Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Em entrevista à EPSJV/Fiocruz, professor do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB) e relator do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação (Plataforma DhESCA Brasil), Sérgio Sauer avalia o avanço do governo de Dilma Rousseff em relação à reforma agrária como pífio e defende que a violência sofrida por militantes de movimentos sociais ligados à reforma agrária é originada por dois principais motivos: a concentração de terra e a impunidade.
O que faz a Plataforma Dhesca Brasil?
A Plataforma Dhesca é uma rede de entidades e movimentos – mais de 40 ao todo – que lutam em prol dos direitos humanos nas mais diferentes áreas, como por exemplo, direitos territoriais (de povos indígenas e comunidades quilombolas), igualdade de gênero e raça, direitos reprodutivos e de opção sexual, direitos ao meio ambiente, direito à alimentação adequada, entre vários outros. São organizações da sociedade civil espalhadas por todo o país que, a partir de noções como a indivisibilidade dos direitos humanos, se unem para denunciar violações e em ações de incidência buscando evitar tais violações.
Além das atividades e lutas de cada organização e movimento social, a Plataforma criou um trabalho feito por relatores nacionais de direitos humanos. Inspirando-se nas práticas dos relatores independentes das Nações Unidas, a Plataforma concebeu e implantou essas relatorias, que são uma experiência única. Essas possuem reconhecimento de órgãos governamentais e de entidades da ONU, que participam do processo de escolha dos relatores e relatoras, que cumprem um mandato de dois anos. São especialistas, pessoas voluntárias que se dispõem a fazer incidências em casos de violações. Atualmente, a Plataforma conta com cinco relatorias, sendo: direito à terra e território, direito ao meio ambiente, direitos sexuais e reprodutivos, direito à educação e direito à cidade. Uma das principais atividades das relatorias é a realização de missões para averiguar e fazer incidência local e em órgãos nacionais responsáveis em casos de violações de direitos humanos. Estas missões geram relatórios que são usados para efetivar as denúncias, divulgar os problemas, violações etc.
Baseado no relatório desenvolvido por vocês, quais áreas são mais críticas atualmente?
Como Relator do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação , posso apontar muitas violações em relação aos direitos humanos, especialmente o não cumprimento dos direitos territoriais indígenas. Apesar da excelente atuação do Executivo Federal na desintrusão [retirada dos não-índios] das terras Xavantes [Terra Indígena Marãwaitesédé], no norte do Mato Grosso, as violações dos direitos dos povos Guaranis Kaiowás são absurdas. Na verdade, já é um escândalo internacional. Não há um plano ou ações efetivas da Funai, ou de qualquer outro órgão do Governo Federal, que garanta os direitos indígenas no Mato Grosso do Sul, por exemplo.
A terceira publicação – denominada “Direitos humanos no Brasil 3: diagnóstico e perspectiva” – é um trabalho conjunto, amplo e exaustivo, que procura traçar um panorama geral dos direitos humanos no país. O relatório aponta muitos problemas, apesar do esforço feito na construção do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), o qual não vem sendo implementado na prática.
Recentemente tivemos dois assassinatos de integrantes do MST, o Cícero Guedes, e agora da Regina dos Santos. Como você vê essa questão de perigo permanente em que vivem os militantes de movimentos sociais, sua proteção e o julgamento de seus casos?
Os conflitos no campo, infelizmente, que resultam no assassinato de lideranças e camponeses, como foi este caso recente, são frutos de dois fatores fundamentais: a concentração absurda da terra e a impunidade. Historicamente, a realidade do campo brasileiro é de uma profunda concentração da propriedade da terra. Os dados do Censo Agropecuário, de 2006, do IBGE, reafirmar esta concentração, pois menos de 1% – 0,915 para ser preciso – das propriedades detém 45% das terras, algo em torno de 147 milhões de hectares. Por outro lado, as pequenas propriedades – com área de até 10 hectares – que são 48% das propriedades, detêm apenas 2,4% das terras. Associada à enorme demanda pelo acesso à terra de famílias sem terras -os dados são controversos, mas se presume algo em torno de 3,7 milhões de famílias sem terra – , esta concentração está na raiz dos conflitos e disputas por terra no Brasil. Associado à concentração, há uma realidade de impunidade. A absolvição de um réu esta semana no Paraná – aliás, julgamento que aconteceu depois de 10 anos do assassinato de uma liderança sem terra no Estado – expressa esta falta de punição. Há uma “certeza” de que a violação da lei, especialmente nas leis de proteção à vida, não resultará em punição. Isto é um fator fundamental dos conflitos e de muitos assassinatos, perseguições, ameaças de mortes no campo brasileiro.
