Antropólogo lança livro sobre o preconceito racial que se perpetuou nas piadas brasileiras
Erica Neves, Da editoria de educação
Quem nunca ouviu uma piada de viés racista e deu uma boa risada? E quem nunca reproduziu uma piada, também de cunho racista, para um grupo de amigos? Mas o que esse tipo de brincadeira pode revelar acerca do preconceito racial presente em uma sociedade? Essas são algumas das questões que o antropólogo e professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Dagoberto José Fonseca, busca responder no livro Você Conhece Aquela? A Piada, o Riso e o Racismo à Brasileira, publicado pelo Selo Negro Edições.
Em entrevista exclusiva ao caderno Escola, Fonseca explicita o racismo existente no Brasil e destaca que a própria ideia de uma sociedade miscigenada é contraditória. “Essa miscigenação foi construída ideologicamente e aponta o fato de que você tem uma sociedade que procura fugir daquilo que possa vir a ser. E ela só pode fugir porque não é verdadeiro o fato de que nós somos uma grande miscigenação!”.
Para o antropólogo, a conquista de cargos importantes pelos negros ainda é uma exceção, e não um indicativo de que o racismo está deixando de ser uma realidade. “O fato de você ter se projetado, em uma estrutura racial como a do Brasil, só aponta a necessidade de que nós precisamos trabalhar mais e melhor para que as exceções se transformem em regras”, ressalta.
Entre os mitos que perpetuam o racismo brasileiro, Fonseca cita o das três raças irmãs, pois ao afirmar que houve fraternidade, solidariedade e altruísmo entre elas, na construção do Brasil, o mito nega a “violência que se deu nesse processo”. Na opinião do professor, dentre algumas medidas que podem colaborar para a construção de uma sociedade mais justa estão as políticas públicas, os debates e os diálogos entre os entes governamentais e a sociedade civil. Acompanhe, a seguir, a entrevista na íntegra.
Como surgiu a ideia de escrever esse livro?
Surgiu em 1985, quando um amigo meu fez uma piada referente ao nascimento do filho de um outro amigo. A partir daí comecei a construir uma pesquisa em torno dos conteúdos racistas presentes nas piadas brasileiras.
Era uma piada racista?
Sim. Ele não teve a intenção de fazê-lo, mas fez! A intenção era gerar uma brincadeira, mas que não foi inocente nem ingênua. A piada é a ridicularização do outro para que esse outro seja um objeto risível. E, nesse sentido, a piada foi tão violenta que não teve o resultado esperado, que era provocar o riso em quem a ouviu. Muito pelo contrário! As pessoas saíram de perto e jamais conversaram com ele a respeito disso. A não ser eu, quando apresentei a proposta do projeto no final de 1985.
Qual o objetivo de seu livro?
O livro buscou ser uma grande radiografia, um caleidoscópio, construída a partir de diversas questões e temas contidos nas piadas. Nós elaboramos dados importantes no sentido de entender algumas piadas e o que elas querem dizer para que possamos mudar. E é nesse sentido que o politicamente correto não nos ajuda; ele apenas mascara uma situação social que temos que enfrentar.
No seu entendimento, piadas com viés racistas, contadas por pessoas negras, também podem ser consideradas preconceituosas?
O fato de um negro dizer que achou a piada engraçada é porque ele quer ser aceito por todos aqueles que estão ouvindo, sobretudo os brancos. É uma tentativa de dizer: “Olha, eu não sou isso! Os negros são os outros!”. É um negro que precisa da aceitação do outro para viver. Então o que existe é um processo de introjeção de valores racistas dentro da sociedade brasileira.
Partindo dessa ideia, podemos afirmar que a sociedade brasileira é racista?
Acho que a pesquisa como um todo demonstra isso. Agora você pode verificar uma outra questão: quando você tem rodas de negros que contam piadas com conteúdo racista também é uma maneira de estabelecer catarse. É um exercício de catarse do próprio grupo para dizer, sobretudo quando você tem as crianças e os adolescentes, “se vocês ouvirem isso, quer dizer isso e se fortaleçam diante disso. Não quer dizer aquilo que foi falado para vocês.” O engraçado é a busca de aceitação. Então a sociedade é marcada justamente por um profundo processo de racialização das cores que faz com que aqueles que sejam mais claros não se identifiquem com aqueles que são de pele mais escura.
Não é contraditório que uma sociedade miscigenada como a brasileira seja racista?
Essa miscigenação também é um fator ideológico em nossa sociedade. Esses dados podem ser demonstrados a partir de pesquisas que vão desde o período colonial até os nossos dias. Essa ideia de miscigenação completa da sociedade brasileira é uma construção da nossa ideologia de democracia racial. O Censo do IBGE, por exemplo, aponta que cerca de 20% da população brasileira casa fora do seu grupo étnico-racial e 80% se casa dentro do mesmo grupo.
Na prática, o que isso significa?
Significa que os brancos se casam com os brancos, os negros se casam com os negros, os amarelos se casam com os amarelos e os vermelhos se casam com os vermelhos. Essa ideia de miscigenação completa é um fator político que induz à construção de uma sociedade miscigenada. Mas essa miscigenação política – e construída ideologicamente – aponta essa questão, onde você tem uma sociedade que procura daquilo que possa vir a ser.
A chegada de negros a cargos importantes no poder, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, consideradas nações racistas, demonstra alguma evolução no sentido de que os paradigmas estão mudando ou eles são apenas exceções?
