Rogéria Araújo, Jornalista da Adital
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso…
A verdade é que você
(Todo brasileiro tem!)
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará crioulo…
(Música ‘Olhos Coloridos’, de Macau)
“Não tenho vergonha do meu cabelo. Tenho vergonha do seu racismo”. A frase, estampada em grafite, numa figura com cabelo black-power, numa grande avenida de Fortaleza, capital do Ceará, define bem um momento especial vivenciado por movimentos, organizações, grupos culturais e entidades que – de diversas formas – trabalham com a questão negra: o reconhecimento e o orgulho de ser negro.
Vale salientar que, num estado onde foi sedimentada a ideia de que não há negros, as ações para dar visibilidade às demandas desta população exigem mais esforços, afinal se está lutando contra uma construção histórica que se enraizou e que continua sendo repetida. De acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), somente 4,64% da população cearense se assumiram como preta; em contraponto, 61,6% se afirmaram como parda.
“Ainda é muito difícil responder um questionário, seja do IBGE, no Censo Escolar ao fazer a matrícula e afirmar a cor preta. Até porque ser negro no Brasil está para além da cor. Mas é certo que a cada novo censo a população preta aumenta e isso não é fruto de um milagre ou de um boom da população negra. Isso se dá principalmente porque mais pessoas estão assumindo sua história e sua afrodescendência”, explica a historiadora Silvia Maria Vieira.
A situação do povo negro no Ceará, como em outros estados brasileiros, está diretamente ligada à problemática social. Os mais pobres são os negros, a maior parcela de desempregados é a negra, os com menos escolaridade são o povo negro e por aí se segue num total contexto de exclusão, no qual ser negro, ser preto é ser colocado num ostracismo social.
Leno Farias, presidente da Associação Afro-Brasileira de Cultura Alàgba, com uma visão bastante crítica, afirma que ser negro no Ceará é ser marginal, e que o racismo está implícito até em formas muitos simples de abordagem como o próprio questionário do IBGE. “Por que a opção preta tem que ser a última? A primeira opção é a branca. Você já é o último em tantas coisas, vai querer ser o último até nisso?”, questionou, justificando o porquê de a maioria das pessoas escolher ser ‘parda’.
Mas nesse processo de reconhecimento esse panorama já está mudando. Lentamente, mas está. Para ele já há uma certa busca pelas raízes africanas, as pessoas já conseguem se redescobrirem e se valorizarem pelas culturas de sua raça e esse reconhecimento é essencial para avançar em políticas públicas e ter os direitos respeitados e implementados.
“Ser negro no Ceará passa pelo autoconhecimento, pelo saber que é negro, do se orgulhar em todos os recortes desde a cor da pele até a posição social”, esclareceu. “A melhor forma de se segregar um povo é desconstruir a valorização que ele tem. Foi isso que aconteceu. E é isso que estamos tentando mudar de várias formas”, completou.
A historiadora Silvia Maria Vieira também se manifesta sobre essa onda de mudança na afirmação negra que vem acontecendo no Ceará. Explicou que levou muito tempo para que essa ideologia de que não existiam negros no Ceará fosse cristalizada. Mas é justamente aí que movimentos sociais, especialmente os negros, acadêmicos e ativistas entram em cena com mais força politizadora e mobilizadora para reverter esses pilares históricos equivocados.
“É lento, mas gradualmente se está minando esta ideia errônea [de que não existem negros no Ceará] acerca da nossa população. A cada dia descobrimos mais informações sobre a população africana em nosso estado e suas contribuições para a economia, política, tecnologia e cultura”, comentou a historiadora.
Africanizando através da cultura
Ir em busca da africanidade que existe em cada um/a que não se reconhece como negro/a é uma missão das mais difíceis. Mas longe de ser impossível. O professor de Capoeira e arte-educador, André Souza, vê nas gingas das rodas de capoeira uma grande força de expressão que tem levado muita gente a se orgulhar e se assumir como negro e negra. É no som do berimbau e dos atabaques que André presencia mudanças de comportamento e de atitude com relação à raça, que há tempos assumiu.
“Esse processo de afirmação é algo que eu busco muito trabalhando com esses grupos [comunidades, população em situação de rua, crianças e adolescentes]. Saber que é negro é o princípio de tudo. Nesses anos todos, vejo que as coisas são difíceis, mas já houve muita mudança sim. Essa história do orgulho negro já é bem mais real do que há alguns anos”, disse.
Para André o preconceito e o racismo são extremamente presentes. Mas por outro lado, “muitos dos nossos” já sabem que têm direitos, já sabem que não podem ser tratados de forma diferenciada por causa da cor da pele, por causa do cabelo. Segundo ele, isso já é um resultado positivo desse processo de afirmação.
“Sofro pra caramba. Assumo um cabelo, assumo um tambor, assumo uma questão… É super complicado. Mas tenho o entendimento disso, sei o que isso significa e tento passar para outras pessoas. De alguma forma, creio que estamos conseguindo”, avaliou.