Há uma constante e continua violação, especialmente por parte Poder Executivo, que não cumpre o mandado constitucional de desapropriar para fins de reforma agrária as propriedades que não cumprem a sua função socioambiental. O mandado da Carta Maior é claro, em seu artigo 184, pois estabelece “cumpre à União desapropriar”. Desta violação resulta uma situação de impunidade, inclusive dos casos de violações de direitos humanos e atentados à integridade das pessoas. Não há qualquer dúvida que a realidade de impunidade no campo brasileiro é responsabilidade do Estado e de seus órgãos. Merece, no entanto, especial destaque à responsabilidade do Poder Judiciário, especialmente nos casos de conflitos e violação de direitos – inclusive assassinatos! – das pessoas. Na lógica republicana, o Poder Judiciário é responsável pelo cumprimento da lei e pela punição daquelas pessoas que não a cumprem… A tão badalada “morosidade” desse Poder – que não julga, que não conclui os processos/inquéritos; que protela processos sem fim, etc.) – na verdade, só é vagarosa quando os interesses são de um lado – acaba se transformando em sinônimo de impunidade.
Qual o balanço que você faz do governo de Dilma Rousseff em relação à reforma agrária?
Infelizmente, o desempenho ou os resultados são pífios, especialmente em termos da incorporação, ou melhor, desapropriação de novas áreas para o assentamento de famílias sem terra. As chamadas ações de reforma agrária do governo Dilma, nos dois anos de mandato, foram de apenas 86 desapropriações, o que é um número semelhante ao famigerado Governo Collor (1990-1992), demonstrando que essa não é uma prioridade de governo.
Como você analisa essas mudanças propostas pelo Governo como a descentralização das ações de construção de moradias e de infraestrutura básica dos assentamentos para outros ministérios?
As trocas recentes na Presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), como de alguns cargos no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), de uma maneira geral, não trouxeram mudanças significativas em termos de direção ou orientação política das ações de reforma agrária. Por outro lado, historicamente, é bastante comum quando há baixa execução das ações estratégicas do órgão, especialmente metas pífias de desapropriação para fins de reforma agrária, a formulação de discurso enfatizando a necessidade de mudanças administrativas. Neste sentido, as propostas de descentralização das ações do Incra não são novidade, pois já apareceram na administração Fernando Henrique Cardoso e foram veementemente criticadas pelos movimentos sociais do campo.
Teoricamente, ações descentralizadas e combinadas entre vários órgãos governamentais deveriam ser mais efetivas e mais eficientes, mas isto só em teoria. Descentralização, no entanto, pode também significar desobrigação e fragmentação, risco sério em áreas tão sensíveis como é o atendimento de necessidades básicas de populações historicamente marginalizadas, como sempre foram excluídas as populações do campo da maioria das políticas públicas. Há uma enorme resistência dos órgãos governamentais, por exemplo, de estender os programas de moradia para o campo. Descentralizar, portanto, pode significar não realização ou não implementação de tais programas e políticas, consequentemente descentralização se torna sinônimo de desobrigação e descaso.
E o papel reformulado do Incra? Como ele deveria atuar efetivamente?
Em um “mundo ideal”, um órgão como o Incra seria mais efetivo se concentrasse suas ações, esforços e recursos nas políticas fundiárias, mas isto não acontece efetivamente. Associado a isto, as demandas históricas por reforma agrária não se reduzem ao acesso à terra – uma ação fundamental que o Incra não vem efetivando, conforme dados de desapropriações nos últimos anos -, mas devem ser complementadas por outros programas e ações como, por exemplo, criação de escolas de qualidade no meio rural, dar condições de moradia dignas, e assim por diante. Certamente, isto exige que o Incra seja um órgão ágil e efetivo em várias áreas, o que demanda também agentes públicos bem preparados, qualificados e remunerados. Agora, nada disto acontece se não há uma vontade e uma decisão política para tanto, o que não vejo nas propostas de reformulações do Incra…
A luta por terras no Brasil é um dos principais agravantes de desrespeito ao direito humano e das terras. Como resolver isso?
Apesar de todas as mudanças econômicas e sociais, a terra continua sendo sinônimo de poder no Brasil. Este é um elemento-chave na não implantação de uma reforma agrária efetiva por aqui. Associado a isto, as políticas públicas, as políticas econômicas e seus incentivos, dos últimos 20 ou 30 anos, estiveram – e continuam – voltadas para reforçar um modelo econômico agroexportador que é monocultor e excludente, que beneficia poucos. Qualquer redistribuição do acesso à terra, ou mesmo garantia de direitos territoriais de povos indígenas ou quilombolas, representam ameaças a este modelo e seus privilégios, o que é ferrenhamente combatido por seus principais beneficiários. Agora, do ponto de vista estritamente econômico, em longo prazo, o custo será elevado para o conjunto da sociedade brasileira, pois não é possível imaginar um crescimento sustentado baseado apenas na exportação de matérias primas, ou seja, basear a economia na exportação de recursos naturais, sem agregação de valor, sem processos consistentes de industrialização etc.
Você acha que é necessário uma mudança radical no modelo agrário e agropecuário no país?
