Sete e trinta da manhã. Estamos no carro de Lázaro Ramos em uma das ruas principais do bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro, onde o artista mora. Aproveito que estamos parados em um sinal de trânsito para brincar com o ator e me referir ao horário em que a entrevista foi marcada: “Horário acintoso”, digo-lhe. Lázaro, em resposta, dá uma gargalhada divertida e se desculpa com o mais simpático dos sorrisos. Aproveita também para fazer um comentário espirituoso. “Poxa, o trânsito está bom, vamos chegar rápido ao Projac”, prevê, rindo mais uma vez. “Por favor, não torça por isso”, exclamo apreensiva. “Preciso ter tempo para, até chegarmos lá, terminar esta entrevista.” “E ainda por cima tenho que dividir a atenção de Lázaro com a direção do automóvel. Será que vai dar certo?”, questiono, em silêncio. Foi dessa forma inusitada que RAÇA BRASIL conseguiu realizar uma deliciosa e inteligente entrevista com ele que é considerado um dos atores mais talentosos de sua geração.
Aos 34 anos, pai de João Vicente, seu filho com a atriz Taís Araújo, Lázaro Ramos vive atualmente na telinha o Zé Maria, ou Zé da Navalha, como seu personagem é conhecido nos círculos de capoeira, um jovem homem negro que toma para si os sonhos e as utopias do seu povo. Homens, mulheres, jovens e crianças descendentes de escravos que, recém-libertados naquela primeira década do século 19, desejam caminhar “lado a lado” – como sugere o título da novela das seis da Globo -, em igualdade de condições com os demais cidadãos do país. Isto, naquela ainda incipiente condição de negros libertos, sem direito à prática da capoeira, ainda proibida nos anos 1910, mas criativos e potentes o suficiente para criar as bases de uma das manifestações culturais mais expressivas e atualmente conhecidas no mundo inteiro: o samba. Além de empreender muitos embates importantes que saltaram dos livros de História e tomaram a ficção.
“Eu me emociono muito com esta história. De modo geral, decoro os textos e depois os esqueço. Mas nesta novela eu tenho na memória todos os textos do meu personagem”, confessa o ator que, visivelmente feliz, não acreditava que uma novela com estas características fosse, de fato, ser realizada.
Mas há algo de novo no cenário televisivo brasileiro com a ascensão das classes D e E como consumidoras dos mais variados bens. “Telenovelas, filmes e minisséries entre eles”, analisa o artista multifacetado, o mesmo que assina a direção, apresentação e produção das reportagens do programa Espelho, sucesso absoluto exibido pelo Canal Brasil “e que agora já pode ser visto por quem assina o pacote mais popular da TV por assinatura”, informa o ator, mais uma vez contente com uma conquista sonhada desde a estreia do programa, em 2007. Lázaro também estreou como diretor de teatro com a peça Namíbia, não! uma sagaz comédia sobre a situação do negro no Brasil que se transformou num estrondoso sucesso de bilheteria ao longo dos dois anos em que está em cartaz. O público infanto-juvenil, que Lázaro tomou para si com o carismático anti-herói Foguinho, vivido por ele em Cobras e Largatos, está tendo a oportunidade de também se deliciar com o lado escritor de Lazinho (como o ator e diretor é chamado carinhosamente pelos amigos). Bom, mas detalhes deste e de outros projetos do autor, vamos conhecer na entrevista exclusiva que começa na página ao lado.
Até porque o carro está chegando aos estúdios do Projac e Lázaro vai voltar a encarnar o Zé Maria. Ao longo de horas de gravação, o ator vai dar conta das esperanças libertárias do jovem negro que participou da Revolta da Chibata, ao lado dos rebelados que acompanharam o líder João Cândido, e com eles, foi expulso da Marinha. Também viverá a paixão por Isabel, “uma mulher à frente de seu tempo”, como define o ator, interpretada pela atriz Camila Pitanga, sua parceira também em Insensato Coração, novela em que Lázaro viveu o garanhão André, um bem-sucedido publicitário com dificuldades de relacionamento com as mulheres e que colocou o ator, mais uma vez, no centro das atenções do país. Neste caso – e pela primeira vez – como galã da novela das nove. “Era um personagem polêmico. Mas qual dos que eu venho fazendo não foi?”, questiona, de forma provocativa. Vejam no que mais Lázaro Ramos nos provoca a pensar nesta entrevista.
