“O governo brasileiro, para a COP-20, mantém o princípio de responsabilidades diferenciadas, considerando as responsabilidades históricas do Norte, que estão poluindo há mais tempo, mas também diferenciando os países emergentes dos países mais pobres, justamente para sair da lógica binária entre Norte e Sul”, diz a analista de Políticas na ActionAid Brasil
IHU On-Line – A 20ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima – COP-20, que inicia nesta segunda-feira em Lima, no Peru, é“considerada estratégica” no sentido de avançar nas propostas para o acordo que substituirá Kyoto e será negociado em 2015, em Paris, diz Vitória Ramos à IHU On-Line.
Segundo ela, o recente acordo sobre enfrentamento das mudanças climáticas, assinado entre os EUA e a China, “tem um valor simbólico importante (…) e pode ajudar a avançar nesse ‘jogo de culpa’ de quem emitiu mais e de quem deve ter maiores responsabilidades, e criar um novo efeito para que novos compromissos sejam assumidos tendo em vista o acordo a ser elaborado no próximo ano, em Paris”.
Contudo, temas polêmicos e divergentes ainda devem ser discutidos pelos 190 países que participam do encontro. Entre eles, enfatiza Vitória, está a tentativa de superar a “lógica binária” que vem conduzindo as discussões das responsabilidades de cada país. “O grande problema nas negociações é que o debate vem se dando numa lógica binária de divisão entre os países do Norte e os do Sul, mas sabemos que não é mais possível dividir o mundo nesses termos, porque há muitas diferenças entre os países, inclusive porque alguns países emergentes já emitem tanto ou mais que os atuais países ricos”, esclarece na entrevista a seguir, concedida por telefone.
O outro ponto polêmico do encontro se dará em torno da agricultura, porque os países desenvolvidos “estão com uma nova estratégia (…), que estão chamando de agricultura inteligente”. Na avaliação de Vitória, “essa é uma proposta complicada, porque grandes corporações são as responsáveis por produzirem essa agricultura que seria inteligente e não provocaria emissão de gases. Mas sabemos que não existe um mecanismo ou as bases do que seria essa nova agricultura. Trata-se mais de uma nomenclatura utilizada por grandes corporações para se denominarem ‘verdes’. Essa é uma falsa solução. Para combater as mudanças climáticas, precisamos de ações reais ao invés de falsas soluções”.
Vitória Ramos é graduada em Relações Internacionais e é analista de Políticas na ActionAid Brasil. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as expectativas para a COP-20, que inicia hoje, em Lima, considerando que nesta Conferência não há um texto de negociação, mas está em pauta o acordo a ser assinado em 2015, em Paris, o qual substituíra Kyoto?
Vitória Ramos – A COP-20 é considerada estratégica porque se espera avançar nas propostas do acordo que será feito no próximo ano, em Paris, e que entrará em vigência em 2020, e será o sucessor do Protocolo de Kyoto.
IHU On-Line – É possível vislumbrar consenso em alguns pontos do acordo de 2015, ao longo da COP-20? Quais são os pontos em que deve haver mais consensos e divergências na COP-20?
Vitória Ramos – O grande problema nas negociações é que o debate vem se dando numa lógica binária de divisão entre os países do Norte e os do Sul, mas sabemos que não é mais possível dividir o mundo nesses termos, porque há muitas diferenças entre os países, inclusive porque alguns países emergentes já emitem tanto ou mais que os atuais países ricos. Então, o ponto central é sair dessa lógica binária para poder avançar nos acordos. Há também uma discussão em relação aos cortes de emissões, porque os países do Sul insistem numa responsabilidade diferenciada, enquanto os países do Norte tentam travar essa proposta, porque não querem se comprometer com o histórico das emissões, que é maior do que o dos países do Sul.
A outra discussão polêmica é em torno do financiamento. Na última COP foi criado um mecanismo sobre perdas e danos, mas ainda é preciso decidir como ele irá funcionar. Isso é muito problemático, porque os países do Norte estão reticentes em se comprometerem e financiarem perdas e danos que acontecem em decorrência das mudanças climáticas em países mais pobres.
