“O senhor Luís Inácio Adams tem que explicar à presidente Dilma, à nação brasileira e aos povos indígenas por que está bancando uma postura que é jurídica e politicamente equivocada”, diz o assessor jurídico do Instituto Socioambiental.
A portaria 303 da Advocacia Geral da União – AGU, publicada na semana passada, orienta os “órgãos da União a agir de forma inconstitucional, de forma a diminuir os direitos fundamentais dos povos indígenas. Ela passa a orientar uma ação ilegal do próprio Estado”, avalia Raul do Valle em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Segundo ele, ao se antecipar à decisão doSupremo Tribunal Federal – STF, e determinar as 19 condicionantes utilizadas no caso Raposa Serra do Sol como regra geral para as demais terras indígenas, a AGU “não só fez um ato totalmente atabalhoado como também acabou incorporando, sem nenhum tipo de critério e de ressalva, várias das condicionantes que são claramente inconstitucionais”.
Na opinião do advogado, o maior equívoco da portaria diz respeito ao artigo que restringe o direito de uso dos índios sobre as terras já demarcadas. “Como o governo reconhece o mínimo de terras indígenas possíveis, tenta restringir o uso das terras e utilizar os recursos delas. A portaria surge com esta proposta: a de restringir o direito de uso e de soberania. Os índios passam a ter a terra, mas com uma série de limitações”, esclarece.
Valle defende a revogação da portaria 303 e argumenta que a suspensão provisória por dois meses não tem sentido. “Segundo a AGU, a portaria ficará suspensa por dois meses, período em que os povos indígenas serão consultados. Não sei bem como será realizada essa consulta, porque não se pode consultar a restrição de direitos fundamentais determinados pela Constituição Federal”, ironiza.
Raul do Valle é advogado, mestre em Direito Econômico, formado pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como assessor jurídico do Instituto Socioambiental – ISA, onde também é coordenador do Programa de Política e Direito. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os limites jurídicos da portaria 303, considerando a Constituição Federal? Em que pontos ela pode ser considera inconstitucional?
Raul do Valle – A questão da inconstitucionalidade é um pouco mais complexa do que a própria portaria em si. O Supremo Tribunal Federal – STF, quando da decisão do caso Raposa Serra do Sol, acabou estabelecendo um acordo de conveniência entre os ministros, acatando a uma série de condicionantes para aquele caso. Ficou claro que as condicionantes diziam respeito somente àquele caso. Recentemente, o STF definiu em outros julgamentos que aquelas condicionantes não se aplicavam automaticamente a outros casos.
Várias dessas chamadas condicionantes, termo que não existe no Direito, são regras novas que o STF acabou legislando e que são inconstitucionais. Por incrível que pareça, o próprio STF aceitou para o caso Raposa Terra do Sol alguns pontos que são contrários à Constituição Federal e a convenções das quais o Brasil é signatário, convenções que devem ser respeitadas pela Constituição brasileira.
A Advocacia Geral da União – AGU, ao se antecipar ao próprio STF e estabelecer essas condicionantes – que ainda estão sendo discutidas –, como uma regra geral, não só fez um ato totalmente atabalhoado como também acabou incorporando, sem nenhum tipo de critério e de ressalva, várias das condicionantes que são claramente inconstitucionais. Um exemplo é a condicionante que estabelece poder haver uma série de obras em terras indígenas, supostamente obras de interesse nacional e estratégico – com um conceito muito vago e nebuloso. Um outro é reiterar que essas obras não precisam ser consultadas pelos povos indígenas. O problema dessa condicionante não é a realização de obras, mas o fato de realizá-las em terras indígenas sem consultar os povos. Isso é absolutamente inconstitucional e antidemocrático. Essa determinação fere os direitos básicos de qualquer cidadão brasileiro, e principalmente o dos povos indígenas.
A Constituição é explícita ao dizer que as terras indígenas são áreas de usufruto exclusivo dos povos indígenas. Portanto, não deve haver outros tipos de uso por terceiros, com duas exceções que a própria Constituição determina: hidrelétricas e mineração. Nesses dois casos, a Constituição é explícita em dizer que tem que haver consulta aos povos indígenas, e eles têm direito a participarem dos lucros e benefícios dessas atividades econômicas que serão feitas dentro das suas terras.
O STF, em outra condicionante, diz que os índios, diferentemente de qualquer cidadão brasileiro, não têm direito a serem indenizados por obras que passem nas suas terras e não podem ter qualquer tipo de participação econômica nessas obras. Isso é autoritarismo.