Você vive Zé Maria, personagem que entre os capoeiristas ganhou o nome de Zé da Navalha. Ele começou a novela Lado a Lado como barbeiro, depois virou mascate. Pode defini-lo?
Ele é um ex-barbeiro, ex-marujo, e a vida foi dando surras nele, dentro da profissão. Ele era barbeiro e, por conta de uma decepção amorosa, resolve ir para a Marinha e acaba participando da Revolta da Chibata e é um dos marujos que também é expulso.
É um texto com muitos eventos importantes ligados à história do negro. Você diz que não a vê como uma novela de época, mas como uma novela que fala de uma época. Qual a diferença?
Eu acho que é uma novela que tem um gosto de liberdade que se sente em coisas como o linguajar, a trilha sonora, que para mim, pelo menos, quando assisto à novela, mesmo ela tratando de 1904, 1910, mostra como a história é cíclica e como as coisas podem se repetir. Claro que há um contexto pós-escravidão, no qual a capoeira ainda era marginalizada, proibida. Mas tem alguns fatos ali abordados que inspiraram a gente a pensar no que está acontecendo hoje. Claro que há uma coisa reveladora da época. E para mim a coisa mais reveladora que a novela faz é falar de quatro temas que hoje são símbolos nacionais, mas que na época eram marginalizados: futebol, capoeira, samba e a mulher que fica relegada, naquele período, a não ter opinião. Hoje a gente tem uma mulher presidente. Então, isto é muito marcante! Mas tem uma coisa nesta novela que eu nunca contei a ninguém e que vou contar a você.
Só quero ver se, quando a edição sair, você já não terá dado esta declaração para vários outros veículos de comunicação…
(Risos) Há coisas que só é possível se falar na RAÇA BRASIL. Porque há uma tendência da imprensa de interpretar alguns temas que a gente fala, principalmente os que se referem à questão racial, sobre os quais, hoje em dia eu me previno. Algumas coisas que eu falei, senti que foram para outro lado, tomaram outro rumo, ganharam outro significado, porque a interpretação passou por outro filtro que não aquele de uma revista como a Raça.
Dê um exemplo deste tipo de distorção.
Quando o Obama veio ao Brasil, me perguntaram: “O que você acha que o Obama representa para o Brasil?” A minha resposta completa foi: “Eu acho que Obama, por ser um negro, é uma inspiração para todos nós. Mas é óbvio que, sendo presidente dos EUA, ele sempre vai defender os interesses dos EUA. Mas, simbolicamente, eu acho que ajuda a gente aqui no Brasil, sim. Com relação à autoestima, em poder mostrar o potencial que um homem negro pode ter, o discurso e a relação que ele tem com a família.” Fiz todo um discurso contextualizando o Obama, a partir daquilo que eu achava. Mas a matéria saiu com o seguinte título:Lázaro Ramos acha que Obama vai ajudar os negros no Brasil.
É uma simplificação.
Sim, é uma simplificação! Este é um dos exemplos mais simples, porque não estou me lembrando agora de outros mais relevantes. Com isto eu percebi que, por ser o racismo muito complexo, frases muito reduzidas, a discussão fica limitada, cheia de frases feitas. Isto acontece com várias temáticas hoje em dia. Assuntos como “política afirmativa”, por exemplo, eu prefiro falar no Espelho, em que a gente dispõe de 25 minutos para falar do assunto. Não sei se é possível, numa entrevista, numa matéria, mesmo ela tendo três, quatro páginas, dar conta da dimensão, da complexidade de um assunto como o racismo. O programa Espelho para mim é um alívio, é um lugar em que você pode dividir esta temática, debater mais longamente, continuar o debate em outros programas e aprofundar. Hoje em dia nos debates sobre o racismo acho que há muita frase feita.
Por exemplo…
“Vocês estão chorando de barriga cheia” ou “O racismo no Brasil é social e não em relação à cor da pele” ou “Discrimina-se a pessoa por ser pobre, e não por ser negra”.
