Jornal Porantim – Edição Especial
Em setembro de 2013, fotos do povo Paiter-Suruí foram amplamente veiculadas na imprensa e nas redes sociais tanto no Brasil como no exterior. Tratava-se da divulgação do contrato que os indígenas assinaram com a maior empresa brasileira de cosméticos, a Natura, em que esta comprava as primeiras 120 toneladas de créditos de carbono “sequestrados” da Terra Indígena Sete de Setembro, no período de 2009 a 2012. A empresa foi a primeira do mundo a adquirir créditos de carbono indígena, emitidos por duas certificadoras internacionais.
Apesar de toda a euforia com que este contrato foi propagandeado, o cacique da aldeia Sete de Setembro, Henrique Iabaday Suruí, 50 anos, pai de nove filhos, um ano após a assinatura desse contrato, afirma que, atualmente, “100% da comunidade é contra este projeto”. Segundo ele, os Suruí não entenderam muito bem do que se tratava o projeto e foram iludidos com falsas promessas de melhoria de vida. Nesta entrevista exclusiva ao Porantim, Henrique conta que desde 2007, quando teve início o “Plano de Gestão de 50 anos do Povo Paiter-Suruí”, a vida da comunidade mudou radicalmente, sendo impedida de caçar, pescar, fazer roça e produzir artesanato. Sem autonomia em seu próprio território, houve muita divisão no povo Suruí, que “tá sem vida”. Ele anuncia que a comunidade quer a supressão do projeto, centralizado em uma pessoa só, pra voltar a viver como antes e “Voltar a ser guerreiro”.
Entrevista concedida à Patrícia Bonilha, da Assessoria de Comunicação do Cimi
Porantim – Fale um pouco sobre a realidade do povo Paiter-Suruí hoje.
Henrique Suruí – Atualmente, somos cerca de 1.800 pessoas vivendo em 25 aldeias. Cada aldeia tem um cacique. A Terra Indígena Sete de Setembro foi homologada no final dos anos de 1970 e tem uma área de 248.000 hectares, que fica metade no estado de Rondônia e metade no Mato Grosso. Cerca de 30% do povo Suruí só fala a língua Tupi, sendo que muitos que entendem o português, falam muito mal esta língua.
Porantim – Em relação ao projeto de Carbono Florestal Suruí, quantas aldeias participaram desse projeto?
Henrique Suruí – Quando começaram a discussão sobre o projeto de carbono, em 2007, vinte aldeias começaram a participar, as outras cinco ficaram fora. Eu alertei muito algumas lideranças que o projeto não seria bom futuramente para o povo Suruí.
Porantim – Como foi o processo de construção do projeto? A comunidade participou? Houve uma ampla consulta?
Henrique Suruí – Quem começou o projeto não foram nem as ONGs [Organizações Não Governamentais], nem a Natura, que entrou agora, quando negociou recursos e comprou um pouco de sequestro. Quem trouxe o projeto para dentro foi o Almir Suruí, com o apoio da [organização] Kanindé. Tem outras organizações envolvidas, mas não lembro muito porque eu nunca participei das discussões porque sempre fui contrário. Quando começaram a discutir o projeto de carbono, ele dizia que nós termos projeto de carbono significa melhoria de qualidade de vida para o povo: “Suruí vai virar empresário, vai ter mercado, loja, posto de gasolina”. Disseram que teria mercado dentro da terra indígena. Cada um teria dinheiro na conta, individualmente. E o povo Suruí quer melhoria de qualidade, e aceitaram a proposta. Eu dizia que projeto não era bom pro povo Suruí.
Porantim – Por que você dizia isso?
Henrique Suruí – Porque quando começaram, eu procurei muito saber como seria esse recurso passado para o povo Suruí. Diziam que seria doado e, um dia, descobri através de meus amigos e entidades de apoio que nós, um dia, ia perder a terra porque o recurso passado ia pagar o direito de viver em nossa terra e ia tirar o nosso direito. As organizações começaram a fazer reuniões com a comunidade e faziam muita promessa, ofereciam muita coisa e agradavam demais. Diziam que recursos seriam passados pra conta de cada um e que ia melhorar a vida de cada pessoa. Isso iludiu muito a vida do meu povo.
