Episódio recente protagonizado pela AGU revela as contradições na orientação das políticas indigenistas no âmbito federal.
Raquel Júnia – EPSJV/Fiocruz
No dia 16 de julho, a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a portaria 303/2012, que referenda 19 condicionantes para demarcação e atuação nas terras indígenas. Entre outros aspectos, as condicionantes desconsideram a necessidade de consulta prévia aos índios para empreendimentos considerados estratégicos para o estado brasileiro nos territórios indígenas, como as hidrelétricas, e proíbem a expansão das terras já homologadas. A portaria não inventa a roda, mas retoma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em 2009, quando foram elencadas pelo então ministro Menezes Direito essas condicionantes que agora são referendadas pela AGU na portaria. Assim que foi publicada, a decisão recebeu críticas de todos os lados, inclusive de setores do próprio governo, pela voz da Funai.
Após dois dias de informações desencontradas por parte da Funai, que afirmava que a portaria seria suspensa pela AGU para que os índios fossem consultados à respeito e assim poderem propor modificações ao documento, e por parte da AGU, que dizia que ainda estava avaliando o pedido de suspensão, a portaria 303 finalmente foi suspensa no dia 26 de julho, por meio de uma outra portaria -308/2012 – publicada no Diário Oficial da União. A nova data para início de vigência da norma é 24 de setembro.
Ainda na semana passada, organizações indígenas e socioambientais se mobilizaram prontamente e em uníssono destacaram o quanto a medida fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e a própria Constituição Federal. As duas leis (a Convenção também tem peso de lei quando é referendada pelo país) afirmam a necessidade de consulta prévia aos indígenas sobre a exploração de recursos naturais em seus territórios e empreendimentos que os afetem diretamente.
Para essas organizações, a forma como o governo federal trata a questão indígena está repleta de contradições, e o episódio recente é só uma demonstração disso. “A portaria é extremamente danosa aos povos indígenas e aos seus direitos, desrespeita o aparato legal vigente no país. A nossa Constituição garante aos povos essa autonomia sobre os seus territórios, que é um patrimônio da União, mas que a partir do momento que é reconhecido e demarcado, fica sob o usufruto permanente e exclusivo do povo indígena ou dos povos indígenas que vivem naquele espaço. A portaria é muito desrespeitosa, pois abre um flanco amplo de esbulho da terra já demarcada, sob a justificativa genérica do interesse nacional”, avalia o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto.
Na mesma linha, organizações indígenas e indigenistas que compõem a Rede de Cooperação Alternativa lançaram uma nota de repúdio à portaria, assim como a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Nossa indignação diz respeito ao fato de que o Governo brasileiro iniciou um processo junto a representantes indígenas e quilombolas para regulamentar o direito de Consulta Prévia, Livre e Informada, dispositivo constante da Convenção 169 – ratificada pelo Brasil e com força de lei – e a AGU atropela o processo afirmando que determinadas medidas não serão objeto de consulta às populações diretamente afetadas, em claro descompasso e desconsideração com a legislação vigente”, afirma a nota. Várias outras organizações da sociedade civil também divulgaram manifestos em oposição à portaria.
De acordo com a AGU, a portaria 303 visa regulamentar a atuação dos advogados públicos e procuradores em processos judiciais envolvendo a demarcação de terras indígenas em todo o país. “O objetivo da publicação é assegurar a estabilidade jurídica aos órgãos da AGU em ações sobre o tema e fornecer orientação técnica. A norma prevê, entre outras coisas, que o direito dos índios às áreas é inalienável e imprescritível, e que as tribos poderão usufruir das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas sem o pagamento de quaisquer impostos, taxas ou contribuições”, contesta a AGU, em matéria publicada no dia 26 de julho, em seu site. “A Portaria ressalta que a União está autorizada a instalar equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pelo Estado, especialmente os de saúde e educação, dentro ou que passe pelas reservas indígenas demarcadas. No entanto, não afasta e nem impede que seja feita consulta prévia às comunidades sobre o assunto”, continua a notícia. Até o fechamento da reportagem, a AGU não se pronunciou sobre o pedido de entrevista feito pela EPSJV/Fiocruz ao órgão.