IHU On-Line – A Convenção 169 da OIT é desconsiderada neste caso? Já houve alguma manifestação da corte internacional por conta dessa portaria?
Raul do Valle – Ainda não houve nenhuma manifestação, porque a Portaria 303 é recente. De todo modo, ela é, sim, flagrantemente contrária à Convenção 169 da OIT, que estipula o direito de consulta prévia dos povos indígenas e outros direitos que essa portaria afeta. Um deles é o direito de os indígenas gerirem seu território. Essa portaria adota uma das condicionantes do voto do ministro Menezes Direito, que é não só inconstitucional como também imoral, antidemocrática e contrária a uma realidade que já está se impondo nas unidades de conservação criadas dentro de terras indígenas: a necessidade de gestão conjunta da área, que considerada tanto terra indígena como unidade de conservação. Nessas áreas existe um objetivo, uma necessidade de conservação da biodiversidade. Então, o órgão gestor, que pode ser federal ou estadual, e os índios têm que chegar a um acordo do que pode ou não ser feito nesse território.
O voto do ministro Menezes Direito, agora reproduzido na portaria da AGU, diz que o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) pode fazer o que quiser na área, e que os índios poderão ser ouvidos, mas não precisam participar da construção e da execução do plano de preservação da área. Eles serão ouvidos, mas poderá se levar ou não em consideração o que eles disserem. Essas medidas afrontam a Convenção 169 da OIT, e também a Declaração da ONU para os povos indígenas, da qual o Brasil é signatário.
IHU On-Line – De que maneira a portaria 303 interfere na Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas – PNGATI?
Raul do Valle – Sabemos que a PNGATI foi amplamente consultada pelos povos indígenas, e o resultado dessa política parou na mesa da presidente Dilma Rousseff, onde permaneceu durante dois anos por várias razões. Dentre elas, porque a AGU dizia que não se poderia falar em território indígena, pois isso seria uma ameaça à soberania nacional, e que não poderia haver gestão compartilhada em unidade de conservação. Ou seja, a AGU adotou, na discussão interna do governo para a PNGATI, uma postura de submissão dos povos indígenas aos interesses do Estado e da administração pública. Uma atitude totalmente autoritária e descabida no século XXI.
Entretanto, quando a PNGATI foi aprovada, ficou determinado que as unidades de conservação sob a posse de terra indígena deveriam ter uma gestão compartilhada, elaborada e executada em conjunto pelos órgãos responsáveis e pelos indígenas. A Portaria 303 diz o contrário. Como pode um decreto de três meses atrás, publicado pela presidente Dilma, ser contrariado por uma portaria interna da AGU? No mínimo o governo é esquizofrênico.
IHU On-Line – Esta não é a primeira vez que a AGU se manifesta em relação às terras indígenas. O que a portaria 303 demonstra em relação ao posicionamento da União neste caso?
Raul do Valle – Vejo uma mudança de postura preocupante na AGU, sobretudo na gestão atual do advogado da União, Luís Inácio Adams. Quando José Dias Toffoli era advogado geral da União, ele impôs embargos de declaração, onde questionava várias condicionantes determinadas no caso Raposa Serra do Sol, porque elas eram inconstitucionais e porque iam contra a legislação e a Constituição brasileiras. Quando o Toffoli saiu, e entrou o Luís Inácio Adams, o posicionamento da AGU começou a mudar radicalmente. Na época do Toffoli, a AGU tinha uma postura pró-povos indígenas, que é a função dela, já que é dever da União defender os direitos e interesses dos povos indígenas.
A gestão Luís Inácio Adams fez uma mudança radical: ameaçou os procuradores da República, que estão defendendo os direitos fundamentais violados no caso Belo Monte; e no caso, por exemplo, da defesa do decreto federal que regulamenta a titulação de terras de quilombos, a atuação do advogado geral da União na defesa foi pífia, ou seja, uma sustentação superficial, claramente sem nenhum tipo de compromisso com o caso. E agora ele determina essa portaria da AGU, que não é consensual. Muito pelo contrário. Dentro da própria AGU existem muitos procuradores e advogados que não concordam com a portaria, a qual foi bancada politicamente pelo advogado geral da União. Em minha avaliação, a gestão Luís Inácio Adams é claramente anti-indígena, antipopulação tradicional e antiambiental.
IHU On-Line – A AGU tem poder jurídico para determinar essa portaria e intervir na atuação dos procuradores?
Raul do Valle – A AGU é o grande consultor jurídico da União. Com relação aos procuradores, a AGU já ameaçou alguns, que dizer, fugiu da sua função e usou do seu cargo para ameaçar outros funcionários públicos, que estão exercendo sua função, o que é um absurdo.