Porantim – Você acha que os indígenas conseguiram entender, de fato, o que significa participar de um projeto como esses?
Henrique Suruí – Primeiro, não entendiam não. O pensamento era mais focado no dinheiro. Não pensavam o que ia trazer futuramente e o que podia prejudicar o povo Suruí. A promessa era muito bonita. Até hoje a maioria do povo Suruí não entende ainda o que é isso, Redd [Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação]. Poucas lideranças entendem.
Porantim – E a comunidade foi consultada?
Henrique Suruí – Eles nunca perguntaram se querem participar, se o povo Suruí quer participar. Chegaram a dizer pro Suruí: “temos este projeto e vocês têm que aceitar este projeto”. Nunca perguntou se era bom ou não pros Suruí. Diziam: “este projeto é bom e pode melhorar a vida dos Suruí”. Falavam só isso.
Porantim – E quem assinou o projeto?
Henrique Suruí – Todas as seis associações da base assinaram. Elas foram criadas para receber os recursos do projeto.
Porantim – O que mudou, a partir da implantação do projeto?
Henrique Suruí – Depois do “Plano de Gestão de 50 anos do Povo Paiter-Suruí”, empresas internacionais queriam comprar sequestro de carbono. Esse plano servia só pra dizer que os Suruí autorizaram comprar carbono na sua terra e que os interessados teriam mais facilidade. Esperavam a assinatura de um projeto, mas já impedia a vida tradicional do povo Suruí. Acabaram com as plantações culturais e com o artesanato tradicional, com a pesca, a caça, a liberdade na sua terra. Além disso, nós ficamos na mão da Polícia Federal, que nos ameaçava por qualquer coisa, por fazer derrubada ou caça na nossa terra… quem fizesse, seria condenado por isso. Acabou a liberdade do Suruí na nossa terra. A Polícia Federal agia por pressão dos responsáveis do projeto. Eles que pediam pra PF atuar, pra mostrar pro mundo que os Suruí poderiam cumprir um acordo.
Porantim – Conte mais sobre como era a vida na comunidade antes dessas iniciativas de projeto de carbono.
Henrique Suruí – Nossa vida era festa tradicional. O povo tinha liberdade e saúde, era sem doença. Hoje, na vida presente, temos doenças, perdemos nossos velhos, temos depressão. Muitos velhos Suruí estão com depressão. Hoje, o povo Suruí não acredita no que aconteceu com eles. Ninguém sabe o que aconteceu com o dinheiro. Estão gastando dinheiro e comprando, com recursos do carbono, lideranças dos [povos] Arara, Zoró, Gavião e Tupari para convencê-los a também fazer projeto de carbono. Suruí, quando foi assinar contrato com Natura, pensou que este recurso tava chegando pra melhorar a vida do povo porque ficou muitos anos esperando este projeto. Ficou deprimido e sem autoridade pra fazer o que fazia antes. Houve uma divisão muito grande entre nós. Então, é muito difícil a nossa vida hoje. Nós não acreditamos em ninguém. O povo não acredita no que aconteceu com nós. Suruí tá assustado. Não tem pra quem falar o que aconteceu com Suruí. O povo tá sem vida. Queremos a supressão do projeto pra voltar a ter a vida que tínhamos antes. Voltar a ser guerreiro.
Porantim – O projeto levou algum benefício para a comunidade?
Henrique Suruí – Nada, nada, nada. Só prejudicou a vida Suruí. A vida acabou, não tem mais nada. Não tem projeto como tinha antes. Acabou. Antigamente tinha projeto da Funai, da associação nossa pra dentro da comunidade e, agora, não tem mais. Eles que comandam tudo e têm tudo na mão. Não tem conversa com ninguém. Brigam quando perguntam sobre o dinheiro. Todos que estavam ao lado dos responsáveis pelo projeto, saíram. Eles estão sozinhos.