A portaria transcreve na íntegra a lista de condicionantes incluídas na decisão sobre a Raposa Serra do Sol, algumas bastante polêmicas e criticadas pelos movimentos indígenas e organizações indigenistas como a condicionante II, que diz que “o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional”, ou a condicionante V, que diz: “o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai”.
Outra polêmica diz respeito às unidades de conservação que se sobrepõe às terras indígenas. A portaria delega ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) a autoridade para administrar essas áreas, apesar de acrescentar que as comunidades indígenas deverão ser ouvidas. Reportagem do Instituto Sociambiental (ISA) divulgada dois dias após a publicação da portaria, aponta, entretanto, que tem havido esforços por parte do ICMBio no sentido de atingir um planejamento participativo junto aos indígenas na administração dessas áreas, e lembra que, inclusive, a recém lançada Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI), criada pelo decreto federal 7.747, de 5 de junho de 2012, afirma que deve haver “planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição”. O ISA faz parte da Rede de Cooperação Alternativa, um dos movimentos que se posicionaram rapidamente contra a portaria.
Para Raposa Serra do Sol ou para todas as terras indígenas do país?
Tanto a Funai, quanto as diversas entidades da sociedade civil que se manifestaram no decorrer dessas duas semanas apontaram também a falta de embasamento jurídico na aplicação das condicionantes às terras indígenas. Esses setores argumentam que como o STF sequer julgou ainda os pedidos de revisão da decisão (conhecidos juridicamente por ‘embargos de declaração’) sobre as condicionantes no processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, elas não poderiam valer, como quer a AGU. “O julgamento da Petição 3.388-Roraima (referente ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol) ainda não foi encerrado, tendo em vista a existência de embargos de declaração pendentes de decisão junto à Corte Suprema, os quais visam esclarecer a interpretação e os efeitos atribuídos às condicionantes estabelecidas na decisão do caso mencionado. Além disso, o próprio Supremo já se manifestou no sentido de que a decisão proferida no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol não possui efeito vinculante para os demais processos envolvendo a demarcação de terras indígenas, conforme consta nas Reclamações 8.070 e 13.769”, aponta a nota da Funai. Procurada pela EPSJV/Fiocruz, a assessoria de imprensa da Funai informou que a presidente do órgão não daria declarações sobre a portaria neste momento.
Para a AGU, no entanto, está claro que as condicionantes servem para todas as terras indígenas desde o momento em que foram incluídas no processo de Raposa Serra do Sol. “A AGU entende, segundo análise técnica, que quando o STF prescreve uma condicionante, ‘está indicando que a decisão da Corte é no sentido de que todos os procedimentos que estão em violação daquela condicionante são desconformes ao direito’, afirma a matéria da assessoria de imprensa da AGU se referindo à nota técnica 24/2012, da Consultoria Geral da União, que confirmou a suspensão da portaria. A matéria continua dizendo que a nota técnica “esclarece que a lista de condicionantes representa um marco constitucional no tratamento das questões de demarcação e administração nas áreas indígenas” e que por isso deve ser parâmetro para a atuação da AGU.
O Cimi também discorda totalmente. “Nossa interpretação do julgamento da petição 3.388, é que as condições dela decorrentes valem especificamente para o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A AGU está se antecipando inclusive ao próprio julgamento final que ainda não ocorreu. Por isso entendemos que a portaria não tem legitimidade jurídica e, consequentemente, está sendo questionada politicamente pelos povos indígenas, entidades indigenistas, setores vinculados à defesa dos direitos humanos. Acreditamos também que o governo federal deve reconhecer o erro que cometeu e revogar em definitivo a portaria”, responde o secretário executivo do Cimi. “A própria comunidade de Raposa Serra do Sol foi quem interpôs, por meio de seus advogados, esses embargos de declaração, justamente para que os ministros do STF esclareçam com maior vidência o significado dessas condicionantes e a extensão delas, por isso que dizemos que mesmo o Supremo ainda deve fazer correções nessas condicionantes, uma vez que algumas delas limitam o usufruto nas terras indígenas”, observa Cleber.