Quer uma que eu escuto muito? Quando se refere a uma pessoa pública, falam: “O filho do Hélio de la Penna vai ter direito à cota?” Dizem isto, se esquecendo que há outras determinantes que definem se você vai ter acesso à cota ou não. Tem gente que pega uma frase e começa a reproduzir, a repetir aquilo ali. Essa repetição acaba virando verdade e as pessoas acabam não aprofundando. Por isso, hoje em dia, venho optando: sobre alguns assuntos, falo apenas no Espelho.
Você acha que o racismo no Brasil ainda é uma questão perigosa, cuja discussão pode trazer problemas para as pessoas?
Eu acho o seguinte na condição de pessoa pública: toda vez que eu for falar sobre este assunto, quero estar muito bem embasado. Ler o que se escreveu sobre o assunto, falar com quem já tratou do assunto. E o Espelho é um artifício para isto, porque há muitas pessoas que me alimentam pra eu falar com embasamento. Não dá mais para falar só com o sentimento. É claro que eu, como artista, como ator, falo com sentimento. A tendência é falar sobre o que sinto, o que eu passei, o que aconteceu com a minha família. Mas há estudos sobre isto, é há muito a se estudar sobre este tema. E eu, hoje, como figura pública, sinto que tenho que estar bem informado.
Ainda falando sobre imprensa, meios de comunicação e racismo, me lembrei de uma entrevista realizada por você no Espelho na qual a sua expressão facial me chamou muito a atenção. O entrevistado era de fato polêmico: Ali Kamel, autor do livro Não somos racistas. Você pode me dizer se minha impressão sobre uma não aceitação sobre o ponto de vista do entrevistado pairou, de fato, durante a entrevista?
(Risos) Nas minhas entrevistas do Espelho eu não me sinto obrigado a ter uma postura isenta, de jornalista. Procuro respeitar quem está ali falando; deixar a pessoa falar. Faço isto com meu melhor amigo, o Vagner (Moura), durante a entrevista, como faço com uma pessoa que nunca vi antes na vida, nunca tive oportunidade de entrevistar, como aconteceu com a Miriam Leitão, de quem conhecia o trabalho, mas não a conhecia pessoalmente.
Como fiz também com o Ali Kamel, que pode falar coisas das quais eu discordo, já que eu acho que um programa como o Espelho é um lugar raro na televisão que permite este tipo de debate. Então, tenho que permitir que o entrevistado fale à vontade sobre o que ele pensa e a minha interferência, apresentando argumentos, é muito pouca.
O meu trabalho basicamente é me “cortar” e deixar o entrevistado falar o máximo possível. Foi o que aconteceu com o Ali. Naquele caso, acabei demonstrando, com a expressão facial, que não concordava com ele. Acabei reagindo assim.
Você se recorda de alguma coisa nesta entrevista que o fez pensar: “Ah, meu Deus! Tenho que escutar isto!”
(Risos) Ah, não lembro, não.
A tese em si explicitada no título do livro vai na direção oposta do que você pensa.
Claro que há racismo no Brasil. É um assunto complexo e difícil de explicar. De certo modo, eu entendo um pouco o que ele quis dizer quando afirma que “não somos racistas”. É mais fácil a gente dizer que não é racista do que a gente aceitar e oficializar isto, porque não existe um racismo oficial. É mais ou menos o que ele diz, não é? Tem uma boa vontade. Mas há outras vertentes, outras formas de abordar o problema, já que o racismo se expressa de formas múltiplas. Creio que há muitas maneiras de combatê-lo.
Como assim?
Por exemplo, se referir aos “negros” como uma coletividade. Claro que somos uma coletividade, não posso negar que há várias dores, várias alegrias que nos unem. Mas há que se permitir, também, olhar cada negro. Cada pessoa tem uma história de vida, uma dor, suas referências culturais. Acho que uma das características do racismo é você não permitir que a gente aja na nossa individualidade. Isto, inclusive, fortalece a luta contra o racismo, porque cada um vai lutar de acordo com suas forças, de acordo com suas vivências. É importante a gente ter esta liberdade também. É uma das coisas que eu aprendi. Cada ser humano negro vai ter uma arma que é sua capacidade de combater o racismo que ainda assola o país.
