Raquel Rolnik*
Ninguém mais precisa escrever dissertação de mestrado ou tese de doutorado para mostrar o sentido profundo do projeto Rio de Janeiro Cidade Olímpica – a megaoperação de valorização imobiliária em curso na cidade do Rio de Janeiro. A própria prefeitura do Rio resolveu explicitar isso claramente ao lançar o Banco Imobiliário Cidade Olímpica, produzido pela Estrela. Além de licenciar a marca Cidade Olímpica, a prefeitura desembolsou 1 milhão de reais por 20 mil unidades do jogo, que está sendo distribuído na rede municipal de ensino. A partir de maio, a Estrela vai comercializar o produto nas lojas.
Nesta nova edição do jogo – que existe há décadas – em vez de comprar imóveis em importantes ruas e avenidas da cidade, o jogador investe em pontos turísticos tradicionais – como os Arcos da Lapa, Copacabana e o Corcovado, mas também nas novas “marcas” da Rio Cidade Olímpica : o Porto Maravilha, a Clínica da Família, o Bairro Carioca, os BRTS (vias expressas de ônibus) , o Museu de Arte do Rio, o Museu da Imagem e do Som etc. Nas cartas de sorte ou revés, que definem ganhos ou perdas no patrimônio dos jogadores, há pérolas como “Seu imóvel foi valorizado com a pacificação da comunidade vizinha. Receba R$ 75 mil.”
Muita gente e várias instituições já denunciaram o mau uso de dinheiro público, a possível ilegalidade envolvida no uso de recursos da prefeitura para propaganda das gestões Eduardo Paes/Sérgio Cabral, e também questionaram os efeitos pedagógicos de um brinquedo deste tipo em crianças e adolescentes. Apesar de eu concordar com tudo isso – o Ministério Público já declarou que vai apurar algumas destas questões – acho um perigo que a crítica seja centrada nestes pontos, reforçando a ideia de que o grande problema é a prefeitura ter gasto 1 milhão de reais para comprar o jogo e encobrindo o verdadeiro escândalo – onde são gastos – e privatizados! – muito mais recursos públicos, que é a própria natureza do que está em jogo com a operação Cidade Olímpica.
Explicando: a questão fundamental é como o jogo explicita, banaliza e até mesmo transforma em algo positivo a vinculação das ações da prefeitura com os processes de valorização imobiliária e de mercantilização da cidade. As perguntas que não querem calar são: qual a natureza das intervenções em curso? Em que medida elas vão diminuir as desigualdades e promover a inclusão socioterritorial no Rio de Janeiro? Quem ganha e quem perde com essas transformações? No jogo, Estrela e Prefeitura candidamente respondem com clareza a questão. Os efeitos são positivos quando provocam valorização: no mundo da financeirização da produção da cidade, este é o valor que importa.
Em tempo: em meio às inúmeras reações ao lançamento do jogo, encontrei algumas bem humoradas que merecem ser compartilhadas. Uma delas é uma página no Facebook que satiriza o jogo. Outra é o vídeo do Rafucko (no início do post), radialista e videomaker carioca.
*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.
Banco imobiliário Cidade Olímpica: seria cômico se não fosse trágico