Para o Cimi, o posicionamento da AGU decorre da pressão de setores ligados ao agronegócio brasileiro. “Essa pressão foi explicitada inclusive nesses últimos dias por diferentes representantes do setor do agronegócio, seja a Famasul [Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul], sindicatos rurais da Bahia e a própria presidente da CNA [Confederação Nacional da Agricultura] enaltecendo a portaria e manifestando publicamente que ela é resultado das articulações e pressões políticas desse setor dos grandes proprietários rurais, já bastante privilegiado no país”, diz Cleber. “Esse setor ruralista tem uma influência muito grande dentro do governo a ponto de fazer com que a AGU, que tem a tarefa constitucional de fazer a defesa do interesse da União frente a questões particulares, faça, por meio dessa portaria, justamente o contrário, porque ao dificultar as demarcações de terras indígenas em benefício do setor agrário, a AGU está dificultando que o Estado brasileiro reconheça a existência de terras que são parte do patrimônio da União e faz isso em benefício de particulares. Isso só pode ser interpretado de uma forma: o governo está se deixando levar pelas pressões políticas vindas do setor dos grandes proprietários rurais”, acrescenta.
De fato, os setores ligados ao agronegócio expressaram contentamento com a portaria. A senadora Kátia Abreu (PSD-TO), presidente da CNA, e uma das mais reconhecidas defensoras dos interesses do agronegócio, publicou em sua coluna quinzenal no jornal Folha de S.Paulo um elogio à portaria, no dia 21 de julho. Intitulado “Segurança Jurídica, um bem comum”, o artigo afirma que a portaria “confere segurança jurídica ao tema da demarcação e gestão das terras indígenas”. “A partir de agora, o tema já não será uma abstração, gerido por discursos demagógicos de ONGs, que pretendem colocar o Brasil no banco dos réus também nessa questão”, afirma a senadora. Mais adiante, ela pede o aperfeiçoamento da portaria no que diz respeito à expansão das terras já demarcadas, que a portaria proíbe, embora aponte exceções. “Embora represente um avanço, a portaria pode – e deve – ser aperfeiçoada. Se, por um lado, impede a ampliação de terra indígena já demarcada, ainda não define claramente ‘os casos de vício insanável ou de nulidade absoluta’. Nada, no entanto, que não se possa corrigir. Com essa iniciativa, a que se somam a atualização do Código Florestal e a adoção do seguro agrícola como uma das prioridades do novo Plano Safra, o mundo rural alcança um novo patamar de segurança jurídica, em benefício de todos os brasileiros”, comemora. A senadora Kátia Abreu foi procurada para opinar sobre a portaria, mas respondeu por meio de sua assessoria de imprensa que está se recuperando de uma cirurgia e solicitou que a reportagem volte a contatá-la após o recesso parlamentar.
Assim que a portaria foi publicada, a Famasul também divulgou uma nota elogiando a atitude da AGU e confirmando a mobilização da própria entidade e de outros sindicatos rurais para conseguir a portaria. “Para a Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, a publicação da portaria é resultado de um esforço conjunto da instituição e seus sindicatos rurais, a bancada federal, governos, agentes políticos e vários atores nacionais. A decisão vai ajudar na resolução dos litígios registrados nas propriedades antes pretendidas pelos indígenas. A solicitação para que o governo federal adotasse como “efeito vinculante” o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), de março de 2009, que decidiu pela demarcação contínua da área de 1,7 milhão de hectares da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi oficializada à Advocacia Geral da União (AGU) em novembro de 2011. O objetivo foi de agilizar os julgamentos das terras sob conflito, passando a solução para o próprio governo”, informou a federação em seu site.