Sem sombra de dúvidas, pois o modelo agropecuário atual é excludente e ambientalmente insustentável. Por outro lado, a tese de um sistema bimodal de produção e ocupação do campo tem lugar e vários defensores, ou seja, defendem que haveria “lugar para todos” – pequenos e grandes – no campo. No entanto, essa não é nossa realidade. Infelizmente nunca foi assim, inclusive há de se reconhecer que os enfrentamentos não são opção de alguns maniqueístas de plantão. Se há convivência também há muita disputa, inclusive disputas pela assistência do Estado e por recursos públicos. Os recentes processos de criminalização de lideranças e movimentos sociais salientam mais as disputas que a convivência, deixando claro que a questão não se resolve apenas com um acordo econômico-produtivo.
A questão da terra continua um tema atual, especialmente se olharmos essa terra como parte, por exemplo, da sustentabilidade social e ambiental. A terra, como um bem não renovável, adquire outra dimensão, portanto, não pode ser reduzida a uma noção ou a um problema econômico-produtivo. Não estou querendo vincular com a dimensão de identidade cultural – tão cara aos nossos povos indígenas e outras comunidades que dependem de seus territórios -, mas apenas enfatizar que existe uma dimensão e um desafio vinculado à função socioambiental da terra, o que é uma perspectiva nova e um desafio imenso!
Como você avalia a política de governo de dar incentivos fiscais para o agronegócio? O que essa postura significa?
Como disse antes, várias opções macroeconômicas vêm tornando o país dependente – especialmente com o objetivo de equilibrar a balança comercial – da exportação de matérias primas. Esta exportação não depende só das chamadas commodities agrícolas, mas também as não agrícolas como, por exemplo, a de minério de ferro. É, portanto, uma dependência econômica da exportação de recursos naturais. Esta lógica é mantida inclusive devido a somas elevadas de renúncia fiscal (produtos exportáveis que não recolhem PIS, Cofins, etc.), ou seja, a sociedade brasileira acaba “pagando a conta”.
E em relação à agricultura familiar? Há incentivos como existem para o agronegócio?
Em relação à agricultura familiar, os últimos mandatos presidenciais deram maior relevância a este setor, pois foram criados ou ampliados programas importantes, inclusive alguns com reconhecimento internacional, como é o caso dos programas que procuram criar mecanismos de comercialização dos produtos da agricultura familiar com o fornecimento de alimentos para populações em situação de insegurança alimentar. Há que reconhecer aí avanços, mas há uma lacuna em medidas estruturantes, ou seja, as políticas não são capazes de alterar – nem mesmo apontar na direção de uma mudança futura – o modelo agroexportador.
Um dos principais gargalos da agricultura familiar é justamente a falta de acesso ou o acesso a pouca terra, resultando não só em famílias sem terras, mas também em grande quantidade de minifúndios, ou seja, de pequenos produtores que não possuem terra suficiente. Os dados do Censo Agropecuário, mencionados antes, de que 48% das propriedades possuem área de até 10 hectares, estão basicamente explicitando a existência de minifúndios, via de regra, com dificuldades para produzir e se reproduzir devido à falta de terra.
Qual é o peso do agronegócio e da agricultura familiar em relação à disputa de terras? Sabemos que a agricultura familiar é que alimenta o país, mas por que um fator tão importante como este não é levado em conta nesta disputa?
São dois temas fundamentais e interconectados, mas com nuances diferentes. Em 2008, o Banco Mundial publicou um relatório afirmando a existência de uma “corrida mundial por terras”, com altos investimentos de países, empresas multinacionais – inclusive do setor financeiro e de fundos de pensão – na compra de terras na América Latina e na África. hHá uma busca por terra, mas mais pelo controle dos produtos da terra. Agora, esses produtos são commodities agrícolas e não agrícolas, mas não alimentos. Essa corrida vem acirrando a demanda por terras – os embates em torno das alterações do Código Florestal, por exemplo, devem ser entendidos também nesse contexto -, o que acaba impactando negativamente sobre a agricultura familiar.
A produção de alimentos, por sua vez, não recebe a devida atenção, por uma série de razões, mesmo havendo frequentes expressões de preocupação em relação à segurança alimentar. A imagem ufanista do Brasil como “celeiro do mundo” é simplesmente negada quando este se torna importador de feijão da China e leite -do Uruguai. Estes são dois produtos de nossa base alimentar, mas a importação vem sendo feita inclusive porque é mais barato – ou dá mais lucros para as empresas do setor – do que incentivar a produção e o fortalecimento da agricultura familiar. Ainda, os índices inflacionários recentes foram provocados, entre outros itens, pela alta dos preços dos alimentos, mas isto não acontece porque a agricultura familiar está cobrando mais caro por sua produção. Ao contrário, as transações comerciais, inclusive as importações, são fundamentais no estabelecimento de preços, o que tem pouco há ver com a produção interna de alimentos, especialmente pela agricultura familiar.
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