A outra questão diz respeito à adaptação em relação à agricultura, porque os países desenvolvidos estão com uma nova estratégia em torno do que eles estão chamando de agricultura inteligente. Essa é uma proposta complicada, porque grandes corporações são as responsáveis por produzirem essa agricultura que seria inteligente e não provocaria emissão de gases. Mas sabemos que não existe um mecanismo ou as bases do que seria essa nova agricultura. Trata-se mais de uma nomenclatura utilizada por grandes corporações para se denominarem “verdes”. Essa é uma falsa solução. Para combater as mudanças climáticas, precisamos de ações reais em vez de falsas soluções.
IHU On-Line – Um dos pontos a ser discutido na COP-20 é como cada país poderá contribuir mais para o corte de emissões. O Brasil já tem uma proposta?
Vitória Ramos – A proposta que o Brasil tem defendido é boa, apesar de o país ter vários problemas. De todo modo, o governo brasileiro, para a COP-20, mantém o princípio de responsabilidades diferenciadas, considerando as responsabilidades históricas do Norte, que estão poluindo há mais tempo, mas também diferenciando os países emergentes dos países mais pobres, justamente para sair da lógica binária entre Norte e Sul. O Brasil também tem a posição de fortalecer os espaços multilaterais. Negociações bilaterais estão até surgindo, mas via mercado financeiro.
IHU On-Line – Quais têm sido as principais contribuições do Brasil no sentido de reduzir as emissões de gás carbônico e contribuir para o enfrentamento das mudanças climáticas, considerando que, segundo o relatório do IPCC, o Brasil cumpriu as metas de desmatamento?
Vitória Ramos – O Brasil tem um Plano de Mudanças Climáticas, mas ainda deixa muito a desejar no que pode ser feito, porque as propostas ficam no âmbito dos planos e das discussões. Na prática essas metas têm mais dificuldade de serem aplicadas, até por conta da agricultura — de onde vêm as maiores emissões. Sabemos que o modelo do agronegócio é um grande emissor e, nesse aspecto, não vemos como poderia melhorar. A proposta da agricultura inteligente, que tem sido defendida por alguns países, pode ser muito prejudicial para o Brasil se utilizada pela agricultura tradicional, já que não temos certeza de quais serão os impactos. Espero que na COP-20 o Brasil consiga se comprometer com metas mais ambiciosas para um novo acordo.
IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, na COP-20 haverá um espaço dedicado aos indígenas. Essa é uma novidade da COP-20?
Vitória Ramos – Normalmente as COPs apresentam uma característica forte do país que sedia a conferência. Como a questão indígena é muito forte em Lima, a presença dos indígenas está associada a essa questão. Na COP-20 terá um pavilhão dos povos indígenas, o qual recebe o apoio do governo norueguês para promover a participação dos indígenas na COP. Mas a participação de fato dos povos indígenas deve se dar na Cúpula dos Povos, que acontece paralelamente às negociações. A sociedade civil está organizando uma mobilização e discussões que envolvem as posições dos povos indígenas e dos povos tradicionais para enfrentar as mudanças climáticas. A Cúpula dos Povos é o espaço mais legítimo dos povos indígenas nesta discussão.
IHU On-Line – Como avalia o acordo sobre mudanças climáticas assinado entre EUA e China, fora das negociações da ONU? Como esse acordo deve repercutir na COP-20?
Vitória Ramos – Esse acordo tem um valor simbólico mais importante do que o valor real no enfrentamento das mudanças climáticas. A China tem sido mais ousada do que os EUA nas ações de enfrentamento às mudanças climáticas, embora os EUA sejam historicamente o país mais responsável pelas emissões. De todo modo, esse acordo pode ajudar a avançar nesse “jogo de culpa” de quem emitiu mais e de quem deve ter maiores responsabilidades, e criar um novo efeito para que novos compromissos sejam assumidos, tendo em vista o acordo a ser elaborado no próximo ano, em Paris. Portanto, trata-se mais de um acordo simbólico, mas que já poderá ter algum impacto estratégico na COP-20.