Lembrei-me de uma afirmação muito interessante do acadêmico e estudioso do tema, Muniz Sodré, que propõe outra interpretação para a tese de que brasileiro tem dificuldade de se assumir como racista porque não gosta de sê-lo. Este acadêmico coloca o seguinte: “O brasileiro o faz porque está recalcando aquilo que tem vergonha de mostrar.” O que você acha disto?
O Muniz é um sábio e tem muito a nos falar. Concordo com ele, totalmente. Acho tudo isto tão antigo, tão antigo… A gente já fez tanta coisa! E a discussão continua num estágio que só atrasa o país. Tem uma coisa que eu ouvi que foi muito forte. Bom, o conteúdo é o seguinte: nosso grande valor é algo que nenhum país do mundo tem, que é a diversidade. A gente deveria valorizar as diversas contribuições que cada componente deste povo trouxe para o país: o indígena, o negro, o imigrante italiano, o japonês… Nosso grande valor, o diferencial do Brasil, é este.
Tem-se aqui a possibilidade de se potencializar talento de qualquer pessoa e a gente continua discriminando, não permitindo que as pessoas usufruam da igualdade de oportunidades. Esquece de potencializar talentos, o que, num país como o Brasil, é fundamental. A gente precisa de avanço tecnológico, de avanço cultural. Quando se consegue potencializar todos os talentos, o país só tem a crescer. Isso é básico. E a gente tem que enfrentar este problema: o racismo, o preconceito só atrasam o país. É, inclusive, um problema político.
Voltando à novela, o seu personagem também tem um lado utópico.
É sim. A novela, aliás, tem textos lindíssimos. Numa novela, de modo geral, eu decoro o texto e depois esqueço, mas nesta eu me lembro de quase todos. Gravei uma cena linda que me deixou desconcertado. O Olavo, ator, que é uma criança, contracenando com meu personagem, se referia ao que aconteceu com ele e outro menino que foram discriminados ao tentarem entrar num determinado lugar. Estavam meio tristes. Aí eu dizia: “Isto que vocês passaram aí eu conheço muito bem. Tem nome, sobrenome e data de nascimento: é racismo, preconceito. Na época da escravidão, meus avós, seus bisavós foram trazidos para o Brasil à força. Eles lutaram muito, mas ainda se precisa conquistar respeito. Mas, melhor do que respeito dos outros é a gente se respeitar. Inclusive, tudo isto que estas pessoas falaram para vocês, fala mais deles do que de vocês. Isto só prova que eles são ignorantes. E vocês não têm que desanimar por causa disto. Vão ouvir isto várias vezes na vida. Agora nunca abaixe sua cabeça”. Quando eu disse isto, o ator começou a chorar. Uma criança de doze anos… Ele já tinha lido o texto e ficou tocado. E a novela tem várias passagens como esta. Fico tocado com a novela e a faço com o meu coração.
Como está sendo sua relação com seus colegas de elenco em Lado a lado?
Eu estou tão feliz de estar convivendo com as pessoas. Com o Seu Milton (Gonçalves) que anda tão contente, está um piadista. Estou apaixonado por Zezé Barbosa, uma pessoa que entrou na minha vida para sempre. Uma belíssima companheira de trabalho que tem um ótimo astral e alegra o nosso ambiente o tempo todo. Eu estou, então, apaixonado pelo meu elenco de trabalho. Milton, eu já trabalhei com ele seis vezes, mas desta vez, tem algo especial. É como se fôssemos amigos de infância. Fiquei tão emocionado quando ele falou: “Nossa! O que vai ser da gente quando acabar esta novela? Isso sem falar da Camila, Caio, Thiago…
Lado a lado te fascina bastante, né?