Porantim – Na imprensa foi noticiado que o valor do contrato com a Natura é de R$ 1,2 milhão. Você sabe se este valor está correto?
Henrique Suruí – É este o valor sim, mas ninguém sabe onde tá este dinheiro. E a comunidade não recebeu nenhum benefício.
Porantim – Como está a situação hoje? Quem concordava com o projeto, mudou de posição?
Henrique Suruí – Hoje 100% da comunidade é contra este projeto. Ninguém mais quer falar deste projeto nos Suruí. Tudo ficou centralizado em uma pessoa. A Natura só trata com uma pessoa. Nem Natura sabe o que tá acontecendo com o Suruí. Ninguém sabe. Não abrimos a boca ainda. Esta é a primeira vez que falamos sobre a realidade do povo Suruí, pra vocês.
Porantim – O que seriam as operações da Polícia Federal?
Henrique Suruí – A PF chega, entra na aldeia e checa se os índios estão cumprindo o projeto. Se não tiver, pode ser processado. Fiscaliza dentro da aldeia e a gente recebe muita ameaça dos policiais. Agora acalmou mais. Mas o projeto tá prejudicando o Suruí. Agora, o MPF [Ministério Público Federal] e a PF tão começando a entender que o projeto não é bom pro povo Suruí.
Porantim – Qual o propósito de fazer o diagnóstico socioeconômico e ecológico nas terras indígenas? Quem é responsável por ele?
Henrique Suruí -A ONG Kanindé e outras. Pra fazer outros projetos de Reed em outras terras indígenas, ampliar pro estado todo.
Porantim – Outros povos estão se envolvendo com o mercado de carbono em Rondônia? Qual é a posição do governo?
Henrique Suruí -Estão preparando projetos também. O governo do estado está favorável. O Almir é apoiado pelo Estado.
Porantim – Diante do contexto que você descreve, o que o povo Suruí pretende fazer?
Henrique Suruí – Primeiro, nós nos reunimos no mês passado. Sabemos que este projeto dividiu o povo e quase acabou com a nossa vida. E entendemos que o povo é pra sempre e tem que vencer, apesar de toda esta situação. Depois, nunca mais pensar em carbono em nossa terra e, principalmente, nenhuma ONG fazer projeto em nome do povo Suruí. Vamos lutar pela nossa saúde, educação, nossa cultura. Vamos fazer. Acreditamos que apesar da situação difícil que vivemos hoje, vamos vencer. Pensar o futuro do povo Suruí. Lutar pelos nossos direitos. Este projeto de promessa que vem de foram não dá futuro pra gente. Vamos voltar a ser Suruí novamente. Hoje é muito difícil dizer que estamos unidos. O projeto trouxe uma divisão muito grande. Não é qualquer liderança que pode organizar o povo Suruí novamente e que pode dizer para voltar a ser Suruí. Povo Suruí desacreditou liderança com projeto enganoso que iludiu a gente. Tá difícil. Lideranças velhas não conseguem acreditar e ficam com depressão. E muitas pessoas que foram responsáveis, que acreditaram no projeto, não querem conversa com ninguém. Não acreditam em mais nada. Nem eu acredito ainda no que aconteceu.
Porantim – Hoje, como você definiria o mercado de carbono?
Henrique Suruí – Projeto de carbono pra nossa terra é pra tirar a vida do povo Suruí. Vai tirar a sua vida de felicidade, de direito de viver em cima da sua terra. Se você está feliz hoje e vê a destruição na sua vida, é difícil. É uma bomba pra vida de qualquer ser humano. O que tá acontecendo com a gente não é fácil. O que aconteceu com povo Suruí é uma história pro resto da vida e para o mundo… pra que nenhum indígena faça este tipo de projeto em sua terra, porque a terra dá a vida, a floresta dá a vida, pra nós plantar e colher. Faço votos que nenhum outro povo aceite um projeto desses. Pra que querer projetos que destroem a vida?