Manicy e a porcaria da Agu

Por José Ribamar Bessa Freire

Quem é Agu? Levanta a mão aí quem sabe! A questão se tornou pertinente depois que a Agu publicou, no dia 17 de julho, a Portaria 303/2012, dispondo sobre as terras indígenas, o que provocou o maior rebucetê, com reação contrária de índios, antropólogos, juristas, ambientalistas, movimentos sociais e até de setores do próprio governo. O silêncio da mídia, de uma cumplicidade alarmante, não conseguiu abafar o protesto nas redes sociais feito com estardalhaço e indignação. “A Agu endoidou de vez” – escreveu uma internauta. Afinal, quem é a Agu no jogo do bicho?

No Rio Negro, correm histórias inacreditáveis sobre a Agu, uma velha preguiçosa e vadia, que nunca fez roça e viveu sempre às custas dos outros, colhendo o que não plantou. Por isso, Manicy, que é a Mãe da Mandioca, castigou a velha, transformando-a numa cutia. Desde então, ela deixou de ser gente e virou bicho, mas mesmo assim não perdeu o vício. Continua invadindo e saqueando as plantações, das quais é um dos piores inimigos. Os índios, até hoje, lutam contra os estragos que este roedor, com suas unhas cortantes, faz nos roçados, todas as noites. Eles dizem:

– Ditado da cutia: o sol foi embora, findou o dia, a noite é a hora, da velha vadia.

As histórias dos estragos feitos pela velha Agu são contadas nas malocas dos rios Uaupés e Tiquié. Algumas delas foram recolhidas pelo conde italiano Ermano Stradelli, que viveu 47 anos no Amazonas, onde aprendeu a língua geral – o nheengatu, e coletou mitos indígenas. Ele publicou, em 1929, o seuVocabulário Nheengatu-Portuguez, em cujo verbete Acuty ou Aguti (p.361-362) aparece a versão aqui apresentada.

A Portaria

Mas quem ameaça estragar agora o roçado dos índios é outra AGU, a Advocacia-Geral da União, que agiu como a cutia. Seu chefe, Luís Inácio Lucena Adams, cujo status é de Ministro de Estado, assinou portaria determinando que o governo pode fazer o que quiser nas terras indígenas, sem necessidade de consultar as comunidades envolvidas ou sequer a própria Funai. Dessa forma, os índios passam a ser inquilinos em sua própria terra, transformada em casa da sogra ou da mãe-joana.

Os caciques, as lideranças e as organizações indígenas repudiaram a Portaria, através de suas organizações: o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Comissão Terra Guarani (CTG), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e tantas outras.

Os aliados também se pronunciaram. A Rede de Cooperação Alternativa, que congrega dez organizações indígenas e indigenistas, entre elas o Instituto Socioambiental, considerou a portaria “um retrocesso na garantia dos direitos indígenas”, um ato “inadmissível e escandaloso” que fere a Constituição de 988 e os acordos internacionais assinados pelo Brasil. Solicitou à  presidente Dilma que determine a imediata revogação da Portaria e recomende à AGU “que aguarde a manifestação da Suprema Corte do país“.

O Conselho Indigenista Missionário classificou a portaria como “excrescência jurídica“, danosa para os índios, “muitos deles morando em acampamentos na beira de estradas ou em reservas superlotadas, enquanto esperam que suas terras ancestrais sejam demarcadas“.

As redes sociais fervilharam com mensagens e notas de protesto. A indignação foi tão grande que teve até quem, desesperado, pensasse em fazer o que a presidente Dilma fez no combate à ditadura: pegar em armas. Esta portaria “contém evidentes inconstitucionalidades e ilegalidades“, na opinião do jurista Dalmo Dallari, pois “pretende revogar dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de afrontar disposições legais“.

Finalmente, em comunicado à imprensa, a Funai confirmou que o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, concordou em suspender a vigência da portaria até que sejam ouvidos os povos indígenas em audiência pública. Mas a COIAB já adiantou que suspender não é suficiente, tem que revogar. Resta saber as razões que levaram a AGU, cuja função é defender os interesses da União, a propor uma medida que prejudica os índios e só beneficia o agronegócio. Tem caroço debaixo dessa AGU.

http://blogs.d24am.com/taquiprati/2012/07/29/manicy-e-a-porcaria-da-agu/

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