O que me toca é a própria existência desta novela. O fato de estar se contando uma história desta, num veículo tão popular como as telenovelas. Fazendo algo muito especial que no Brasil se faz pouco, que é se apropriar de um fato histórico e levá-lo para a ficção. Na verdade, esta novela é a história de amor entre um homem e uma mulher. O Muniz Sodré acha que, uma das funções que a telenovela pode ter é falar para a fantasia, falar para a autoestima, porque isto toca o coração. Se você fala só do lugar político, vai para a consciência sem passar pelo filtro do coração. E para mim esta novela tem isto. Se formos pensar, é a única que fala sobre negros numa coletividade que é pós-1988. É uma novela em que a individualidade de cada negro está preservada. Os assuntos são muitos e não apenas discriminação racial e racismo. Tia Jurema tem uma relação com a comunidade dela e a religiosidade. O Afonso tem a história do samba. A Isabel fala da luta da mulher para conseguir sua independência. O Zé Maria tem todas as lutas pela libertação que ocorreram no Brasil e a luta para que a capoeira seja aprovada. Assim como o amor, que é um grande tema dele. Acho importante não ficar nesta redução de temas quando se trata de um ator negro. E, a maneira que os autores escrevem, eu acho fantástica.
Você uma vez disse que faltava uma aproximação maior entre roteiristas e autores em relação com a realidade negra de modo que sua representação nos meios de comunicação fosse mais verossímil. Até que ponto um autor poderia “fazer” uma cena em que reproduza o que não viveu, não conhece? Algo mudou?
Acho que isto vem deste outro momento que o Brasil vive. Esta tão falada ascensão da classe C trouxe mudanças, sim. Não é só isto, mas que isto é determinante. Sobre os nossos autores, a Claudia Lage, se não me engano, é historiadora também. E o João Ximenes Braga é jornalista, acho que tem uma relação forte com a cultura negra, tem outro olhar. Isto também é possível pelo momento que o Brasil está vivendo, tanto por causa desta ascensão da classe C, quanto por conta de outras produções que foram viáveis e se transformaram em sucessos de audiência. Tipo Da cor do pecado, Cobras e Lagartos, Ó pai, ó, Suburbia. São produções em que o público disse: “me identifiquei, quero ver.” Na verdade, a televisão está interessada em que as pessoas queiram assistir, em audiência. Se estas se tornaram viáveis, outras produções passam a ser consideradas investimentos confiáveis. Ou seja, é o público falando. Espero que o público tenha consciência de que ele também define o que é produzido, quando prestigia algumas experiências. Mesmo que seja pouco. A série Ó pai, ó só teve quatro capítulos, mas teve uma força de audiência que a televisão disse: “opa!”.
Você está tocando na programação destinada a este segmento de público que está ascendendo socialmente, no qual se inclui um percentual muito grande de negros. Existe ainda uma tarifa popular nas comunidades para se facilitar o acesso da população à TV a cabo. Inegavelmente, são pontos positivos. Entretanto, em Avenida Brasil, vimos uma periferia e histórias vividas por personagens das classes populares onde só havia dois atores negros: Airton Graça e Cacau Protássio. O que acha disto?
Sua pergunta já inclui a resposta. Deveria, de fato, ter uma maior presença negra, ali. Aquela história, na vida real, estaria impregnada de negros. Isto seria natural. Tem a ver com esta não-percepção de que pode ser poderoso nos apropriarmos da diversidade dentro de uma história e das novas possibilidades que podem se abrir com isto. Mas estamos caminhando, é um processo. O que acho que a gente precisa é abrir muito os olhos para estas questões todas.
E Suburbia?
Não consegui assistir nada. Mas há avanços que ficam claros ali: ver cara nova na televisão, é importante incluir outros talentos nestas produções de modo a ampliar estas oportunidades de protagonismo que eu e Taís, por exemplo, temos. E Suburbia traz outra geração de artistas que está ali mostrando seu talento. Além de um autor como Paulo Lins, que é um cara super talentoso, merece estar mais na televisão, mostrando estas questões todas nas quais ele investe em falar na literatura e no cinema. E só por estes investimentos aí, eu já bato palma.
Você vem do Bando de Teatro Olodum. Tem, também uma autenticidade, bem diferente dos artistas que adoram o culto às celebridades. Concorda com os que dizem que Lázaro Ramos tem maior conscientização política do que os atores de sua geração?