Ao divulgar a Portaria 303, a AGU faz algo grave, pois orienta a atuação de todos os órgãos da União com relação aos povos indígenas. Quer dizer, orienta os órgãos da União a agir de forma inconstitucional, de forma a diminuir os direitos fundamentais dos povos indígenas. Ela passa a orientar uma ação ilegal do próprio Estado.
IHU On-Line – Diante da portaria 303, como ficam as terras indígenas já homologadas e demarcadas?
Raul do Valle – A Portaria 303 determina uma regra geral de que todos os procedimentos relacionados às terras indígenas serão revistos, e que é proibido ampliar as terras indígenas já demarcadas, com exceção de casos em que for verificado um vício insanável no procedimento administrativo original. O que eles estão dizendo com isso? Que é preciso identificar que o procedimento original não cumpriu com algum rito correto. No caso de ampliação de terras indígenas, o problema básico é que o procedimento original não previu a proteção da área total de ocupação tradicional indígena. É isso que justifica a ampliação de uma terra indígena, ou seja, os índios estão em uma área menor do que é a área de ocupação tradicional. Mas a consequência disso é que, ao identificar que os procedimentos originais são nulos, determina-se a anulação de todo o procedimento original e, portanto, a terra que existe deixa de existir para abrir um novo procedimento por uma terra maior. Se isso for aplicado, violará os direitos de uma forma gravíssima.
É como se um cidadão que tivesse o direito de receber mil reais de aposentadoria só recebesse quinhentos reais do INSS. Para conseguir receber os outros quinhentos reais, ele teria de devolver ao INSS tudo o que o governo depositou na conta dele, para abrir um pedido e passar a receber os mil reais. Quer dizer, permite-se que os povos indígenas lutem pelos seus direitos, mas na prática dificulta-se-lhes a luta. Se os indígenas querem ampliar as suas terras, eles podem fazê-lo, mas terão de abrir mão do que já conquistaram para disputar um pedaço de terra maior, que é deles por direito.
IHU On-Line – Qual é o ponto mais polêmico da portaria 303?
Raul do Valle – O maior problema da Portaria 303 é que ela restringe o direito de uso dos índios sobre as terras já demarcadas. Como o governo reconhece o mínimo de terras indígenas possíveis, tenta restringir o uso das terras e utilizar os recursos delas. A portaria surge com esta proposta: a de restringir o direito de uso e de soberania. Os índios passam a ter a terra, mas com uma série de limitações. Em muitas hipóteses, terceiros poderão utilizar os recursos que estão disponíveis nessas terras, sem necessidade de consultar os povos indígenas.
Se essa portaria passar a valer, estaremos vivendo uma nova época no reconhecimento de direitos indígenas no Brasil. Na área de direitos indígenas, assim como na área de direito ambiental, estaremos dando um grande passo para trás no reconhecimento de direitos dessas minorias. Esta portaria já está sendo comemorada pela Confederação Nacional da Agricultura e pelos setores mais conservadores do Brasil, que estão aplaudindo a decisão da AGU.
IHU On-Line – Qual a possibilidade de revogação da portaria 303?
Raul do Valle – A portaria foi suspensa, porque a Fundação Nacional do Índio – Funai teve uma postura correta e firme, dizendo que não a aceitava. De todo modo, essa suspensão não é a solução. Segundo a AGU, a portaria ficará suspensa por dois meses, período em que os povos indígenas serão consultados. Não sei bem como será realizada essa consulta, porque não se pode consultar a restrição de direitos fundamentais determinados pela Constituição Federal. Obviamente, se forem consultados, os indígenas não aceitarão a construção de uma hidrelétrica e a instalação de uma base militar em suas terras. E aí, caso eles não aceitem, o que a AGU irá fazer? Em nota divulgada, a AGU deixou claro que não irá mudar de posição.
Vários setores do governo estão indignados com essa portaria. Espero que os valores que levaram o então candidato Lula à presidência resistam dentro do governo. Espero também que possam enterrar de vez essa portaria. Se isso não acontecer, tenho certeza que ela será julgada na justiça.
IHU On-Line – Gostaria de acrescente algo?
Raul do Valle – É importante destacar a mudança de postura da AGU. Não consigo entender como o governo federal deixa isso acontecer. A AGU teve uma guinada fenomenal para pior na postura com relação aos direitos indígenas. O senhor Luís Inácio Adams tem que explicar à presidente Dilma, à nação brasileira e aos povos indígenas por que está bancando uma postura que é jurídica e politicamente equivocada.
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