É justamente isso que você traz. Isso e as piadas vão demonstrar quando você tem um Barack Obama nos Estados Unidos e tem, por exemplo, aqui e agora, um Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal. São exceções à uma regra e você vai encontrar, inclusive, piadas no meu livro que dão conta disso, que nos leva a entender que o fato de você ser um negro bem sucedido não faz com que você não seja objeto do racismo. Quantas vezes o Obama, senador da República, passava despercebido e algumas pessoas o tratavam como
se ele fosse um negro qualquer nos Estados Unidos, e não o senador.
E quanto ao Joaquim Barbosa?
Ele também passou por muitos aspectos semelhantes na sua vida até chegar aonde está. Mas o fato de você ter se projetado e ser bem-sucedido em uma estrutura racial como a dos Estados Unidos e do Brasil só aponta a necessidade de que nós precisamos trabalhar mais e melhor para que as exceções se transformem em regras. Enquanto as exceções forem exceções, cada vez mais o Obama, o Joaquim Barbosa, o Pelé e tantos outros negros serão reverenciados. Mas é uma reverência negativa, do ponto de vista daquilo que a sociedade precisa alcançar enquanto sociedade brasileira, e não enquanto negros e brancos.
Poderia citar exemplos de mitos que perpetuam o racismo brasileiro?
Nós temos vários mitos que perpetuam essa ideia, entre as quais o das três raças irmãs que construíram igualmente o Brasil. Nunca houve essa questão de raças irmãs, mas nós construímos esse mito. Quando você olha para esse mito você tenta provar que houve, de fato, fraternidade, solidariedade e altruísmo na construção da sociedade brasileira.
Mas nós sabemos da violência que foi esse processo, portanto, não houve fraternidade e solidariedade na construção da nação brasileira. A nação ainda precisa ser construída e está sendo construída aos poucos. Esperamos que, no século 21, com as políticas todas que possamos vir a ter, com debates e diálogos cada vez maiores, possamos chegar, de fato, a esse espírito que junta a todos nós no processo de construção de uma sociedade mais igualitária, ou como se diz, mais republicana.
O que o senhor acha das políticas afirmativas como a lei de cotas e a lei 10.639, que institui o ensino da cultura e da história afro-brasileira nas escolas?
Eu entendo que tanto a lei de cotas quanto a lei 10.639 dão conta, efetivamente, de um processo de luta da sociedade brasileira, em particular do movimento negro brasileiro. Entender isso, enquanto um processo de luta, dá conta de que nem o estado nem a sociedade civil nem o mundo empresarial deram as condições anteriormente, desde a abolição da escravatura, para que esses negros pudessem fazer esse processo de adaptação social.
Mas por que é importante enfocar esse aspecto?
Porque é importante lançar uma reflexão sobre aquilo que foi dito e ainda se diz sobre o Brasil não ser um país racista. Quando nós ouvimos que o Brasil não é racista, desde que o negro fique em seu lugar, significa que se os negros ficarem no lugar dado pela escravidão não vai existir racismo. O problema é que a construção da sociedade naturalizou os processos pelos quais negros e brancos construíram a sociedade brasileira, inclusive com a presença dos índios que foram praticamente eliminados.
Então isso faz com que nós entendamos que a lei de cotas, enquanto uma prerrogativa de luta do movimento social e, a partir do momento em que o estado constata a necessidade de se construir políticas públicas focadas para esse segmento populacional, o estado está construindo efetivamente as possibilidades de termos uma república melhor do que temos até agora.
Isso significa que o senhor é um defensor da política de cotas raciais, discordando as várias críticas feitas em relação a isso?
Sou extremamente favorável à política de cotas nas universidades e nos diversos setores da vida brasileira. Também entendo que a lei 10.639, de 2003, é importantíssima justamente porque é a grande lei da sociedade brasileira. Tenho dito, nos diversos fóruns que participo, que a lei 10.639 é a melhor e maior lei em abrangência, sendo comparada apenas àquela assinada pela princesa Isabel, em 1888.
Tão importante assim?
Sim, por que essa lei faz com que a sociedade brasileira tenha a capacidade de viver a sua própria história e possa abolir os grilhões do passado. Isso desde que tenha a competência e a humildade de olhar para esse passado violento, que não construiu solidariedade humana, e que precisa não ser apagado, mas estar presente na memória de todos para que nós não o repitamos. A criação da lei 10.639 faz com que possamos melhorar efetivamente a nossa possibilidade de viver em uma sociedade melhor, sobretudo porque é uma lei que atinge a infância e a adolescência.
Então, que nós possamos construir um Brasil muito melhor, desde que esse Brasil tenha a coragem de olhar para o seu passado, ver que ele foi violento, e que essa violência pode ser diminuída e eliminada se tivermos a tranquilidade de sermos solidários com o outro.
Quem é e o que fez?
É graduado em Ciências Sociais pela PUC/SP, concluiu o mestrado e o doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição. Possui pós-doutorado em Educação pela Unicamp e atualmente é docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp. É chefe do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da mesma universidade. Foi coordenador geral do Programa Nacional de Qualificação Profissional e Social para as populações afro-brasileiras, indígenas, ciganos e membros das religiões afro-brasileiras, desenvolvido em parceria pela Unesp e Ministério do Trabalho e Emprego e é coordenador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra.
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