Não consigo ver isto como uma atitude politizada, não. Sabe por quê? Isto na verdade, de ser do jeito que eu sou, sem vender uma imagem, foi o que aprendi dentro de casa. Talvez, se formos fazer uma análise mais sociológica, vire uma atitude política. Mas eu aprendi isto dentro de casa com a minha família, com Dindinha, uma mulher com pouco estudo, com pouca escolaridade, uma guerreira que criou 19 crianças e até hoje cria a minha afilhada. Foi a primeira mulher a sair da Ilha de Paty, casou com um estivador. Mostrou que cuidava tão bem das crianças que meus pais, mesmo tendo condições, me deixaram morar com ela. Então, ela tinha valores muito firmes como escutar, respeitar os mais velhos, numa hierarquia que era quase como a do candomblé. Aliás, ela era uma mulher do candomblé.
Sua madrinha é do candomblé. E qual é a sua religião?
Eu sou baiano, né? (risos). Não sou raspado no candomblé, fui criado na religião católica, meu avô que me criou era pastor evangélico da Assembleia de Deus, várias pessoas que eu admiro e conheço são budistas. E eu acabo escutando-as. Estou aberto ao mundo, gosto de respeitar as religiões e pegar ali aquilo que me sirva. Minha mãe era espírita, ia fazer cromoterapia. Fui criado assim, nessa salada.
Mas qual delas lhe fala mais fundo?
Quando eu vou a uma cerimônia de candomblé. Ali eu tenho uma visão, aí sim, já estudada sobre o assunto e que não é só pela educação de Dindinha, mas fruto do período em que eu estava no Bando de Teatro Olodum, da maneira com a qual eu, lá, aprendi a olhar, a perceber as outras referências que existem no candomblé que não apenas a possessão, como por exemplo, a maneira de eles verem família, hierarquia, visão social. Você vê que candomblé é uma religião que tem um Orixá que é metade homem, metade mulher, Oxumaré. Tem outro que é criança, Erê. E todas estas percepções que vêm de um estudo, na verdade, mais até do que de frequentar. Vejo outras coisas que me calam fundo, já que eu me dou conta de que a nossa cultura tem muitas coisas a nos ensinar. Mas por outro tem aspectos da criação católica que são muito fortes em mim também.
O que, exatamente?
Eu fiz catecismo, a primeira comunhão, todo vestidinho de branco. Fiz por opção, inclusive. Meu pai, na época, me perguntou: “Mas vai fazer catecismo, primeira comunhão para quê?”. Aí eu respondi: “Eu quero, meu pai.” E todo o domingo passava três horinhas no fundo da igreja estudando a Bíblia. Há coisas no meu subconsciente que, de vez em quando, falam. A relação com Nossa Senhora Aparecida, por exemplo. Tem uma imagem dela lá em casa. São Lázaro também.
Bom, passemos ao André, de Insensato Coração. Houve quem questionasse o final que ele teve na novela.
O André é um personagem polêmico. Aliás, como todos os meus personagens em novela. Porque, se você for reparar, todos foram polêmicos. O Foguinho, de Cobras e Largatos, foi muito polêmico. Tinha uma coisa afetiva ali que conquistou o público de primeira. Mas a sinopse do Foguinho eu tenho consciência de que até o Emanuel Carneiro tinha receio de fazer. A televisão passou por períodos assim, ou você fazia aquele personagem que era politicamente correto, um cara bem-sucedido, bom pai de família, sem conflitos, ou então, um personagem totalmente marginalizado. Ele ficava ali como coadjuvante, servindo à história dos outros, e geralmente são alguns estereótipos como a doméstica, o bandido. O Foguinho chegou como um anti-herói, algo que até a televisão não estava investindo. Ele fez retornar à telenovela brasileira um tipo de personagens dela afastados há algum tempo, como Roque Santeiro. Personagens que você ama num dia e odeia no outro, que é herói, mas também tem atitudes de vilão. Felizmente deu certo, mas podia não ter dado. Em Duas Caras foi a mesma coisa: um menino da favela que era protagonista da novela, na qual vivia um relacionamento inter-racial, era uma liderança comunitária. Ou seja, envolvido com temas que não eram muito falados em novela. Não tinha muito espaço para isto. Sabemos nós que, no que diz respeito a relacionamento inter-racial, em outras novelas, houve uma reação horrorosa do público no passado. Basta ver o filme do Joel Zito Araujo, A Negação do Brasil, para constatar isso.
André foi considerado um galã por uma parcela do público.