Safo e seus tambores
Em 2010, o grupo de percussão Tambores de Safo começou a levar para as ruas, em manifestações, passeatas em paradas pela diversidade sexual, sua arte em forma de protesto. E por trás de toda essa leva de reivindicações, que começam pela causa negra e vão até a liberdade e respeito pela opção sexual, está a Mama África, ressonando no peito com todos os seus instrumentos ancestrais.
Para Lila M., uma das integrantes do grupo, elevar a autoestima da população negra através da dança, do corpo, da música, das letras tem sido possível através das apresentações. Para quem é preta – conta Lila – situações de preconceito acontecem todos os dias e, por isso, é preciso estar atento quando se percebe que o direito está sendo violado por conta da discriminação e do racismo.
Mas até chegar ao grupo, Lila passou por um processo de reconhecimento forte. E, então, depois que se ‘descobriu’ negra, nada mais foi o mesmo. “Quando eu disse: ‘eu sou negra’ tudo mudou. Vi que era uma forma de combater esse sistema racista e cruel com a gente mesmo, que nos diz o tempo todo que nosso cabelo tem que ser liso, que meu nariz tem que ser fino, que mulher negra tem que ser gostosa”, falou.
Alisar o cabelo, nem pensar. “A ‘chapinha’ que passe longe da minha negritude”, afirmou orgulhosa, se referindo à moda do alisamento de cabelos que representa a ditadura da estética branca que insiste em padronizar os cabelos, como padroniza comportamentos e atitudes.
No entanto, Lila reconhece que é difícil ir contra esses padrões. E tudo, complementa, começa dentro da própria família. “É difícil conhecer e conscientizar nossos pais de que não temos que alisar o cabelo. Na verdade, que não queremos alisar. Quero meu cabelo assim, quero meu black, quero meu afro, quero meu dread”, falou convicta.
Campanha Negras Livres
Na semana em que se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha – no dia 25 de Julho – uma campanha chegou para reforçar o que Lila M. descreveu acima. Vários coletivos, entidades, militantes, fóruns se reuniram, tendo à frente o Instituto Negra do Ceará (Inegra), e lançaram a “Negras Livres”.
A campanha tem por objetivo motivar as mulheres negras a assumirem sua raça, a não terem vergonha de suas roupas coloridas, da cor da pele, do cabelo, enfim…de tudo o que caracterizam suas raízes afros.
“Aqui no Ceará, diferente dos outros estados, tem muito essa coisa de as pessoas definirem sua cor com vergonha. Para não dizer que são negras, preferem dizer que são marrom-bombom, por exemplo. Isso é muito importante de combater”, opinou Aby Rodrigues, integrante do Inegra.
Para as mulheres negras que não possuem cabelos lisos é muito comum ouvir a frase: “Por que você não ‘ajeita’ o cabelo?”. O ‘ajeitar’, complementou Aby, quer dizer que o cabelo negro não está dentro do padrão, então precisa ser ‘ajeitado’. “Daí vemos como nosso cabelo incomoda. É muito deslocado esse conceito do belo. Por que meu cabelo crespo, duro, alto não pode ser belo? Claro que pode! Não há problema nenhum com nosso cabelo”, ressaltou.
Para a campanha foram fotografadas militantes do movimento negro local. Cada uma com sua beleza diferente, mas salientando o valor de ser negra. Aby contou, ainda, que cada uma dessas mulheres passou por diversas situações de discriminação até se aceitarem. “Sofremos muito desde a infância, fomos apelidadas quando éramos crianças por conta dos nossos cabelos. Foi um processo de transição doloroso”, contou. Mas a campanha está aí para isso: dizer que a mulher negra é linda e não tem do que se envergonhar, muito pelo contrário.
A campanha foi motivada pelo “25 de Julho”, mas terá continuidade porque é atemporal. As imagens foram feitas pelas fotógrafas Camila Garcia e Aline Furtado.
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Redenção?
O estado do Ceará se vangloria de ter sido a primeira província brasileira a abolir a escravidão no Brasil, a ponto de ser conhecido como Terra da Luz. O feito aconteceu na cidade de Redenção em 25 de março de 1884 – quatro anos antes, então, do 13 de Maio, marcado pela assinatura da Lei Áurea, em 1888. A abolição, no entanto, se deu num contexto onde a presença do povo negro não era, sob o ponto de vista comercial, interessante para os fazendeiros e demais castas ricas cearenses, uma vez que não se teve fortemente a cultura de cana-de-açúcar ou do café, comuns em outros estados como Bahia e Rio de Janeiro, por exemplo.
“Negros no Ceará – Redenção?” é uma série de matérias elaboradas por ADITAL que busca retratar e questionar a história atual do povo negro no Ceará. Quais são suas lutas, como se identificam neste processo ainda bem marcado pelas nuanças brancas, o que tem a dizer sobre o orgulho de ser negro, o que acham das políticas afirmativas, o que pensam do preconceito. Essas são algumas das diretrizes que procuram evidenciar esta cultura rica que, embora invisibilizada, pulsa forte como uma batida do maracatu e que cada vez mais conquista seu espaço através de muita luta, que reverbera em seus tambores o ritmo da justiça e o anseio de peitar uma dívida histórica social.
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