Contradições
“Percebemos nessa portaria da AGU um claro tom ruralista. Isso demonstra a influência que a bancada ruralista tem tentado exercer sobre a Funai e sobre as terras indígenas”, avalia o servidor da Funai, Manoel Prado. Em greve, os servidores da Funai realizaram no dia 26 de julho uma manifestação em frente à AGU contra a portaria. Segundo Manoel, que é do comando de greve, em pelo menos 14 estados onde há regionais da Funai foram realizadas manifestações contra o recente posicionamento da AGU. “Está em curso no âmbito do governo federal um grupo de trabalho interministerial, e a Funai participa dele, com o objetivo de regulamentar o direito de consulta aos povos indígenas, assegurado pela Convenção 169, que foi ratificada pelo Brasil, então só aí a gente percebe uma clara contradição dentro do próprio governo sobre como lidar com esses direitos”, afirma Manoel. Ele reforça que, para os servidores em greve, a suspensão da portaria não é suficiente.
Para o Cimi, ao mesmo tempo em que o governo federal opta por um modelo de desenvolvimento de superexploração de recursos naturais atendendo a interesses diversos como os dos setores vinculados à extração mineral e à geração de energia, caminham em marcha ré os processos de reconhecimento e demarcação de novas terras indígenas. Segundo o Conselho, o número de demarcação de terras dos últimos três anos é o menor da história recente do país, mesmo se comparado ao período da ditadura. Atualmente há 159 terras na fila da Funai para identificação futura e 339 terras sem qualquer providência.
Segundo Manoel Prado, a lentidão no processo de identificação das terras indígenas pela Funai se deve à falta de estrutura do órgão, às pressões políticas e à judicialização dos processos de reconhecimento. “Esse é um dos componentes que mais tem dificultado o trabalho da Funai. Há uma avalanche de judicializações atualmente, cada procedimento que a Funai realiza de identificação e delimitação acaba sendo judicializado por sindicatos rurais e, muitas vezes, a Funai tem que aguardar o julgamento dessas ações para conseguir concluir esses estudos”, explica.
Associado a esse quadro, o Cimi avalia que está em curso uma ofensiva para facilitar a exploração de recursos naturais nas terras já reconhecidas e homologadas. Um exemplo disso é o PL 1610/1996, que regulamenta a mineração em territórios indígenas. “É o caso também da PEC 215/2000 da Câmara e da PEC 038/1999, do Senado, que são análogas em seu conteúdo e transferem o poder de demarcação de terras indígenas do poder executivo para o poder legislativo, também para titulação de terras quilombolas e criação de novas unidades de conservação. Essa matéria avançou rapidamente nos últimos períodos e foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e, caso seja aprovada, quem terá poder de decisão sobre se uma terra é ou não tradicional indígena serão justamente aqueles que muitas vezes são os invasores das terras indígenas. Dificilmente será possível aprovar novas demarcações”, lamenta Cleber. Ele lembra que, ao mesmo tempo, proposições importantes para os povos indígenas, como a Criação do Conselho Nacional de Política Indigenista (PL 3571/2008), estão paralisadas, no caso do Conselho, há mais de dois anos.
Pouco menos de um mês antes da publicação da portaria 303 foi realizada no Rio de Janeiro a Cúpula dos Povos por Justiça Social e Ambiental, que reuniu redes e movimentos sociais do Brasil e do mundo, paralelamente à Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20. Com forte presença indígena, os milhares de participantes apontaram na carta final do evento a obrigação dos governos de tomarem em conta a opinião dos indígenas sobre os seus territórios. O caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte foi lembrado inúmeras vezes como um exemplo do descaso com as populações indígenas. A liderança indígena Taravi Kaiabi, presente em uma das atividades da Cúpula, reforçou que os índios não se calarão frente às ameaças sobre os seus territórios. “Morrer por uma causa justa, a gente morre. Estamos dispostos a morrer para salvar nossas terras e já está avisado, já falei com o ministro de Minas e Energia, isso vai ficar na responsabilidade do governo”, alertou.
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