Um personagem interpretado por um ator que sou eu, com estes traços estéticos, com este nariz grande, boca grande, olhos grandes. O que me faz muito feliz, pois é esta a minha cara e eu sempre vivi bem assim, mas que, para muitas pessoas, isto é chamado de feio. Para outros é chamado de bonito, descobri na novela, e provoca até desejo sexual. Mas tem uma corrente de pessoas que acha que, no caso de um personagem como este, o investimento deveria ter sido feito em outro tipo de ator. Tem muita gente patrimonialista no Brasil, não é? Inclusive na posição sobre como devem ser os personagens: o galã tem que ter tal cara, o bandido tal cara. E que acha que existe uma “propriedade” em relação ao personagem que vai ser feito. Na internet vi muita gente escrevendo coisas que comprovavam isto. O bacana da novela que provocou muita polêmica e me deixou feliz é ter feito as pessoas pensarem sobre o desejo sexual, os valores de relacionamento, família. Para mim foi uma novela muita boa como ator, para eu me experimentar neste lugar, já que em outra época não sei se haveria um investimento num ator como eu para fazer este tipo de personagem. E tentei acompanhar com toda a sabedoria possível, tanto as reações positivas, quanto as negativas.
João Carlos Rodrigues diz que há vários arquétipos que dão conta do negro: o “preto velho”, o “negro de alma branca”, o “negro selvagem”, o “negro revoltado”, o “negão”, o “favelado”, o “malandro”, o “crioulo doido”, a “musa”, a “mulata boazuda” e o “afro-baiano”. O André poderia ser incluído na categoria do “negão”, homem de sexualidade exacerbada, o que reafirma o quanto o negro é bom, muito bom, melhor dizendo, de cama?
Não sei. Para mim é sempre muito difícil falar sobre mim porque sei que sou uma exceção. E eu não tenho como esconder que, o fato de eu fazer certos personagens, cai num outro lugar, por causa da trajetória. Depois dá uma olhada no capítulo em que ele fala sobre mim, dizendo que eu estou fora da curva. E eu sei que, no caso de o André ser eu, traz outras reflexões.
Ouvi gente fazendo a seguinte crítica: a Globo, no final da novela, transformou o André, protagonista negro, num cara impotente.
(Risos) Isto já estava escrito desde o início, na sinopse. Um homem que tinha uma vida sexual grande, uma dificuldade de relacionar-se afetivamente e que tratava a mulher de determinada maneira. A quem, depois, a vida iria impondo uma série de enfrentamentos, como o retorno do pai sempre muito ausente, o nascimento do filho e o câncer nos testículos que iria fazê-lo rever os próprios valores. A sinopse desde sempre dizia isto. O ator quer o quê? Desafio. A minha trajetória sempre foi pautada nisto. Eu já experimentei tanta coisa! Claro que tem também meus compromissos políticos que interferem muito nas minhas escolhas, mas, artisticamente, eu procuro sempre o desafio, percorrer caminhos que ainda não foram caminhados.
E qual o motivo disto?
Sabe por quê? Uma das faces mais tristes, mais cruéis do preconceito, do racismo – e aí eu saio da condição de artista para falar do geral – é aquela que diz que existe um dado lugar para alguém. Como se existissem condições de vida e classe social que fossem destinadas a determinado grupo de pessoas. O racismo diz isto. E faz, inclusive, que alguns jovens negros e crianças negras não sonhem com outro lugar. Esta possibilidade de sonhar, a cota racial (na universidade) trouxe. Estou vendo meus trabalhos mais recentes, fazendo uma análise mais sociológica, tem falado muito sobre isto, ou seja, é necessário sonhar mais, estar em outros lugares.
O ‘lado a Lado’ é sobre isto, o filme do Sérgio Machado que vai estrear com nome provisório de Acorda Brasil ou Orquestra de Heliópolis também. Neste filme, um professor de violino vai dar aula na favela de Heliópolis e olha para eles, se transforma. Sonha mais e os meninos também. O vendedor do passado, um filme do Lula Buarque, é a mesma coisa. É um personagem que está em busca de sua origem, porque, a partir dela, destas descobertas, ele pode avançar e conquistar mais coisas. Nele, realizo o sonho de trabalhar com dona Ruth de Souza. Eu falei para eles: “Tem que ser ela! Tem que ser ela!” E eles aceitaram. São filmes que não falam sobre preconceito, sobre racismo, mas o fato de eu os estar fazendo traz a mensagem: sonhe mais! Queira mais, almeje mais, arrisque!
