparadas e são desfeitas porque também não têm resguardo do poder público. Embora existam leis de proteção, que constam no Estatuto da Cidade ou nos Planos Diretores, elas não são aplicadas corretamente. “Muitas vezes, é preciso remover famílias e, em outras ocasiões, isso é feito sem necessidade. Vamos falar de quando é necessário: tem que construir um rodoanel, uma avenida, um metrô. Para viabilizar isso, precisa desapropriar. E para onde vão essas famílias, essas comunidades? Irão para uma habitação construída em uma localização adequada? Ou vão receber uma indenização? Essa é a vontade do morador? Você aumenta a vulnerabilidade social e resolve um problema criando outro”, explica.
O futuro da questão, seja para especialistas, seja para movimentos sociais, é sombrio. Isso porque o poder econômico está longe de deixar de dar o tom com que a banda toca atualmente. É necessário criar e aplicar mecanismos que protejam quem habita as regiões que sofrem com o assédio imobiliário. “Lutamos para que haja uma intervenção imediata do Estado, congelando o aumento dos aluguéis, proibindo o despejo forçado, criando medidas efetivas de destinação de latifúndios urbanos para construção de moradias populares ou equipamentos urbanos públicos, além de garantir que esses terrenos tenham taxações por estarem ociosos”, diz Ana Paula.
“Tem que controlar o que acontece em cada quadro da cidade e estamos perdendo o controle. O poder público tem que controlar individualmente. Se isso não acontecer, o empreendedor imobiliário vai construir onde lhe interessa, nas áreas que estão valorizando, e desalojar pessoas. Minha visão é de descontrole”, concorda Lucila.
Segundo Paula, uma política diferente para pelo menos diminuir o impacto sobre as comunidades poderia ser a da locação social, na qual há um banco de imóveis públicos e estes podem ser alugados para as famílias que necessitam, de forma que também pode ajudar a baixar os preços dos aluguéis ofertados para as faixas de renda mais baixas. “Uma política que procure manter e trazer a população para morar nos locais que já possuem oferta de emprego, infraestrutura, serviços e equipamentos públicos, que correspondem geralmente às áreas mais centrais, de interesse do mercado imobiliário”, explica.
–
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.