Você esteve na posse do novo ministro chefe do Supremo Tribunal Federal. Joaquim Barbosa é seu amigo?
É sim. Antes até desta polêmica toda do julgamento do mensalão, eu já o conhecia. Nós temos um amigo em comum, frequentamos a casa deste amigo e acabamos criando uma relação, nos conhecendo, conversando. Agora nunca conversei com ele sobre o STF. Nem antes, nem durante. Ele é uma referência para todos nós e me inspira muito tudo o que ele fala sobre educação, sua trajetória, o que ele busca, o que almejou. Vendo-o com a mãe, uma senhora negra daquela idade, me sensibilizei muito ao perceber o orgulho dela, o que é inspirador para todas as famílias. Ela se emocionou tanto que passou mal na posse. Posso imaginar o que se passou na cabeça dela. Mas não vou entrar nesta questão da postura dele no Supremo Tribunal, pois, se a gente for pensar, na verdade, o Joaquim está fazendo o que um juiz deve fazer, que é julgar. E fazer com que as coisas andem. Mas a gente tem uma carência tão grande de uma observação mais assertiva com relação à corrupção e a nossos representantes políticos que parece que isto é uma coisa excepcional. Claro que ele é uma referência, repito, num país onde se carece tanto de referências negras. No Tribunal, entretanto, eu acho que ele está fazendo o que um juiz deve fazer. Mas nunca perguntei: e aí, quem vai ser condenado? (risos).
Nunca conversaram sobre a questão racial?
Diretamente, não.
Spike Lee esteve no Brasil recentemente e comentou-se que ele andou conversando com você. Alguma proposta de carreira internacional em parceria com ele?
Não seria mau, não! Eu aceitaria de bom grado. Ele não fez o convite, mas na hora que fizer já está aceito (risos). Imagina! Um cara que é tão relevante para todos nós! Os filmes que ele faz me tocam muito. Até mesmo os que não falam na questão racial, como Plano Perfeito, com o Denzel Washington. Mas ele veio para cá fazer um documentário sobre este momento pelo qual passa o Brasil e que inclui a nova realidade social e econômica. Por ser quem ele é, teve, é claro, uma aproximação com a comunidade negra. As perguntas feitas a mim foram muito pessoais: como comecei a carreira, os desafios, as conquistas. Falamos muito sobre o protagonismo negro em cinema e televisão, também.
Jorge Coutinho, ator e cineasta negro veterano e respeitado, costuma reclamar um pouco do fato de as novas gerações de artistas não estabelecerem, hoje, uma relação entre arte e política. Na opinião dele, os artistas mais engajados politicamente, como ele e outros, não teriam a quem passar o bastão. O que acha disto?
Eu acho outra coisa. É que os tempos mudaram mesmo e a forma de fazer política também mudou. Na arte, principalmente. A gente tem tantas coisas! Se for falar de audiovisual, tem a democratização trazida pelo digital e ela mostra uma nova maneira de fazer política. A internet influencia muito a juventude. O humor também. E eu acho que a gente tem que descobrir como se usam estas novas ferramentas às quais a juventude está tão atenta para inserir nelas, também, o valor da política.
Você dirigiu Namíbia, não! A proposta do espetáculo era fazer esta articulação entre arte e política?
Sim. Acho que Namíbia entra um pouco nisto! Trata-se de uma comédia, escrita por um autor jovem, o Audri Anunciação, um cara que nunca havia escrito um texto antes na vida, mas que pensava sobre estas coisas ligadas à situação dos negros. Acabou criando um espetáculo de comédia, com um viés político, e de outro lugar. Ou seja, produziu uma maneira diferente de exercitar a carpintaria teatral, um estilo de fazer teatro que tem algo de inédito, principalmente na temática abordada, e que tem um conteúdo político. Um espetáculo que foi criado para durar um mês e está em cartaz há quase dois anos.
Fonte: Raça Brasil
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